Por Bruno
Fonseca e Jessica Mota
Mortes no
Maranhão, trabalhadores forçados por soldados da Força Nacional a permanecerem
em canteiro de obras em Belo Monte. Acusados de violar direitos trabalhistas,
megaempreendimentos recebem financiamento do BNDES
“Nós fomos se
alojar no meio da Amazônia, sem parente, sem transporte. Sem nada. O transporte
que nós tínhamos era da empresa. Mas quando há uma greve, eles fechavam logo o
transporte. Ninguém entrava, ninguém saía na portaria. Se saísse, era tomado o
crachá, como aconteceu com a gente, e era mandado embora”, diz Adailson Silva,
ex-apontador na obra de Belo Monte.
A hidrelétrica
de Belo Monte, em construção, fica a cerca de 70 km da cidade de Altamira, no
município Vitória do Xingu, no estado do Pará. O canteiro da obra pública mais
cara e controversa do Brasil é formado por quatro sítios, Belo Monte, Canais e
Diques, Pimental e Bela Vista. Ali, formam-se quase cidades paralelas, com
transporte e alimentação fornecidos pelo Consórcio Construtor Belo Monte e
comércio dentro dos canteiros.
São 20 mil
trabalhadores (dados de setembro de 2013 do Consórcio Norte Energia) na
construção de Belo Monte oriundas de lugares mais próximos como Belém, e de
muito longe, do Rio de Janeiro, de São Paulo, e até do Haiti. Em turnos, as
equipes trabalham 24 horas por dia, para acelerar a conclusão da obra,
com descanso apenas no domingo. Pessoas que vivem dentro da obra, nos
alojamentos, e que passam meses longe de suas famílias até que recebam a
permissão de visitá-las (segundo Adailson Silva, trabalhador entrevistado
para esta reportagem, a empresa só cumpre o acordo de três meses mínimos para a
visita se os trabalhadores o exigem com contratos em mãos).
Os frequentes
protestos – de ativistas, de comunidades indígenas, ribeirinhas e greves dos
próprios trabalhadores – criam uma rotina extenuante emocionalmente, que se
soma ao estresse físico do trabalho.
Foi por isso
que no dia 6 de abril desse ano, depois
de sucessivos conflitos, quando mais uma manifestação eclodiu no sítio de
Pimental, Adailson Silva, de 32 anos, queria fugir. Ele havia deixado sua
cidade, Belém, a família e a ocupação de cabelereiro na promessa de um
“trabalho bom e de você ter direitos”. Nunca havia trabalhado em obras do porte
de Belo Monte. Cadastrou-se em Belém mesmo, onde a empresa fazia o
recrutamento.
A comunicação
precária, nessas situações de conflito, como relata Adailson, era mais um
agravante. “Quando tem alguma ação ali dentro, alguma coisa assim complicada,
como uma greve de índio, de funcionários, cortam o sinal [do celular] de todo
mundo”, denuncia. “Eles [o consórcio] fazem isso pras pessoas não se
manifestarem. Não tem explicação. Aí veja: [a empresa] não se manifesta pra dar
um refúgio, pra defender alguém, dar uma sugestão, uma opinião, nada. Não
aparece pra nada. Você fica por conta de manifestantes, por conta de índios,
você fica à mercê. Eles proíbem que as pessoas saiam dali porque o transporte
de que nós dependemos é da empresa”, denuncia. De acordo com o Consórcio
Construtor Belo Monte (CCBM), a situação se dá pelo fato da obra estar instalada
em “área remota da Amazônia”. “Podemos assegurar que a interrupção dos
serviços, em 100% das ocorrências, é motivada única e exclusivamente por
aspectos técnicos”, pronuncia a empresa.
No dia 6 de
abril, à uma hora da manhã, prestes a completar seis meses de trabalho em Belo
Monte, Adailson foi coagido a fazer parte de uma caminhada organizada por
grevistas do sítio onde estavam, Pimental, até o próximo, Canais e Diques. O
objetivo era chamar os trabalhadores do outro sítio a participarem da greve. “Eles
[grevistas] chegaram lá dizendo que quem não fosse, eles iam tocar fogo nos
alojamentos. Que quem não fosse, quando eles voltassem, eles falavam assim bem
claro: ‘vocês vão entrar na porrada’. Como que não vai?”, conta com o jeito e o
sotaque marcados do nortista paraense.
“Eu e alguns
companheiros pegamos alguns aparelhos de roupa e caminhamos junto com eles. Por
que? Pra gente poder passar onde estava interditado e pegar um ônibus lá na
frente e ir pra cidade onde já tinha gente da primeira greve. A gente sabia que
nada bem ali ia ocorrer, entendeu? Nós procuramos pegar refúgio”.
Depois de
cinco horas de caminhada em direção ao sítio de Canais e Diques, com fome e
sede, Adailson e seus companheiros só queriam voltar para o canteiro. Foi
quando a Força Nacional de Segurança Pública, do Governo Federal, presente
desde março em Belo Monte e alojada na obra, parou os trabalhadores que estavam
dentro de um ônibus da empresa que vinha de Altamira em direção ao canteiro de
Pimental.
FORÇA NACIONAL
ATUA COMO SEGURANÇA DE CONSÓRCIO DE BELO MONTE
No meio da
estrada, a Força Nacional bloqueou a passagem do ônibus e obrigou os
trabalhadores a descer. “Aí tirou fotografia nossas, fotografou todo mundo. E
tomou o crachá. Da feita que eles põem o crachá no saco, pronto, nós estamos na
rua, entendeu? Não queriam deixar a gente ir buscar nem nossos pertences na
obra. E tinha pessoas que estavam vindo do médico, no mesmo ônibus, porque o
único transporte que tem é o transporte da empresa”, fala.
Segundo o CCBM
“contratações e desligamentos ocorrem diariamente, em virtude do grande volume
de funcionários. Mas não houve, em nenhuma situação, o desligamento motivado
simplesmente pela saída de funcionários de qualquer um dos canteiros de obras
do CCBM”.
“Tiveram
pessoas que correram, que conseguiram fugir, precisando do emprego, é claro,
mas foram poucas pessoas. Eu não tinha como correr, eles [Força Nacional]
estavam armados. Inclusive deram tiro atrás dos que correram para não dar o
crachá”, explicou Adailson.
A Força
Nacional, criada em 2004, é subordinada ao Ministério da Justiça, que em março
deste ano autorizou
sua presença no canteiro de obras para prevenir a invasão de manifestantes. Como
afirma o próprio Consórcio, em resposta à Pública, por e-mail. “O que
motivou a decisão ministerial foi a sequência de ações violentas promovidas
por: 1) Instituições sindicais alheias aos funcionários do CCBM; 2) ONGs;
3) Indígenas. Desde 2011, diferentes grupos promoveram dezenas de atos de
vandalismo contra bens móveis e imóveis sob responsabilidade do CCBM. Não
raramente, essas ações põem em risco a segurança dos nossos funcionários – o
que é prioridade número 1 para o Consórcio Construtor Belo Monte”.
Em julho deste
ano, a
autorização foi prorrogada até janeiro de 2014. Em fevereiro, segundo
o movimento Xingu Vivo para Sempre o Consórcio Construtor Belo Monte
havia infiltrado um ex-funcionário no movimento, que primeiro havia sido
readmitido com a proposta de detectar lideranças operárias que poderiam
organizar greves dentro dos canteiros.
Até o
fechamento desta reportagem, o Ministério da Justiça não se pronunciou sobre o
fato da Força Nacional ser usada para reprimir manifestações de trabalhadores
na construção da hidrelétrica de Belo Monte.
Em razão da
demissão sem justa causa, de danos morais causados pelo uso da Força Nacional e
outros descumprimentos legais – como desvio de função e horas extras – Adailson e mais sete
trabalhadores acionaram a Justiça do Trabalho do Pará contra o
Consórcio Construtor Belo Monte. Das oito reclamações trabalhistas, seis já
foram julgadas em primeira instância e três ganharam a causa de danos morais.
Todas foram exitosas em relação aos pedidos de horas extras.
“Quando teve
pessoas que reivindicaram, que reclamaram alguma coisa contra isso, contra a
Força Nacional, contra a segurança, da gente, que nós não estávamos recebendo
nada, que estávamos longe de parente, longe de casa, longe de tudo, que nós
estávamos à mercê… Numa hora dessa a empresa vira as costas. Estou lhe
falando”, diz Adailson ainda com revolta na voz. “Mas se hoje saem 300, amanhã
chegam 400. Para eles isso é normal”.
JUSTIÇA
CONDENA EMPRÉSTIMO DO BNDES PARA BELO MONTE
A megaoperação
de Belo Monte é a principal peça em uma estratégia bilionária de investimentos
do BNDES na Amazônia. São mais de R$ 25 bi acordados apenas para a hidrelétrica
através de contratos firmados entre os anos de 2011 e 2012. Belo Monte,
inclusive, só é realidade graças ao dinheiro do BNDES – o banco financia cerca
de 87% do total previsto para usina, segundo dados do Ministério do
Planejamento.
Todo esse
dinheiro chegou a ser congelado recentemente pela Justiça que, em 25 de outubro
deste ano, ordenou
que o BNDES não repassasse mais nenhum centavo para Belo Monte. O motivo: a
obra não cumpriu condicionantes da Licença Prévia, emitida pelo Ibama. A
decisão foi do desembargador Antonio Souza Prudente, do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, a partir de ação do Ministério
Público Federal (MPF) de 2011. Entretanto, cinco dias depois, a
Advocacia-Geral da União (AGU) derrubou a liminar, as
obras foram retomadas e o repasse foi novamente autorizado. Sob
justificativa de sigilo bancário, o BNDES se recusa a divulgar quanto já foi
repassado para Belo Monte, postura que se repete para qualquer obra executada
por agentes privados.
A lista de
financiamentos do BNDES em obras de infraestrutura na Amazônia segue com
diversos outros empreendimentos bilionários acusados de infringir a legislação
trabalhista, alguns, inclusive, que envolvem mortes de operários. Um dos
exemplos emblemáticos é a construção de uma unidade produtora de celulose na
zona rural do município de Imperatriz, no Maranhão, obra que deve consumir
sozinha mais de R$ 3,2 bi apenas de contratos com o BNDES. Pelo menos três
pessoas morreram na construção da unidade, propriedade da Suzano, segunda maior
produtora de celulose de eucalipto do mundo e líder de papéis brancos na
América do Sul.
NO MARANHÃO,
OPERÁRIOS MORREM E MPT PROCESSA OBRA BILIONÁRIA
No dia 13 de
julho deste ano, o operário Jeferson Hugo Souza, de 23 anos, foi atingido
durante a retirada de um equipamento metálico de um contêiner na construção da
unidade produtora de celulose da Suzano. Levado ao hospital, ele morreu por
choque hipovolêmico (hemorragia) e lesão cardíaca. Na época, a Suzano divulgou
nota de pesar na qual afirmava que a empresa Imetame Metalmecânica, responsável
pela contratação de Jeferson, tomaria todas as providências para dar a
assistência à família do operário e que ambas as empresas se solidarizaram com
familiares, colegas de trabalho e a comunidade de Imperatriz.
A morte de
Jeferson não foi a única no canteiro da Suzano. Em setembro de 2012, durante a
montagem de uma caldeira de mais de 100 metros de altura, trabalhadores foram
imprensados por uma peça metálica carregada por um guindaste. Morreram Gilmar
Pereira Norberto, de 26 anos, e Jornande Pereira, de 31, empregados da Irmãos
Passaúra, contratada da Metso, empresa finlandesa e uma das prestadoras de
serviço na construção da usina. Mais três trabalhadores também ficaram feridos
após a queda de outra peça. Novamente, as empresas envolvidas divulgaram nota
afirmando que tomariam as providências necessárias.
As sucessivas
mortes de trabalhadores foram um dos motivos que levaram o Ministério Público
do Trabalho de Imperatriz a entrar com uma Ação Civil Pública, em agosto deste
ano, contra a Suzano, a Imetame e a Metso. A Suzano e a Metso foram condenadas
à multa de R$ 50 milhões por dano moral coletivo. Já a Imetame, que havia
recusado assinar um Termo de Ajustamento de Conduta com o MPT, foi obrigada a
resolver diversas falhas de segurança e corrigir infrações à legislação
trabalhista sob multa de R$ 50 mil por dia por item descumprido. Em nota, a
Suzano afirmou que “está à disposição das autoridades para prestar os
esclarecimentos necessários e acredita que todas as exigências legais serão
devidamente cumpridas pelas suas contratadas.” A empresa ainda afirmou que as
“prestadoras de serviço foram escolhidas ao fim de um rigoroso processo de
seleção e os contratos preveem a execução das obras em estreita observância à
legislação vigente”.
De fato, os
problemas na usina da Suzano já eram conhecidos há quase dois anos. Em
fevereiro de 2012, o MPT já havia constatado irregularidades que iam desde a
ausência de sinalização e isolamento em áreas de movimentação de carga à falta
de utilização de equipamentos de proteção individual. Havia ainda problemas de
jornadas de trabalho prorrogadas além do limite legal ou desrespeito à folga em
feriados. Em novembro de 2012, uma segunda fiscalização do MPT encontrou mais
falhas, como a utilização de cabos de aço com pernas quebradas, precariedade no
treinamento contra acidentes e, novamente, ausência de sinalização em áreas de
risco. Ao todo, somando uma terceira fiscalização realizada em julho de 2013,
foram autuadas 57 irregularidades no canteiro da Suzano, boa parte relacionada
à segurança de trabalho. O empreendimento chegou a ter 13 mil trabalhadores e
está previsto para ser inaugurado em 2014.
O PROBLEMÁTICO
TABULEIRO DE INVESTIMENTOS DO BNDES NA AMAZÔNIA
Problemas
trabalhistas não são exclusividade de Belo Monte e da usina da Suzano em
Imperatriz. Ao contrário: se selecionarmos apenas os 20 maiores financiamentos
do BNDES em infraestrutura na Amazônia desde 2008, é possível encontrar ações
judiciais de MPTs em pelo menos 12 desses 20 empreendimentos, segundo
levantamentos preliminares dos MPT estaduais.
A hidrelétrica
de Ferreira Gomes (R$ 470 mi do BNDES), no Amapá, por exemplo, precisou firmar
um Termo de Ajustamento de Conduta para regularizar pagamento de horas extras,
adicionais de insalubridade e de periculosidade, regularizar transporte para
trabalhadores de outros municípios e até mesmo acabar com práticas de assédio
moral. A empresa responsável pela construção da hidrelétrica foi inclusive alvo
de uma Ação Civil Pública com pedido de indenização por danos morais coletivos
após acidentes.
Apenas as
hidrelétricas de Jirau (R$ 9,54 bi do BNDES) e Santo Antônio (R$ 6,13 bi do
BNDES), em Rondônia, acumulam, juntas, 22 processos ajuizados pela
Procuradoria do Trabalho da 14ª Região, contra gigantes como Odebrecht e
Camargo Corrêa, dentre outras. Desde 2008, quando as obras começaram, até
outubro de 2012, 13 homens morreram na construção de Jirau e Santo Antônio.
A Odebrecht
também foi alvo de duas Ações Civis Públicas durante a construção da usina de
Dardanelos (R$ 480 mi do BNDES) e uma ação relacionada à hidrelétrica de Teles
Pires (R$ 2,86 bi do BNDES), ambas em Mato Grosso. Na hidrelétrica de Estreito
(R$ 2,69 bi do BNDES), entre Tocantins e Maranhão, o MPT autuou três
procedimentos.
E não são
apenas as obras das hidrelétricas que provocam ações de MPTs entre os
empreendimentos financiados pelo BNDES. A construção do gasoduto Coari-Manaus,
da Transportadora Associada de Gás – TAG (R$691 mi do BNDES), tem um
procedimento aberto no MPT/AM para investigar possíveis irregularidades de
pagamentos, duração da jornada de trabalho e descanso semanal, dentre outras
questões. As Centrais Elétricas do Pará – Celpa (R$ 449 mi do BNDES para o
plano de investimentos 2009-2011) foram alvo de três Ações Civis Públicas do
MPT da 8ª região, que representa o Pará e o Amapá. A América Latina Logística
(R$ 691 mi do BNDES para expansão e modernização da malha ferroviária) foi alvo
de uma ação civil pública do MPT/MT. A ponte sobre o Rio Negro, no Amazonas,
teve um inquérito aberto em 2011 para investigar condições sanitárias e de
conforto no local de trabalho. O processo foi arquivado.
A lista de
problemas trabalhistas pode ser ainda maior, visto que alguns MPTs não
disponibilizam de sistemas de indexação das suas ações, como é o exemplo do MPT
do Maranhão. Até o fechamento desta matéria, a assessoria do MPT não havia
conseguido filtrar as informações de diversos empreendimentos financiados pelo
BNDES no estado, como os investimentos na Companhia Energética do Maranhão
(Cemar) ou as obras da Eneva (antiga MPX, de Eike Batista) nas termelétricas de
Parnaíba e Porto de Itaqui.
Publicado originalmente no
site da Agência Pública
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