O
tratamento autoritário contra a população nas manifestações tem base na
legalidade democrática atual e não em um antigo estado de exceção
Fachadas
de prédios foram pichadas por grupos de manifestantes
após
protesto na terça-feira 15 em defesa da educação e que
marcou
o Dia do Professor
|
por *Fhoutine
Marie no site Carta capital
As
instituições prisionais, a força policial, as normas jurídicas e sua aplicação
conforme as conhecemos hoje não surgiram do nada, tampouco por acaso. No estudo
sobre os sistemas de punição reunidos em Vigiar e Punir (1975),
Michel Foucault mostra como os conceitos de crime e penas variaram
historicamente até que se pudessem constituir, já nas sociedades industriais,
não somente uma forma de supressão das infrações à lei, mas uma forma de
administração dos perigos de um novo ilegalismo popular.
Em outras
palavras, na passagem do século XVIII ao século XIX, houve um cruzamento entre
conflitos sociais, resistências aos efeitos da industrialização e crises econômicas,
movimentos operários e partidos republicanos. O resultado foi a elaboração de
políticas para punir os ilegalismos operários: desde a destruição de máquinas,
passando pela proibição de constituir associações, o abandono de serviço, a
vadiagem. Nessas condições, diz Foucault, seria hipocrisia ou ingenuidade
acreditar que a lei é feita para todo mundo e em nome de todo mundo. Seria mais
prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros,
principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas. Nesse sentido,
permanece uma série de ilegalidades, diferente dos crimes contra a propriedade
e a ordem política, que não se tornou alvos de repressão e encarceramento.
A produção da
delinquência e seu investimento pelo aparelho penal nunca cessaram de encontrar
resistências. Verifica-se, então, que já nas sociedades industriais, as ações
operárias foram acusadas de serem animadas por simples criminosos e os
veredictos aplicados contra operários muitas vezes foram mais severos do que os
aplicados aos ladrões. Este trabalho de aproximação entre a delinquência e a
contestação da ordem política se completou com a disseminação da imprensa
policial. O noticiário torna aceitável o conjunto de controles sociais que
vigiam a sociedade, constituindo um boletim cotidiano de alarme ou de vitória.
Vigiar e Punir foi
publicado no Brasil por uma editora católica, a Vozes, de Petrópolis (RJ),
durante a ditadura civil-militar, em 1977. Estava em curso o processo de
“distensão lenta, segura e gradual” do general Ernesto Geisel, que assumira o
poder três anos antes. Foi o ano de revogação do Ato Institucional número 5,
que concedia poder irrestrito aos governantes com direito à censura a meios de
comunicação, fechamento do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e
Câmaras Municipais e suspendia uma série de direitos civis, como a proibição
das manifestações e atividades de assuntos de natureza política e a garantia de habeas corpus,
nos casos de crimes políticos.
A Constituição
Federal de 1988 consolidou o processo de redemocratização do Brasil. Se a
ditadura civil-militar brasileira era um regime de exceção - situação
caracterizada pela suspensão do estado de direito e de garantias
constitucionais – o País passaria a ser um Estado democrático de Direito. Além
da realização periódica de eleições, tínhamos de volta as tais garantias
suspensas em duas décadas de regime militar, como liberdade de expressão, de
locomoção, de associação, inviolabilidade da vida privada e de domicílio,
o sigilo de correspondência e dados bancários, entre outras.
Recentemente,
a explosão de manifestações ao longo deste ano em grande parte das capitais
brasileiras colocou em xeque alguns limites do Estado democrático de Direito.
Nesta semana, a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, Maria do Rosário atribuiu a “resquícios da ditadura” os ataques das
polícias militares a jornalistas e manifestantes nos protestos de 13 de junho
em São Paulo e durante a Copa das Confederações, no Rio de Janeiro. A ministra
aparentemente se referia ao processo de formação dos policiais e à estrutura da
instituição. Entretanto, o tratamento autoritário e violento dispensado à
população nas manifestações políticas atuais tem muito mais a ver com processos
que transcorrem dentro da mais perfeita legalidade democrática que com
resquícios do estado de exceção.
Atualmente os
crimes contra a ordem política e social no Brasil são enquadrados na Lei de
Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983). A lei foi usada
para enquadrar os manifestantes Humberto Caporelli e Luana Lopes, presos na
primeira semana de outubro por suposta participação em atos de vandalismo na
segunda-feira 6 no centro de São Paulo. Entretanto, desde o início da
onda de protestos de 2013, o que se observa no tratamento dado aos
manifestantes e aos supostos casos de vandalismo é uma combinação de
instrumentos legislativos que não se restringem às leis do tempo da ditadura;
ao contrário, estão em perfeita harmonia com os princípios do Estado
democrático de Direito atual.
A proibição do
uso de máscaras em protestos, por exemplo, está de acordo com o artigo 5º da
Constituição Federal, o mesmo que garante a livre a manifestação do pensamento
e a inviolabilidade da intimidade, vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, uma vez que a lei estabelece que nessa livre expressão é vedado o
anonimato. Do mesmo modo, a nova lei sobre organizações criminosas (lei 12.850
de 12 de agosto de 2013), que está sendo usada para punir atos de vandalismo em
manifestações (pena de três a oito anos de prisão), passou por todos os
processos legais, próprios de regimes democráticos, antes de ser sancionada
pela presidenta democraticamente eleita.
A lei
considera organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas,
mediante a prática de infrações penais. A pena por constituir, financiar ou
integrar organização criminosa varia de 3 a 8 anos de reclusão mais multa. O
texto também afirma que em qualquer fase da persecução penal serão permitidos
como meios de obtenção da prova o acesso a registros de ligações telefônicas e
telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou
privados e a informações eleitorais ou comerciais; interceptação de
comunicações telefônicas e telemáticas e afastamento dos sigilos financeiro,
bancário e fiscal.
Parece,
portanto, mais adequado considerar que o tratamento dispensado aos
manifestantes pelas autoridades, mais do que um resquício da ditadura, aponta
para a seletividade penal a qual se referia Foucault em Vigiar e Punir há
38 anos. Os novos instrumentos legais trazem consigo a ampliação da vigilância.
No dia 15 de outubro, após novos confrontos entre policiais e manifestantes, o
responsável pela Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI) do Rio
de Janeiro, Gilson Perdigão, afirmou em entrevista ao jornal O Globo,
afirmou que a publicação de comentários e fotos em apoio aos atos de vandalismo
em redes sociais também poderá ser considerada crime. Os autores de postagens
poderão responder pelo artigo 286 do Código Penal (incitação ao crime). Isso
quer dizer que a liberdade de expressão garantida constitucionalmente está
sujeita à penalização.
Verificamos no
momento político presente uma atualização dos alvos preferenciais da repressão
policial e do encarceramento, toda uma produção de indivíduos perigosos, os
vândalos, mistura de delinquentes com subversivos, aqueles que segundo boa
parte dos grandes meios de comunicação seriam os responsáveis pelo início dos
conflitos, aqueles que provocam danos à propriedade privada, que se diferenciam
dos “verdadeiros manifestantes”, que no entendimento do senso comum devem ser
pacíficos; são eles que justificam o endurecimento das penas, que trazem de
volta o uso da bala de borracha.
O estado de
exceção permanece no passado porque agora não é mais necessário, já que no
cerne do Estado democrático de Direito existem dispositivos suficientes para
lidar com os insurgentes políticos, tornando-os mais uma vez alvos
preferenciais das forças repressivas e da prisão. Enquanto isso acontece, os
noticiários continuam a traduzir este conjunto de controles das condutas em
termos como um boletim cotidiano de alarme. Resta saber se os dispositivos de
exceção serão suficientes para afastar das ruas uma multidão de pessoas
nascidas após o retorno da democracia e que parecem interessadas em confrontar
os limites impostos pelo Estado à participação política popular.
*Fhoutine
Marie é cientista política
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