Dez pontos sobre as
manifestações que tomaram as ruas do País
Em Brasília, manifestantes pedem fim da corrupção no país |
Por
Ricardo Fabrino Mendonça*, no site Carta Capital
Tenho
participado de alguns debates sobre as recentes manifestações que tomaram as
ruas brasileiras e gostaria de vir a público me posicionar sobre alguns pontos.
São dez.
1
- As manifestações atuais, como todo acontecimento histórico, são alvo de
disputas simbólicas que incidem sobre seus próprios desdobramentos. Qualquer
analista que cravar um diagnóstico nesse momento só pode fazê-lo com certo
“achismo”. O momento é de refletir sobre as várias possibilidades abertas e de
se engajar nessas disputas simbólicas. A ação que me parece mais interessante,
no momento, é da defesa da radicalização democrática.
2
- Mas qual radicalização? Radicalização democrática só pode significar
incremento do autogoverno. Para isso, é fundamental repensar as formas de
participação dos cidadãos e a articulação entre várias formas de engajamento
que permita que a polifonia cotidiana se faça ouvida. Ou seja, a radicalização
não implica abrir mão de instituições políticas, mas requer repensá-las de
maneira a possibilitar que a democracia não se restrinja ao voto e possa se
adensar, realizando-se de forma contínua e efetiva. A radicalização democrática
passa, necessariamente, pela discussão (1) das desigualdades (em suas várias
facetas – classe, gênero, raça, orientação sexual, capacitismo – todas elas
entrecruzadas); (2) do caráter do autogoverno em um mundo transnacionalizado;
(3) da centralidade da comunicação para o aprofundamento da experiência democrática.
3
- Radicalização democrática não implica, nesse momento histórico, a adoção da
violência. Por mais que eu julgue que há algumas análises equivocadas sobre o
caráter da violência de alguns protestos contemporâneos, vejo que os atos
violentos estão sendo mobilizados (na batalha simbólica descrita no ponto 1)
para deslegitimar um processo histórico muito significativo. Ademais, é preciso
compreender que não se pode dissociar fins de meios, como já advertia John
Dewey nos anos 1930. Se o fim é uma sociedade justa e se a justiça depende de
democracia, os meios precisam ser democráticos.
4
- Vejo, assim, três estratégias fundamentais para que o(s) movimento(s)
alimente(m) a radicalização democrática: (1) as assembleias populares; (2) a
alimentação do debate público; (3) a adoção de formas criativas e inovadoras de
ação. Todos os três pontos passam por um reconhecimento de que a democracia
requer reflexividade coletiva sobre os rumos da vida comum. Reflexividade esta
que se manifesta em espaços de diálogo e em formas de ação inovadoras, capazes
de assegurar vitalidade e visibilidade às demandas que vêm sendo colocadas.
5
- Mas que demandas? Não se trata de uma pauta difusa e contraditória? Não
exatamente... Parece haver um eixo a articular as demandas (nas suas
contradições): a mudança das gramáticas morais que regem nossas práticas
sociais. As pessoas querem um mundo diferente, e entendo que há algo além de um
clichê aqui. Meu argumento é que há uma luta por reconhecimento, no sentido
atribuído ao termo pelo filósofo alemão Axel Honneth, na base de todo esse
processo. Há uma luta moral pela transformação do modo como entendemos a
política e a sociedade. Há um conflito em torno dos valores que empregamos para
distribuir riqueza e tomar decisões. Há um confronto em torno de futuro. O
momento é de projetar mudança. Mas onde se chegará? Qual o fim almejado? Não
poderia responder a essa questão sem negar as premissas de que parto. Como já
dito, uma sociedade justa depende da radicalização democrática e seu fim só
pode ser construído democraticamente. Isso não significa, obviamente, que o
justo é equivalente à ditadura da maioria. A democracia radicalizada aqui
defendida passa pelo respeito fundamental às minorias. Passa, também, por
discussões fundamentais, nesse momento, dentre as quais: a Reforma Urbana (com
a garantia do direito à cidade), a Reforma Política, a questão da Liberdade de
Expressão e as questões de populações negligenciadas e injustiçadas, como
indígenas, quilombolas, moradores de rua e pessoas de sexualidade
estigmatizada.
6
- A compreensão dessa difusão enfeixada de pautas e questões requer, ainda, o
entendimento do papel da internet nesse acontecimento histórico. Não se pode
atribuir a ela as causas dos protestos. No entanto, é indubitável que ela teve
um papel fundamental nos processos de articulação, mobilização e estruturação
dos movimentos. Também vale ressaltar o fortalecimento de várias formas de
cobertura alternativa que trouxeram mais complexidade ao ambiente discursivo em
que se desenrolam os acontecimentos. O ponto que quero frisar, aqui, contudo,
diz respeito às transformações na construção de identidades coletivas
alimentadas pela articulação via redes sociais. O que muitos analistas
insistiram em ver, historicamente, como um ativismo fraco (de sofá) pode ser
atribuído a uma incapacidade de pensar fenômenos (de algum modo) novos com
novas lentes. É preciso entender que os processos de formação identitária
desses movimentos não são iguais aos dos grandes movimentos dos anos 1960, 70,
80. Mais do que a geração de uma identidade coletiva (ainda que com suas
heterogeneidades), a rede parece operar como catalisadora de fragmentos
identitários, alimentando outros tipos de laços e solidariedades. Esse aspecto
precisa ser mais investigado, mas é simplificador banalizá-lo como inferior às
velhas e boas identidades coletivas.
7
- Justamente por isso, também me parecem equivocadas as análises que atestam
que o(s) movimento(s) enfraquecerá(ao) sem chegar a lugar algum. Ou que
necessariamente fortalecerão uma direita ultraconservadora. Ou que as pessoas
só saíram às ruas porque queriam ter a mesma experiência que gerações passadas.
Há consequências muito significativas, seja pela aceleração (e mudança) de
várias votações no Congresso, seja pela percepção por parte das pessoas de que
elas podem se fazer ouvidas, seja pela geração de debates públicos sobre temas
antes completamente invisíveis. Quanta gente não tem se indagado sobre o que é
reforma política? Para além das consequências institucionais (e elas têm sido
muitas), há consequências culturais profundas de todo esse processo e que só
poderão ser bem compreendidas com o passar do tempo. Mas o acontecimento, como
é típico de grandes eventos históricos, tem um poder revelador de descortinar
formas de injustiça existentes e apontar para outros futuros possíveis. Nem
todo futuro possível é brilhante e melhor do que o presente, mas a percepção da
contingência do presente pode indicar para outros futuros melhores.
8
- Nesse sentido, o que dizer dos partidos políticos e de suas respostas ao(s)
movimento(s)? A maioria dos partidos políticos ainda me parece francamente
perdida diante dos acontecimentos. Isso fica evidente nas declarações
contraditórias de lideranças de um mesmo partido, nas tentativas de se tornar
liderança do movimento ou na insistência em simplesmente descartar o clamor de
muitas pessoas por uma política sem partidos. Que fique claro, eu concordo que
a política democrática precisa de partidos e que sua negação nos conduziria a
uma revitalização do fascismo. A questão é que não basta dizer “com partido” em
face do clamor pelo “sem partido”. É preciso dizer que tipo de partido poderia
ser melhor tanto em relação ao que temos como em relação a um fascismo sem
partidos. É preciso repensar os partidos, democratizá-los e levá-los a ocupar
atribuições muito diferentes em um mundo transformado.
9
- Creio que a presidenta Dilma Rousseff captou (em certa medida) o espírito da
época e construiu uma saída audaciosa diante do clamor por participação mais
direta. Foi interessante ver o Congresso e o Judiciário temerosos com a perda
do controle, justamente, sobre a reforma política. Mas Dilma parece ter
entendido a excepcionalidade do momento e a necessidade de formas pouco usuais
de ação política. Também interessante foi o uso, naquele primeiro momento, da
ideia de Constituinte: uma refundação de um (ou a construção de algum...)
pacto. Não acho que o plebiscito produzirá a melhor reforma política possível.
Como também não imagino que o Congresso, na sua configuração atual, pudesse
fazê-lo. Também julgo que plebiscitos, se usados em excesso, podem gerar um
tipo de democracia que é perigosa, eliminando a relevância de mediações
institucionais. O que penso, nesse momento, contudo, é que tal saída alimentará
uma discussão que precisa ser feita para a radicalização de nossa democracia.
10
- E já que toquei na reforma política, fecho com este assunto, apresentando
minha posição neste debate. Defenderei, na esfera pública, medidas que
fortaleçam (e democratizem) os partidos políticos e a competição entre eles.
Entram, aqui, a defesa da lista fechada (com alternância de gênero) e do
financiamento público de campanha. Também defendo a consolidação de um sistema
nacional de participação devidamente articulado. Obviamente, contudo, estou
aberto ao debate.
Ricardo Fabrino
Mendonça* é professor do Departamento de Ciência
Política Universidade Federal de Minas Gerais
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