sábado, 28 de setembro de 2013

Família de Norberto Nehring, torturado e morto durante a ditadura, pede revisão da certidão de óbito

São Paulo – A família de Norberto Nehring, economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) que foi assassinado durante a ditadura militar no país, pediu à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo que seja providenciada uma nova certidão de óbito de Nehring. A família pede que o documento aponte que ele morreu sob tortura, por lesões e maus-tratos e que seja definido o local em que a morte ocorreu. 
Atualmente, a certidão de óbito de Nehring, que já sofreu uma modificação a pedido da família, aponta que ele morreu “por causas não naturais”. A primeira certidão do economista, que morreu no dia 20 de abril de 1970, informava que ele tinha se suicidado com uma gravata em um hotel.

“O processo histórico é algo que se faz de pequenas peças. Uma pecinha na revisão desse processo já tivemos, que foi a primeira revisão do atestado de óbito que, de suicídio, passou a responsabilizar o Estado brasileiro e falou do domínio físico do meu pai, dizendo que ele estava sob responsabilidade de agentes do Estado. A questão é muito complexa porque nunca existiu tortura oficialmente no Brasil. Não há nenhum laudo oficial falando em tortura”, disse a cineasta Marta Nehring, filha de Norberto.
“Esse reconhecimento é para limpar a nossa história. E a história se limpa com esses pequenos registros. Um atestado de óbito refeito é uma pecinha que pode parecer pequena, mas é parte do grande movimento histórico para limparmos nosso passado”, acrescentou.
Norberto era militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Em janeiro de 1969, policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) cercaram a casa onde ele vivia com a mulher, Maria Lygia Quartim de Moraes, e o levaram. Ele ficou dez dias na carceragem, onde foi interrogado e torturado. Como seu grau de envolvimento com a guerrilha ainda não era de conhecimento dos agentes do Dops, ele foi liberado para comparecer ao aniversário de 5 anos da filha, Marta Nehring. Logo depois da festa, fugiu para Cuba.
Maria Lygia e a filha foram depois encontrá-lo em Cuba. Nos primeiros meses de 1970, ele decidiu voltar ao Brasil, enquanto a esposa e a filha foram para a França. Antes de chegar ao país, Norberto ficou um período de 40 dias em Praga (capital da República Checa) e, de lá, mandou cinco cartas para Maria Lygia. Logo depois de ter desembarcado no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro/Galeão – Antonio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro, ele foi morto. As circunstâncias de sua morte nunca foram esclarecidas, mas a família acredita que ele foi levado do aeroporto por policiais.
“Nos 40 dias em que ele ficou em Praga, a gente se correspondia. Foram cinco cartas [disse ela, chorando] no período. A última é do dia 10 de abril e, no dia 24, ele estava morto”, contou Maria Lygia que só voltou ao país cinco anos depois.
Além da mudança na certidão, a família pede também que a comissão investigue e aponte quem foram os torturadores e assassinos de Nehring. “Todo mundo sabe que a justiça de transição tem três pilares: a reparação, a reconstituição e a apuração e punição. Aqui no Brasil isso se limita à questão da reparação financeira, mas não é o que eu quero. Isso é pouco. O que eu quero é a verdade e acho também que o Brasil precisa dessas verdades”, disse Maria Lygia.
A audiência da comissão, feita na tarde de hoje (27) na Assembleia Legislativa de São Paulo, foi acompanhada pela ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, pelo jornalista Juca Kfouri (primo de Maria Lygia e padrinho de Marta) e pelo ex-ministro de Direitos Humanos e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), Paulo Vannuchi.
Na audiência, Juca Kfouri se emocionou ao lembrar de sua militância na ALN e da culpa que diz ter carregado por muitos anos por não ter ajudado a tirar Norberto do país. “Ele não sabia, e nem podia saber, que, naquela altura da minha vida, eu, de alguma maneira, em um sistema de auxílio da ALN, já tinha posto duas pessoas para fora do Brasil. E eu não me conformo em ele não ter me procurado. Durante muito tempo após a morte dele, eu pensava: 'se ele me procurasse a gente certamente tiraria ele daqui'. Não me conformo”, disse.
A ministra disse ter participado da audiência como amiga da família e também como ex-militante e presa política. “Cada vez mais essas sessões me dão a certeza de que seguir em frente é fundamental, é correto, é importante. A homenagem ao Norberto é mais do que merecida. Sou muita amiga da Ia [Maria Lygia]. A vida do Norberto, sem dúvida nenhuma, é um exemplo para a nova geração. Tenho certeza de que todas as comissões, as estaduais e a federal, chegarão a um relatório que vão mostrar a verdade e aí vão encaminhar para os devidos procedimentos futuros e necessários”, disse.
Para o jornalista Juca Kfouri, o primeiro passo será dado ao se apontar os nomes dos torturadores e assassinados daquele período. “Depois, à medida que a sociedade amadureça, talvez seja possível dizer: 'essas pessoas [torturadores] não podem ficar na rua'”.
De forma bastante emocionada, a filha, as duas netas [Sofia e Cléo] e a viúva de Norberto classificaram a audiência de hoje como “uma cerimônia de adeus”. “Assim como a minha mãe [Marta], também perdi o meu pai muito cedo, mas eu tinha o dobro da idade dela quando isso aconteceu. E é muito difícil você não poder passar com o seu pai esses momentos de adolescência, do nascimento de filhos, que ainda vou ter. Mas teve uma diferença: eu tive a oportunidade de me despedir simbolicamente do corpo do meu pai, por meio dos rituais. Mas isso foi algo que a minha mãe nunca teve oportunidade de fazer. Até hoje. Por isso, hoje é o dia em que ela vai conseguir se despedir simbolicamente do corpo dele, já que ela nunca vai se despedir da alma dele. Isso era um peso para ela até hoje”, disse Sofia Nehring, neta de Norberto, durante a audiência.
Marta, que dirigiu o filme 15 Filhos - que mostra a história de 15 pessoas que eram crianças durante a ditadura, filhos de militantes políticos que morreram ou foram torturados no regime, disse que a história de seu pai é um exemplo de que a “luta vale a pena”. “Hoje conseguimos enterrar o meu pai, mas isso não significa que acabou. Ainda há a busca e a condenação dos culpados”, disse.
Agência Brasil

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