Publicado em dezembro 29th, 2013 | por A Priolli |
Por A Priolli
O
neoliberalismo tão triunfante do final do Século XX, que acreditava ter encerrado
a História e iniciado um reinado perpétuo, esfarelou-se universalmente nos
últimos anos e essa foi a única boa notícia que a sua agonia trouxe.
No rastro de
infelicidade e caos deixado pela crise financeira começada em 2008, sobraram
poucas almas – fora das redações da mídia corporativa brasileira, evidentemente
– que ainda acreditam no projeto neoliberal.
Nem em seu
pior pesadelo, entretanto, os claudicantes neoliberais poderiam imaginar que a
sua derrota levaria ao resgate do comunismo. Não mais como ideologia de
estatização total da sociedade, mas um comunismo como priorização do comum, do
público, do social, contra as formas de apropriação e fruição privada da
existência.
Acumulam-se as
reflexões sobre esse novo comunismo, redivivo na generosidade de sua utopia de
igualdade entre todos os humanos, mas revisto e revigorado para os desafios do
Século XXI.
Ao artigo de
Bruno Cava já oferecido anteriormente aos leitores, A
Priolli acrescenta agora o texto de outro filósofo, o catalão Santiago
Zabala, extraído do indispensável site Outras Palavras e
reproduzido na íntegra abaixo.
O Retorno dos Filósofos Comunistas
Empobrecimento,
desigualdade e declínio das velhas democracias estão levando pensadores a
dialogar com face antiestatista, radical e libertária do marxismo
Por Santiago Zabala - Publicado
originalmente em Al
Jazeera - Tradução Vila Vudu
Ler Marx e
escrever sobre Marx não faz de ninguém comunista, mas a evidência de que tantos
importantes filósofos estão reavaliando as ideias de Marx com certeza significa
alguma coisa. Depois da crise econômica global que começou no outono
[nórdico] de 2008, voltaram a aparecer nas livrarias novas edições de textos de
Marx, além de introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.
Por mais que
essa ressurreição [2] tenha sido provocada pelo derretimento financeiro
global, para o qual não faltou a empenhada colaboração de governos democráticos
na Europa e nos EUA, esse ressurgimento [3] de Marx entre os filósofos não
é consequência nem simples nem óbvia, como creem alguns. Afinal, já no
início dos anos 1990s, Jacques Derrida [4], importante filósofo francês, previu
que o mundo procuraria Marx novamente. A previsão certeira apareceu na resposta
que Derrida escreveu a uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da
história” inventados por Francis Fukuyama.
Contra as
previsões de Fukuyama, o movimento Occupy e a Primavera Árabe demonstraram que
a história já caminha por novos tempos e vias, indiferente aos paradigmas
econômicos e geopolíticos sob os quais vivemos. Vários importantes pensadores
comunistas (Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean, Terry
Eagleton, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos quais Slavoj
Zizek é o que mais aparece, já operam para ver e mostrar como esses novos
tempos são descritos em termos comunistas, quer dizer, como alternativa radical.
O movimento
acontece não só em conferências de repercussão planetária em Londres [5], Paris
[6], Berlin [7] e New York [8] (com participação de milhares de
professores, alunos e ativistas) mas também na edição de livros que se
convertem em best-sellers globais como Império [9] de
Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain
Badiou e Ecce Comu [11] de Gianni Vattimo, dentre outros. Embora
nem todos esses filósofos apresentem-se como comunistas – não, com certeza,
como o mesmo tipo de comunista –, a evidência de que o pensamento comunista
está no centro de seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje
tantos filósofos comunistas tão ativos.
A
ressurgência do marxismo
Evidentemente,
nessas conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como programa
para partidos políticos, para que reproduzam regimes historicamente superados;
é proposto como resposta existencial à atual catástrofe neoliberal global.
A correlação
entre existência e filosofia é constitutiva, não só da maioria das tradições
filosóficas, mas também das tradições políticas, no que tenham a ver com a
responsabilidade sobre o bem-estar existencial dos seres humanos. Afinal, a
política não é apenas instrumento posto a serviço da vida burocrática diária
dos governos. Mais importante do que isso, a política existe para oferecer guia
confiável rumo a uma existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações
da política deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos
tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a
realidade e a propor alternativas.
Foi o que
aconteceu no início do século 20, quando Oswald Spengler, Karl Popper e outros
filósofos começaram a chamar a atenção para os perigos da racionalização cega
de todos os campos da atividade humana e de uma industrialização sem limites em
todo o planeta. Mas a política, em vez de resistir à industrialização do homem
e da vida humana, limitou-se a seguir uma mesma lógica industrial. As
consequências foram devastadoras, como todos já sabemos.
Hoje, as
coisas não são essencialmente diferentes, se se consideram os efeitos
igualmente calamitosos do neoliberalismo. Apesar do discurso triunfalista do
neoliberalismo, a crise das finanças globais neoliberais do início do século 21
serviu para mostrar que nunca as diferenças de bem-estar material foram maiores
ou mais claras que hoje: 25 milhões de pessoas passam a viver, a cada ano, em
favelas urbanas; e a devastação dos recursos naturais do planeta já provoca
efeitos assustadores em todo o mundo, tão devastadores que, em alguns casos, já
não há remédio possível.
Por isso tudo,
relatório recente do ministério da Defesa da Grã-Bretanha [12] previa,
além de uma ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente
associadas movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também movimentos
associados ao populismo; além do renascimento do marxismo”. Essa ressurgência
do marxismo é consequência direta da aniquilação das condições de existência
humana resultantes do capitalismo neoliberal como o conhecemos.
O comunismo de Marx… |
O
que é “comunismo”?
Por mais que a
palavra “comunista” tenha adquirido inumeráveis significados distintos, ao
longo da história, na opinião pública atual ela significa uma relíquia do
passado e é associada a um sistema político cujos componentes culturais,
sociais e econômicos são todos controlados pelo estado.
Por mais que
talvez seja o caso na China, Vietnã ou Coreia do Norte, para
a maioria dos
filósofos e pensadores contemporâneos esse significado é insuficiente, está superado,
é efeito de propaganda maciça e, sobretudo, é diariamente desmentido pela
evidência de que o mundo não estaria vivendo uma “ressurgência” do marxismo, se
o comunismo marxista fosse apenas isso.
…é renovado por Zizek e outros |
Como diz
Zizek, o comunismo de estado não funcionou, não por fracasso do comunismo, mas
por causa do fracasso das políticas antiestatizantes: porque não se conseguiu
quebrar as limitações que o estado impôs ao comunismo, porque não se
substituíram as formas de organização do estado por forma ‘diretas’ não representativas
de auto-organização social.”
O comunismo,
como ideário antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é
hoje a melhor hipótese, ideia e guia para os movimentos políticos
libertários antipoder, como os que nasceram dos protestos em Seattle (1999),
Cochabamba (2000) e Barcelona (2011).
Por mais que
esses movimentos lutem em nome de causas e valores específicos e diferentes
entre si (contra a globalização econômica desigualitária, contra a privatização
da água, contra políticas financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo
adversário: o sistema de distribuição não igualitária da propriedade, em
democracias organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.
Como o
demonstram a pobreza sempre crescente e o inchaço das favelas, este modelo
deixou para trás todos os que não foram “bem-sucedidos” segundo suas regras,
produzindo novos comunistas.
Comunismo
e democracia
Em resumo,
enquanto Negri e Hardt [13] buscam no “comum” (quer dizer, nos modos pelos
quais a propriedade pública imaterial pode ser propriedade dos muitos), e
Badiou busca nas insurreições (em ações como a da Comuna de Paris) [14], a
possibilidade de se alcançarem “formas de auto-organização” não estatais, quer
dizer, a possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e eu) [15] sugerimos
que todos examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na Venezuela,
Bolívia e outros países latino-americanos.[16]
Se esses
líderes conseguiram chegar ao governo e começar a construir políticas
comunistas sem insurreições violentas, não foi por terem chegado ao mundo
político armados por fortes conteúdos teóricos ou programáticos; mas por suas
fraquezas.
Diferente da agenda
pregada pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado
“hermenêutico” [17]) abraçou não só a causa ecológica [18] do
de-crescimento, mas também a causa da decentralização do sistema burocrático
estatal, de modo a permitir que se constituam conselhos independentes locais,
que estimulam o envolvimento das comunidades.
Que ninguém se
surpreenda se muitos outros filósofos, atraídos para o comunismo pelas ações e
políticas de destruição da vida do neoliberalismo, também vislumbrarem a alternativa
[19] que se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações
latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao poder
também pelas vias formais da democracia.
Santiago
Zabala é pesquisador e professor de filosofia da Institució Catalana de
Recerca i Estudis Avançats, ICREA [1], da Universidade de Barcelona. É autor,
dentre outros trabalhos, de “The Hermeneutic Nature of Analytic Philosophy”
(2008), “The Remains of Being” (2009), e, mais recentemente, com G. Vattimo,
“Hermeneutic Communism” (2011), todos publicados pela Columbia University
Press.
NOTAS
[9] Império, 2005, Rio
de Janeiro: Ed. Record, 501 p.
[10] A hipótese
comunista, 2012, São Paulo: Boitempo Editorial, 152 p.
[17] Hermenêutico: adj.
Relativo à interpretação dos textos, do sentido das palavras. (…) 3) Rubrica:
semiologia. Teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu
valor simbólico. Obs.: cf. semiologia 4) Rubrica:
termo jurídico. Conjunto de regras e princípios us. na interpretação do
texto legal (…). Etimologia: gr. herméneutikê (sc. tékhné)
‘arte de interpretar’ < herméneutikós,ê,ón ’relativo a
interpretação, próprio para fazer compreender’ [NTs, com verbete do Dicionário
Houaiss, emhttp://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=hermen%EAutica&cod=101764]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi