1956: quebra quebra contra o aumento das tarifas dos bondes, Distrito Federal, RJ. |
Por André
Luiz Rodrigues de Rossi Mattos*
Em
recente artigo publicado no blog Viomundo (Anatomia do Movimento Passe Livre,
10/062013), o Professor Lincoln Secco constatou as interpretações que a grande
imprensa e os grupos de poder imediatamente construíram em torno dos protestos
promovidos pelo Movimento Passe Livre (MPL). Segundo o artigo, “a crítica dirigiu-se
à turba, à baderna, ao ‘trânsito’, aos arruaceiros e aos jovens filhos de
papai”. Conforme ainda averiguou no mesmo texto, a grande imprensa ainda
descobriu os militantes partidários e assim, a revolta dos jornalistas
sensacionalistas se voltou contra os protestos, contra a suposta baderna e
também contra os militantes partidários.
Com
diferente sentido, a percepção do cenário que está sendo construída na grande
imprensa com relação a essas manifestações (não apenas com relação aos protestos
em São Paulo )
também foi expressa por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa (O
que querem os manifestantes, 11/06/2013). Segundo Martins, as cenas
transmitidas nos telejornais “refletem situações caóticas, com muita confusão,
bombas de efeito moral, trânsito paralisado [...]”, relatos lineares, segundo o
mesmo autor, que demonstram a suposta intenção dos manifestantes em paralisar a
cidade, irritar a população e demonstrar a ineficiência dos agentes públicos.
A
síntese (ou a recepção) dos setores sociais mais sensíveis a esses discursos
parece constar na declaração do infeliz promotor da 5ª Vara do Júri de São
Paulo, que enquanto estava parado no cotidiano trânsito de São Paulo (agora
atribuído aos manifestantes), esbravejou pelo seu perfil no Facebook para que “alguém
[avisasse] a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri
e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito
policial" (Folha de S. Paulo, Promotor incita violência contra
manifestantes e depois pede desculpas, 10/06/2013).
Mas
o que torna os sentidos que foram citados acima preocupantes e que a grande
imprensa se ocupa em disseminar é a sua continuidade no tempo: como no passado
recente, se defende “baderna” como inerente ao protesto social e a presença do
militante partidário como nocivo aos movimentos socais.
Para
nos distanciarmos no tempo e no espaço, é significativo lembrar de George Rude
(A Multidão na história, 1991), que ao tratar dos movimentos populares ingleses
e franceses entre os séculos XVIII e XIX, não se surpreendeu “que as classes
ricas, sempre que foram impotentes para controlar as energias da multidão, a
tivessem considerado um monstro inconstante, ao qual faltava qualquer lógica”.
Mas
não é preciso percorrer um caminho tão distante para encontrar alguma
continuidade entre as interpretações passadas e as atuais, defendidas nas
páginas e nos telejornais da grande imprensa, por representantes do judiciário
ou dos grupos de poder que vez ou outra se assustam com as reações aos seus
atos. Aliás, essas interpretações foram (e são) bastante correntes.
Em
1946, no Rio de Janeiro, para protestar contra a carestia da vida, a morte de
um adolescente que havia consumido produtos adulterados pelo comércio e contra
a ineficiência governamental, a “turba” saiu de frente ao Palácio do Catete até
o Largo do Machado destruindo padarias, órgãos de distribuição de leite e lojas
“grã-finas”. A interpretação da imprensa e da Força Pública foi imediata: tudo
havia sido obra da subversão que havia se infiltrado entre o povo indignado.
A
reação não demorou e, no dia seguinte, enquanto os comunistas pediam calma ao
povo em seus discursos parlamentares as suas sedes e jornais foram fechados. Não
menos significativo foi a constatação de que havia sido das sedes e jornais que
a polícia angariou a maioria de militantes, jornalistas e advogados que somaram
os quase quinhentos presos que lotaram as delegacias cariocas.
Em
1949, um grupo de estudantes que apedrejou um bonde na Praia do Flamengo em
protesto contra o aumento nas passagens dos bondes foi imediatamente considerado
um grupo comunista nas páginas da grande imprensa e esse grupo, depois de
preso, só se safou de ter sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional pela
condição de ginasiais e universitários que efetivamente caracterizava o grupo.
Ainda
mais significativos foram os quebra-quebras dos bondes em 1956, no Rio de
Janeiro, e em São Paulo ,
em 1958, quando os processos judiciais concluíram que a violência das
manifestações tinha como causa uma abstrata ação dos “subversivos” que haviam
corrompido o povo, sempre pacato e civilizado, das duas grande cidades.
Não
faltam exemplos para identificar que em sua grande maioria, as reações e
protestos populares (ou de segmentos sociais mais definidos, como dos
estudantes ou das juventudes, greves de operários ou de moradores de um ou
outro bairro) são fenômenos historicamente tratados como crimes, exceto quando
controlados, insignificantes ou quando atentem aos interesses daqueles grupos
estabelecidos de poder que não possuem força social para as manifestações de
rua.
Assim,
quando fogem ao controle ou quando os jovens ou os setores populares se tornam
a “turba” inconveniente e incontrolável, é preciso encontrar um recurso para
mascarar e justificar as suas ações, o número crescente de participantes nas
manifestações e o descontentamento social demonstrado em suas reivindicações.
Então, entra em cena, em diferentes épocas, o anarquista, o subversivo, o
comunista, o militante partidário interessado apenas em desestabilizar um ou
outro governo, uma ou outra regra estabelecida nas relações e na organização
das sociedades. Esses aspectos (e suas consequências) não foram diferentes nos
artigos publicados pelo execrável IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática) entre o final dos anos de 1950 e início de 1960, quando esbravejava
pela contenção e ação repressiva contra o movimento estudantil ou, pior, na
fala de Flávio Suplicy de Lacerda, ministro da Educação da Ditadura, quando
alegou que nenhum estudante havia sido expulso das universidades brasileiras,
já que todos os expurgados eram comunistas. Ora, esses eram os subversivos
mirins em voga que rondavam o imaginário dos conservadores e reacionários desde
os anos de 1940, finalmente execrados pela ação oficial do Estado e
posteriormente assassinados pelas forças da repressão.
Essas
interpretações estão vivas no presente momento, quando ao que parece, algo está
mudando. A relativa ausência, nos últimos anos, das mobilizações e dos
protestos de rua parece estar sendo revertidos em diferentes pontos do país,
ainda que de modo bastante fosco. Resta tentar perceber as motivações e os
sentidos que estão se expressando nesses movimentos.
Para
isso, temos a interpretação da imprensa e dos grupos estabelecidos no poder,
mas precisamos, certamente, de um reforço no contraponto das forças sociais em
protesto, de seus apoiadores e dos que estão dispostos a expressar suas
críticas com a atualidade. Pela falta da última, retornarei ao mais simples,
uma adaptação livre (e de modo um pouco improvisada) do discurso do deputado
socialista Rogê Ferreira, que em 1956, ao rebater as acusações de Nereu Ramos,
ministro da Justiça, de que os quebra-quebras haviam sido obras dos agitadores
e subversivos, respondeu que “não houve Sr. Ministro, na greve contra o aumento
escorchante (sic) do preço das passagens de bondes, aumento que iria beneficiar
um truste como a Brazilian Traction, a menor soma de agitação organizada, o que
houve, realmente, foi insatisfação popular, irritação popular por mais um
aumento que viria prejudicar a já minguada bolsa do povo brasileiro [...] pudemos
verificar a ordem com que se estava desenrolando o movimento de protesto.
Notamos que os estudantes, sem a polícia por perto, se mantinha em atitude
pacífica”.
O
problema é que não é possível prever o sentido que permanecerá nas interpretações
sobre os protestos atuais. Serão, amanhã, alvos dos mesmos sentidos que outrora
lhe atribuíram os anticomunistas, os reacionários, os que preferem manter as
calçadas empoeiradas ao invés de bagunçar um pouco as ruas e avenidas?
André Luiz Rodrigues de Rossi Mattos*, Sociólogo e mestrando em História.
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