Por Urariano Mota – Recife
O Jornal do Comercio, do Recife, nos
últimos dias arrancou do sono o jornalismo impresso do Brasil. Quem lê a
reportagem “No Recife, infância perdida na lama e no lixo” não sabe o que
mais se destaca, se o texto de Wagner Sarmento e Marina Borges, ou se as fotos
de Diego Nigro. As imagens de fotógrafo a esta altura correm o mundo, que se
espanta pela composição da cena: uma cabeça de menino mergulhado no lixo e na
lama de tal forma, que se torna ele próprio lixo também.
Escreveram os repórteres:
“Eles nadam onde nem os peixes se atrevem. De
longe, suas cabeças se confundem com os entulhos. Pela falta de quase tudo na
terra, mergulham no rio de lixo atrás da sobrevivência. Lá sim tem quase tudo:
latinhas, garrafas, papelão, móveis velhos, restos de comida, moscas, animais
mortos. Menos dignidade. Lá, no Canal do Arruda, Zona Norte do Recife, o
absurdo é rotina....
O trio de crianças se acotovelava entre dejetos mil para catar
latas de alumínio e garantir o alimento de duas famílias com, ao todo, 18 pessoas.
Nadava em meio a tudo que a cidade vomita. Paulinho, o menor e mais astuto
dentro d’água, tapava a boca com veemência. Tinha noção exata do risco que
corria. Ainda não sabe ler, mas conhece da vida o suficiente para não deixar
entrar uma gota sequer daquela lama de cheiro insuportável e chamariz de
doenças. Febre e diarreia são constantes”.
O escândalo, o falso espanto que causa
a reportagem, é na verdade a descoberta desta coisa comum, a miséria de meninos
que sobrevivem entre o descaso e a morte. Isso é tão onipresente que não
vemos. A transformação da pessoa – perdão, do menino, que há quem julgue não
ser uma pessoa -, a mudança de alguém em coisa, e o pior tipo de coisa, a sem
valor, descartável, é tão secular que virou natural, como se fossem restos
de plástico ao lado dos quais nós passamos imersos em nossas vidas, que achamos
ser a mais digna da paisagem. A vida, este bem nosso a que outros não têm o
direito. Por que deitar os nossos olhos sobre o que não é gente?
Sobre os meninos do Recife eu já havia
notado que as ruas, as avenidas onde eles dormem, jazem, têm nomes poéticos,
belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa poesia não lhes cola na pele,
ou melhor, neles se cola uma poesia invisível, até porque ninguém mesmo os vê.
Eles são à semelhança de ratos pela madrugada, porque com ratos se confundem ao
sair das cavernas e cloacas da cidade no escuro da noite. Então eles ficam
todos negros, na pele ou na camuflagem dos animais que correm pelo asfalto da
avenida.
Quando em grupos, aos bandos, ainda
assim ninguém os vê. Ou melhor, às vezes, sim, quando rondam como símios as
bolsas e os relógios dos adultos. Veem-se sem serem vistos, assim como vemos e
evitamos no solo um buraco, um obstáculo ou grandes montes de merda. As pessoas
fazem a volta e tratam de assuntos mais sérios. Todos estamos já acostumados
àqueles figurantes, no cenário. Os meninos nas ruas são personagens que nem
falam, porque estão sempre em porre de sonho, delirantes, com a voz trôpega,
plenos do sonho que a cola dá. De repente, alguns deles, os mais sóbrios, os
que podem, saltam para a traseira de um ônibus. Então os meninos se transformam
em morcegos, à beira da morte nos testes que o motorista faz, ao frear e
acelerar e a fazer voltas velozes com os ônibus, para ver se os morcegos se
estendem no chão. Às vezes os motoristas conseguem.
Na foto do Jornal do Commercio,
procura-se no canal do Arruda uma criança no meio do lixo espesso na água suja.
Onde está Wally? Ninguém vê uma cabecinha negra perdida no lixo e podridão do
rio. Ou do canal, que no Recife é um braço do rio. Se o colunista fosse poeta,
poderia compor um poema com o nome Os Meninos–Urubus. Ou meninos-ratos. Ou
meninos-lixo, simplesmente. Meninos-lixo? Não. Lixo Tudo e Igual, pois uma bola
escura à semelhança de cabeça flutua entre plásticos. Para que tentar a poesia
que escapa ao colunista? João Cabral de Melo Neto já expressou como ninguém o
encontro de lama e rio, de resistência do homem que procurar sair do que o mata
no Capibaribe.
Com as devidas adaptações, porque o
menino da foto ainda não é o homem do poema de João Cabral, dele podemos dizer
nesta livre interpretação de O Cão sem Plumas:
Aquele canal jamais se abre aos peixes,
ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores pobres e negras como negros.
Abre-se numa flora suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.
No Canal do Arruda difícil é saber onde começa o canal
onde a lama começa do canal
onde a terra começa da lama;
onde o novo, onde a pele começa da lama;
onde começa o novo homem daquele menino.
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