Quem apronta uma primeira vez, pode aprontar de novo...
Pois bem, aqui neste espaço eu já contei a estória do
gato que visitou o passarinho, a do macaco ladrão de óculos, contei também a
estória do bandido fajuto, aquela da divisão de almas e agora trarei a baila a estória
do Niltinho buchada e o seu mui amigo Borrado
Hoje recupero um fato verídico
ocorrido há anos atrás, e que teve como protagonistas, meu sogro Bino (in memória),
meu cunhado Nilton e o serelepe Borrado (este ultimo eu nunca soube ou saberei
seu verdadeiro nome, portanto eu o tratarei por borrado, que é como ele era conhecido).
Borrado era menino levado, órfão de
pai, e acabou sendo criado pelo destino e educado pela vida, no colégio era
mestre na arte de matar aulas, e às duras penas concluiu o primeiro ano
primário, ou seja, aprendeu o abc e nada mais. Desenhava muito mal o nome, e
acabou abandonando os estudos para dedicar-se a arte do fazer nada. Mas Borrado
era moleque esperto, e apesar de não saber escrever e mal ler, era bom de matemática,
aprendeu perdendo, e foi nas divisões de bolinhas de gude, ou nas balas do dia
se São Cosme e Damião que se tornou ótimo na arte de dividir, pelo menos ótimo
para ele.
Aprendeu que para dividir onze balas
pra dois, bastava colocar uma no bolso, e o restante seria cinco pra cada um. Tornou-se
figurinha fácil no álbum da estória do bairro Soteco. Conhecia todo mundo e
tinha um bocado de amigos, e Niltinho buchada era um dos que figurava nesse
seleto e baita grupo.
A partir deste parágrafo tratarei o Niltinho
buchada, simplesmente por buchada. Quando buchada era mais novo, era um menino
miúdo, magricela e dono de uma proeminente saliência peitoral, o famoso ‘peito
de pombo’. Ele também era o queridinho do papai, muito talvez por isso ainda
meninote ganhasse uma bicicleta de presente, não era nova, mas ainda assim era
o objeto de desejo do resto da molecada.
Atrás daquele peito de pombo, o que
existia na verdade era um enorme coração, que felizmente, apesar do peito de
pombo ter sido coberto por uma grossa camada de gordura que o tempo esculpiu, o
coração do buchada continua enorme até hoje.
Já o borrado padecia do mal
do bicho carpinteiro, não sossegava, e apesar de nunca ter possuído a própria
bicicleta, nunca andava a pé. Quando não era um, era outro quem lhe emprestava,
mas o campeão de empréstimo de bicicleta para o borrado era o buchada, vira e
mexe estava lá o borrado dando os roles com a bike do buchada.
Buchada emprestou tantas vezes a
magrela para o borrado, que muitos já não sabiam se a magrela era de um ou do outro, lembro que houve situações em que
era o buchada que pedia a magrela emprestada ao borrado.
E como estava escrito, não deu
outra, foi numa dessas que o borrado aprontou para cima do amigo buchada. Borrado,
dizendo tratar-se de causa de vida ou morte pediu mais uma vez a magrela emprestada,
comprometendo-se em devolvê-la em no máximo dez minutos, Buchada emprestou sem preocupações,
mas deu um recado: “não demora porque
preciso dela logo cedo para ir trabalhar”. E foi assim que borrado tomou de
empréstimo pela última vez a magrela do amigo Buchada, e seguiu rumo ao seu
destino.
Passaram-se os dez minutos prometidos e nada do
Borrado, e trinta, e uma hora, e foi ficando tarde e mais tarde e nada do
borrado com a magrela. Lá de casa eu podia ouvir os “conselhos” que o ‘seu Bino’
dava para o Buchada: “Tá vendo, eu não ti
falei seu bobo? Eu sabia! E agora, como você vai trabalhar amanhã? Até que
demorou para isso acontecer!”. Mas o Buchada certo de que teria ocorrido
algum imprevisto argumentou que outras vezes o Borrado já havia
atrasado, mas acabava sempre devolvendo-lhe a magrela.
Ainda resmungando ‘seu’ Bino foi
deitar-se, e o Buchada deu mais um tempo na varanda de sua casa, esperançoso de
que não iria trabalhar a pé no outro dia. A cada vez que ouvia aquele som
característico de bicicletas passando na rua o pobre buchada enchia-se de
esperanças, “agora é ele, tem que ser ele” pensava, qual nada, passaram mais de
vinte bicicletas, mas o borrado que seria bom, nada.
Já era mais de meia noite quando enfim
o buchada perdeu as esperanças e foi deitar-se, mas dormir que é bom ele não
conseguia, não parava de pensar no que poderia ter acontecido, com o amigo borrado e
principalmente com sua magrela.
Amanheceu o dia e nada, e mais uma
vez lá de casa eu pude ouvir ‘seu’ Bino falando para o Buchada: “hoje você vai trabalhar com a minha bicicleta,
mas depois eu vou lá morro, sei bem onde ele mora, e terei uma conversa com a
mãe daquele traste”.
Naquele dia ‘seu’ Bino não foi, preferiu esperar mais
uns dias, talvez a situação se resolvesse sem precisar levar mais aquele
desgosto para a pobre lavadeira, que era mãe do borrado.
A semana passou e nada do borrado, e
foi aí que ‘seu’ Bino não se conteve, era um sábado à tardinha e ele se pôs
morro acima, só parando quando chegou à casa da lavadeira. “Dona Maria cadê o Borrado?”
perguntou ele, tendo como resposta um olhar choroso seguido de um: “prenderam meu menino injustamente ‘seu’
Bino, ele saiu de bicicleta no domingo pra ir a igreja, e depois
fiquei sabendo que ele foi preso porque estava andando com más companhias, eu
estou desesperada porque ele foi transferido para aquele lugar onde ficam os
malandros que mechem com coisa errada, mas ele é um menino direito, e nunca
mexeu com coisa errada, e o senhor sabe disso” disse ela.
‘Seu’ Bino já não cabia dentro das próprias calças devido àquela situação, e não se contendo foi logo adiantando o propósito da sua visita: “ dona Maria, é o seguinte, o Borrado passou lá em casa domingo à tarde e pegou a bicicleta do Nilton emprestada e não apareceu mais, e eu quero saber
quem é que vai pagar o prejuízo” disse ele. Dona Maria vendo que ‘seu’ Bino
não estava para brincadeiras tentou acalmá-lo se comprometendo em pagar o valor
do prejuízo da bicicleta, e combinaram de que ela pagaria cem reais, em dez parcelas
de dez reais, pois esse era o valor máximo mensal que ela poderia pagar.
Estando tudo combinado ‘seu’ Bino
foi pra casa, e lá chegando foi logo dizendo: “comigo
é assim, ninguém me faz de besta não, mas to até vendo, se fosse o Nilton ela teria enrolado ele e ficaria o dito pelo não dito, e é claro que seria ele que ficaria com o prejuízo, mas comigo
não, comigo o buraco é mais embaixo” disse ele.
Durante aquela semana este foi o
assunto do seu Bino, todos que ele encontrava, ou que iam até sua casa para
encomendar-lhes gaiolas, ele contava tim-tim por tim-tim a história de como ele
recuperou o dinheiro da bicicleta que o Borrado teria “roubado” do seu filho.
Coincidentemente estávamos eu e o
“seu Bino” em frente a sua casa, e como não poderia ser diferente, ele me dizia como foi a saga de ter
recuperado o dinheiro da Bicicleta do Niltinho, quando de repente o borrado apareceu por ali. Ele estava todo arrumado, roupa social e o cabelo com
aquele penteado tipo “vaca-lambeu”, debaixo do braço ele carregava uma Bíblia,
e antes que “seu Bino” dissesse alguma coisa ele ajoelho-se e foi dizendo o
quanto estaria arrependido por ter se misturado à pessoas erradas, mas, que
aquela semana que passou atrás das grades o fez ver qual é o verdadeiro
caminho, e que ele estava ali exatamente para provar que tinha mudado. Sua mãe
contou a vergonha que passou ao ser cobrada pelo ‘seu’ Bino, e ele estava ali
para resolver aquele mal entendido, afinal, agora ele era um servo de Deus.
E bem ali na minha frente, o borrado
olhou nos olhos do ‘seu’ Bino e disse: ‘seu’ Bino, eu errei, eu não tinha o
direito de aprontar essa com o buchada, nem com o senhor, mas se o senhor me
der um voto de confiança eu vou resolver tudo isso agora mesmo, e em menos de
dez minutos eu estarei aqui de volta com a bike do buchada e isso nunca mais se repetirá, eu prometo.
“Tá bom borrado, eu ti dou o voto de
confiança, vai lá e busca aquela bendita bicicleta que fica tudo certo” falou
‘seu’ Bino.
E o borrado respondeu: “antes eu preciso
de dois favores do senhor, e eu tenho certeza de que o senhor vai entender
minha situação.”
“O que você ta tramando dessa vez borrado,
fala de uma vez.” Perguntou meu sogro, e o borrado respondeu:
“sabe o que é, primeiro
é que eu to com uma fome danada, e sei que o senhor sempre tem um cafezinho
fresco e aquele pão doce, têm como o senhor me arranjar um copo com café e um
pão com manteiga?”.
Meu sogro olhou para o alto e respondeu: “ta certo borrado,
eu te dou o café, e qual é o segundo favor?”
Sabe o que é ‘seu’ Bino, é que a
bike do buchada ficou lá na boca de fumo, naquele dia eu emprestei ela pro meu
primo, e ele deixou ela como garantia, e eu estou vindo de lá, tentei convencer
ele pra me entregar a bicicleta mas não teve jeito, ele só entrega se eu pagar
os dez paus que eu to devendo. Aí eu pensei, eu vô lá, explico tudo pro pai do
buchada, e se ele concordar em me emprestar os dez reais eu busco a bike e
depois a minha mãe paga os dez reais pra ele, afinal ela teria que pagar cem reais, e o
senhor teria que esperar dez meses para receber, e fazendo do jeito que eu to propondo todo mundo fica no
lucro, será melhor pra todo mundo, o que o senhor acha? Perguntou o borrado.
Aí
o Bino pensou um pouco e falou: “me deixa ver se eu tenho o dinheiro aqui”,
olhei para o borrado e ele deu um sorrisinho maroto, e em seguida o Bino pegou
uma nota de dez reais e falou: “toma borrado, vai lá e busca a bicicleta.”
O
borrado pegou a nota de dez e perguntou: o senhor não tem duas de cinco não? E
recebeu um não como resposta mas continuo ali parado, foi quando o Bino falou:
“vai logo borrado busca a bicicleta de uma vez” e ele respondeu:
“ué seu Bino e
copo de café e o pão que o senhor prometeu? Se eu sair andando a pé com a falta
de costume que eu tenho de andar a pé, e com essa fome que eu to, eu vô é cair pela rua afora”.
Ta bom respondeu o Bino que entrou e voltou com um copo
descartável cheio de café e um pão doce. O borrado guardou os dez reais no
bolso da calça, pegou o café e o pão e falou pro Bino:
“Seu Bino, o senhor
nunca vai se arrepender por ter me dado esta chance, a partir de hoje eu sou outra
pessoa.” E saiu rua a fora comendo o pão e tomando o café.
Eu me despedi do Bino e fui pra
casa, e mais tarde ouvi uns gritos que vinham lá da casa do meu sogro:
Eu mato aquele ladrão sem vergonha gritava “seu Bino” enquanto o Buchada
satirizou, ué não é o senhor que é o cara, que não deixa por menos, que o buraco é mais embaixo? ta vendo,
agora além da minha bike o danado do borrado ainda te levou mais dez mangos.
E o Bino ainda lembrou: "aquele disinfeliz ainda foi embora tomando o meu café e comendo meu pão doce, se eu pego eu mato" esbravejou.
Alguém já tinha avisado para o meu
sogro que viu quando o borrado subiu na carroceria de um caminhão que estava
levando a mudança da Maria lavadeira, e o destino seria o
interior de Minas.
E foi assim que o sacana do borrado travestido
de crente e com uma bíblia debaixo dos braços aplicou aquele que seria o
seu ultimo golpe por essas bandas dos canelas verdes.
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Dag Vulpi