terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Rolezinhos e direito à vitrine






Por Emiliano José


É muito difícil aprender as lições da história enquanto ela se desenvolve. As evidências saltam aos olhos para alguns, e dissolvem-se no ar para tantos outros. Falo assim ao reportar-me ao episódio dos rolezinhos, nome dado à movimentação da juventude pobre de algumas capitais. Os jovens queriam contemplar, quem sabe aqui e ali até comprar, aqueles obscuros objetos do desejo a cada segundo ofertados pela publicidade. Obscuros, e nem tanto. Ou obscuros em alguns casos porque inalcançáveis. Mas, por que não ter o direito de contemplar? Lembro-me de Baudelaire ou de Zola: talvez, entre outros aspectos da luta anunciada pelos rolezinhos, esteja o do direito à vitrine. Por incrível que pareça.

Os mais velhos, como eu, se deslumbraram quando jovens com as vitrines coloridas das ruas. Recordo-me de um paletó, isso, só um paletó, e era marrom claro, exibido numa das lojas da rua Benjamin Constant. Era office-boy do Banco Comercial do Brasil, morava na periferia da capital paulista, no Jaçanã. Parava, olhava, desejava. Era uma maravilha contemplar o paletó. Que me importava não pudesse comprá-lo? As vitrines foram transferidas na maior parte para os shoppings, esses monumentos do consumo infensos ao burburinho das ruas, ou que se pretendem assim, isolados do mundo dos pobres. O Brasil está mudando, e há shoppings que não se apercebem.
Nos governos de Lula e de Dilma, houve um extraordinário crescimento do mercado interno. Houve distribuição de renda. Houve a ascensão dos mais pobres a condições mais dignas. Deu-se que o mercado brasileiro – para ficar nessa terminologia – não se restringe mais a coisa de 30 milhões de pessoas. As pessoas compram muito mais. E a juventude cuja renda não permite a aquisição desse estonteante acervo de novos objetos do desejo, ao menos pretende fazer a visitação. Olhar a parafernália eletrônica de última geração, os tênis que tudo podem, as roupas de grife, os notebooks, as televisões tela plana, esse admirável mundo novo apresentado por um capitalismo que não cessa de se reproduzir.

E mais: essa juventude pretende que a cidade seja sua. Também sua. Ou os shoppings não se querem cidade? Não, os empresários não podem se iludir. Por mais que tentem ampliar as barreiras, são cidade. Fazem parte dela, constituem-na. Lembro agora de Marx: deixa-se tudo (formalmente) à decisão das maiorias, e não se quer que as maiorias ajam? Quando os de cima tocam música, dançam, fazem suas festas, o que querem? Que os de baixo não dancem?

Nada disso, senhoras e senhores! Os meninos, as meninas, com seu funk, com suas roupas alegres, com o corpo movimentando-se com muita leveza, só querem dar um role. Não querem agredir ninguém: os rolezinhos evidenciam a moçada saindo de suas casas, e ganhando a rua, tomando conta de sua cidade, e os shoppings também são sua cidade. Os meninos das periferias de nossas cidades não querem abafar ninguém, só querem mostrar que fazem samba também, como Noel Rosa no seu Palpite Infeliz, tão atual.

Outra vez, e o faço com muita frequência, volto a Paulinho da Viola: tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim. Como é possível pretender reprimir o ir e vir dessa moçada? Predomina uma visão tacanha, pequena, incapaz de compreender o novo País que surge, uma visão ainda presa aos preconceitos da Casa Grande, uma visão de criminalização da pobreza, de considerar os pobres como classes perigosas. Noel Rosa: que palpite infeliz, quem é você que não sabe o que diz? É, o sambista tinha razão: eu já chamei você pra ver, você não viu porque não quis... pra que ligar a quem não sabe aonde tem o seu nariz? Uma burguesia tacanha, incapaz até de compreender o alargamento do mercado. No elementar do elementar, essa repressão é absolutamente inconstitucional. É ilegal e imoral.

E constitui um ataque às expectativas de nossa juventude. Será que os senhores dos shoppings não sacam que até agora ela não quis quebrar as vitrines? Que só quis flanar pelos shoppings? A inconsciência é tão grande a ponto de não perceber que estão apagando incêndio com gasolina? Não se lembram do que ocorreu nas jornadas de junho do ano passado? Não se recordam do governador Alckmin mandando baixar o pau na meninada, estopim para uma das maiores movimentações de multidões dos últimos tempos? Os senhores do shopping tratam a meninada e seus rolezinhos como uma invasão de bárbaros. E não é. Querem somente, insisto, tomar de volta a sua cidade.

Claro, uma análise mais cuidadosa poderia nos levar aos desatinos da sociedade de consumo, de um capitalismo que faz um festival mirabolante de ofertas, que pretende que todos consumam, mas que teme a multidão, nem que ela tenha também a possibilidade de comprar, pouco que seja. Uma sociedade ultraindividualista, da qual talvez os shoppings sejam o seu maior símbolo, eles por si sós, um monumento à exclusão, ilhas no interior das cidades, e pretendendo que a cidade pobre não os invada. Gostam da ideia de que só a elite possa olhar suas vitrines, percorrer suas lojas, comprar. Pobre não é benvindo, e pior ainda se jovem.
Essa meninada é o novo Brasil. A consolidação da democracia passa pelo diálogo permanente com ela. Gostei quando li que o prefeito Haddad quer conversar com essa moçada. O caminho não é o de reprimir. É o de dar-lhe liberdade ampla – afinal, o que fizeram de mal nesse caso dos rolezinhos, qual o crime cometido? –, aprender com ela, ouvir, compreender seus anseios, ver que futuro se desenha a partir dela.

Não se mate nossa esperança. Não se reprima nosso futuro. Não se ataque tanto sonho abrigado na cabeça de nossa juventude. Que floresçam rolezinhos. Que se lotem os shoppings. Que se garanta o direito à vitrine, ao ir e vir, o direito à cidade. Que não se sufoque o desejo. O desejo, quando sufocado, é como água: sempre encontra caminhos para se manifestar. Melhor conversar, melhor abrir portas, melhor ouvir, melhor entender. Melhor garantir o direito à cidade e suprimir as ilhas de exclusão.

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