terça-feira, 2 de julho de 2013

Em defesa da radicalização democrática

Dez pontos sobre as manifestações que tomaram as ruas do País

Em Brasília, manifestantes pedem fim da corrupção no país

Por Ricardo Fabrino Mendonça*, no site Carta Capital

Tenho participado de alguns debates sobre as recentes manifestações que tomaram as ruas brasileiras e gostaria de vir a público me posicionar sobre alguns pontos. São dez.

1 - As manifestações atuais, como todo acontecimento histórico, são alvo de disputas simbólicas que incidem sobre seus próprios desdobramentos. Qualquer analista que cravar um diagnóstico nesse momento só pode fazê-lo com certo “achismo”. O momento é de refletir sobre as várias possibilidades abertas e de se engajar nessas disputas simbólicas. A ação que me parece mais interessante, no momento, é da defesa da radicalização democrática.

2 - Mas qual radicalização? Radicalização democrática só pode significar incremento do autogoverno. Para isso, é fundamental repensar as formas de participação dos cidadãos e a articulação entre várias formas de engajamento que permita que a polifonia cotidiana se faça ouvida. Ou seja, a radicalização não implica abrir mão de instituições políticas, mas requer repensá-las de maneira a possibilitar que a democracia não se restrinja ao voto e possa se adensar, realizando-se de forma contínua e efetiva. A radicalização democrática passa, necessariamente, pela discussão (1) das desigualdades (em suas várias facetas – classe, gênero, raça, orientação sexual, capacitismo – todas elas entrecruzadas); (2) do caráter do autogoverno em um mundo transnacionalizado; (3) da centralidade da comunicação para o aprofundamento da experiência democrática.


3 - Radicalização democrática não implica, nesse momento histórico, a adoção da violência. Por mais que eu julgue que há algumas análises equivocadas sobre o caráter da violência de alguns protestos contemporâneos, vejo que os atos violentos estão sendo mobilizados (na batalha simbólica descrita no ponto 1) para deslegitimar um processo histórico muito significativo. Ademais, é preciso compreender que não se pode dissociar fins de meios, como já advertia John Dewey nos anos 1930. Se o fim é uma sociedade justa e se a justiça depende de democracia, os meios precisam ser democráticos.

4 - Vejo, assim, três estratégias fundamentais para que o(s) movimento(s) alimente(m) a radicalização democrática: (1) as assembleias populares; (2) a alimentação do debate público; (3) a adoção de formas criativas e inovadoras de ação. Todos os três pontos passam por um reconhecimento de que a democracia requer reflexividade coletiva sobre os rumos da vida comum. Reflexividade esta que se manifesta em espaços de diálogo e em formas de ação inovadoras, capazes de assegurar vitalidade e visibilidade às demandas que vêm sendo colocadas.

5 - Mas que demandas? Não se trata de uma pauta difusa e contraditória? Não exatamente... Parece haver um eixo a articular as demandas (nas suas contradições): a mudança das gramáticas morais que regem nossas práticas sociais. As pessoas querem um mundo diferente, e entendo que há algo além de um clichê aqui. Meu argumento é que há uma luta por reconhecimento, no sentido atribuído ao termo pelo filósofo alemão Axel Honneth, na base de todo esse processo. Há uma luta moral pela transformação do modo como entendemos a política e a sociedade. Há um conflito em torno dos valores que empregamos para distribuir riqueza e tomar decisões. Há um confronto em torno de futuro. O momento é de projetar mudança. Mas onde se chegará? Qual o fim almejado? Não poderia responder a essa questão sem negar as premissas de que parto. Como já dito, uma sociedade justa depende da radicalização democrática e seu fim só pode ser construído democraticamente. Isso não significa, obviamente, que o justo é equivalente à ditadura da maioria. A democracia radicalizada aqui defendida passa pelo respeito fundamental às minorias. Passa, também, por discussões fundamentais, nesse momento, dentre as quais: a Reforma Urbana (com a garantia do direito à cidade), a Reforma Política, a questão da Liberdade de Expressão e as questões de populações negligenciadas e injustiçadas, como indígenas, quilombolas, moradores de rua e pessoas de sexualidade estigmatizada.

6 - A compreensão dessa difusão enfeixada de pautas e questões requer, ainda, o entendimento do papel da internet nesse acontecimento histórico. Não se pode atribuir a ela as causas dos protestos. No entanto, é indubitável que ela teve um papel fundamental nos processos de articulação, mobilização e estruturação dos movimentos. Também vale ressaltar o fortalecimento de várias formas de cobertura alternativa que trouxeram mais complexidade ao ambiente discursivo em que se desenrolam os acontecimentos. O ponto que quero frisar, aqui, contudo, diz respeito às transformações na construção de identidades coletivas alimentadas pela articulação via redes sociais. O que muitos analistas insistiram em ver, historicamente, como um ativismo fraco (de sofá) pode ser atribuído a uma incapacidade de pensar fenômenos (de algum modo) novos com novas lentes. É preciso entender que os processos de formação identitária desses movimentos não são iguais aos dos grandes movimentos dos anos 1960, 70, 80. Mais do que a geração de uma identidade coletiva (ainda que com suas heterogeneidades), a rede parece operar como catalisadora de fragmentos identitários, alimentando outros tipos de laços e solidariedades. Esse aspecto precisa ser mais investigado, mas é simplificador banalizá-lo como inferior às velhas e boas identidades coletivas.

7 - Justamente por isso, também me parecem equivocadas as análises que atestam que o(s) movimento(s) enfraquecerá(ao) sem  chegar a lugar algum. Ou que necessariamente fortalecerão uma direita ultraconservadora. Ou que as pessoas só saíram às ruas porque queriam ter a mesma experiência que gerações passadas. Há consequências muito significativas, seja pela aceleração (e mudança) de várias votações no Congresso, seja pela percepção por parte das pessoas de que elas podem se fazer ouvidas, seja pela geração de debates públicos sobre temas antes completamente invisíveis. Quanta gente não tem se indagado sobre o que é reforma política? Para além das consequências institucionais (e elas têm sido muitas), há consequências culturais profundas de todo esse processo e que só poderão ser bem compreendidas com o passar do tempo. Mas o acontecimento, como é típico de grandes eventos históricos, tem um poder revelador de descortinar formas de injustiça existentes e apontar para outros futuros possíveis. Nem todo futuro possível é brilhante e melhor do que o presente, mas a percepção da contingência do presente pode indicar para outros futuros melhores.

8 - Nesse sentido, o que dizer dos partidos políticos e de suas respostas ao(s) movimento(s)? A maioria dos partidos políticos ainda me parece francamente perdida diante dos acontecimentos. Isso fica evidente nas declarações contraditórias de lideranças de um mesmo partido, nas tentativas de se tornar liderança do movimento ou na insistência em simplesmente descartar o clamor de muitas pessoas por uma política sem partidos. Que fique claro, eu concordo que a política democrática precisa de partidos e que sua negação nos conduziria a uma revitalização do fascismo. A questão é que não basta dizer “com partido” em face do clamor pelo “sem partido”. É preciso dizer que tipo de partido poderia ser melhor tanto em relação ao que temos como em relação a um fascismo sem partidos. É preciso repensar os partidos, democratizá-los e levá-los a ocupar atribuições muito diferentes em um mundo transformado.

9 - Creio que a presidenta Dilma Rousseff captou (em certa medida) o espírito da época e construiu uma saída audaciosa diante do clamor por participação mais direta. Foi interessante ver o Congresso e o Judiciário temerosos com a perda do controle, justamente, sobre a reforma política. Mas Dilma parece ter entendido a excepcionalidade do momento e a necessidade de formas pouco usuais de ação política. Também interessante foi o uso, naquele primeiro momento, da ideia de Constituinte: uma refundação de um (ou a construção de algum...) pacto. Não acho que o plebiscito produzirá a melhor reforma política possível. Como também não imagino que o Congresso, na sua configuração atual, pudesse fazê-lo. Também julgo que plebiscitos, se usados em excesso, podem gerar um tipo de democracia que é perigosa, eliminando a relevância de mediações institucionais. O que penso, nesse momento, contudo, é que tal saída alimentará uma discussão que precisa ser feita para a radicalização de nossa democracia.

10 - E já que toquei na reforma política, fecho com este assunto, apresentando minha posição neste debate. Defenderei, na esfera pública, medidas que fortaleçam (e democratizem) os partidos políticos e a competição entre eles. Entram, aqui, a defesa da lista fechada (com alternância de gênero) e do financiamento público de campanha. Também defendo a consolidação de um sistema nacional de participação devidamente articulado. Obviamente, contudo, estou aberto ao debate.

Ricardo Fabrino Mendonça* é professor do Departamento de Ciência Política Universidade Federal de Minas Gerais

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