Por Thiago Solon Gonçalves
Albeche*
Ao apagar das luzes de 2012, no dia 21 de
dezembro, foi publicada, com vigência imediata, a nova Lei 12.760, que alterou
dispositivos do Código de Trânsito.
Os presentes comentários concentrar-se-ão
na alteração legislativa perpetrada quanto ao crime de embriaguez ao volante
previsto no artigo 306 do Código Nacional de Trânsito. Assim, importante
analisar as modificações nos elementos normativos do tipo previstos neste
dispositivo para que se possa extrair uma interpretação consentânea tanto com
os fins da lei quanto com as garantias individuais do cidadão.
O
artigo 306 do CTB, com sua até então vigente redação, assim estava disposto:
“Artigo
306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de
álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
(...)”
Pela
redação revogada, o crime de embriaguez ao volante estava caracterizado toda
vez que fosse constatada a concentração de 6 decigramas de álcool por litro de
sangue. Era necessário que esta concentração numérica fosse devidamente
comprovada. Para que isto fosse possível, apenas o exame de sangue e o
bafômetro eram considerados meio de prova adequado para alcançar a conclusão
exigida pelo tipo penal. Esta foi a posição que prevaleceu na jurisprudência,
superando a divergência inicial diante do entendimento de que a prova
testemunhal também poderia demonstrar a embriaguez. Prevaleceu a interpretação
restritiva do tipo penal e, efetivamente, os 6 decigramas de álcool por litro
de sangue somente com exame de sangue ou teste do etilômetro poderiam ser
constatados. Ilustrativa, é a seguinte jurisprudência firmada no Superior
Tribunal de Justiça:
AGRAVO
REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE.
ART.
306 DA LEI N.º 9.503/97. DOSAGEM ALCÓOLICA. AFERIÇÃO. AUSÊNCIA DE SUJEIÇÃO AO
BAFÔMETRO. INEXISTÊNCIA DE EXAME DE SANGUE. ÍNDICE APURADO DIANTE DOS SINAIS
CLÍNICOS E MANIFESTAÇÕES FÍSICAS E PSÍQUICAS DO AVALIADO. IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE.
AUSÊNCIA.
1.
Com a redação conferida ao artigo 306 do CTB pela Lei 11.705/2008, tornou-se
imperioso, para o reconhecimento de tipicidade do comportamento de embriaguez
ao volante, a aferição da concentração de álcool no sangue. Ausente a sujeição
a etilômetro ou a exame de sangue, torna-se inviável a responsabilização
criminal. Entendimento consolidado pela colenda Terceira Seção deste STJ, no
julgamento do REsp 1.111.566/DF, representativo de controvérsia, nos moldes do
art. 543-C do Código de Processo Civil.
2.
Agravo regimental improvido.
(AgRg
no REsp 1205216/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA
TURMA, julgado em 18/10/2012, DJe 26/10/2012)
Deste
modo, sem exame de sangue ou teste do bafômetro, não havia como impor qualquer
pena ao condutor que não fosse submetido a tais procedimentos, mesmo que
houvesse ingerido bebida alcoólica.
Nova
redação
“Art.
306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência (...)”
A
novidade no tipo penal está na retirada do caput da concentração de 6
decigramas de álcool por litro de sangue. Agora, o dispositivo exige que o
condutor esteja com a “capacidade psicomotora alterada em razão da influência
de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.
Note-se
que, ao invés de um tipo penal engessado, que exigia a prova numérica e
quantitativa da concentração de álcool, passou-se a admitir a influência do
álcool afetando a capacidade psicomotora do condutor para que esteja
configurado o delito.
Não
bastasse isso, a alteração legislativa fez questão de frisar o alargamento dos
meios de prova que poderão ser utilizados para a comprovação da embriaguez ao
volante:
Ҥ
2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de
alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de
prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.”
Ainda
que desnecessário este dispositivo, uma vez que no sistema processual vigora o
princípio da liberdade de provas, desde que lícitas e morais, a redundância
demonstra preocupação do legislador não só em evitar dúvidas quanto às
possibilidades probatórias, como indicar meios de prova que se revelam úteis
para demonstrar situações de embriaguez. É o caso da previsão de admissão de
vídeos para comprovação da alteração do estado psicomotor do condutor. De
qualquer forma, peque-se por excesso e não por omissão. Bem vinda a previsão.
O
fato é que não é mais necessária a realização do bafômetro ou exame de sangue
para que haja a prisão em flagrante por crime de embriaguez ao volante. Se
antes bastava a negativa pelo condutor em se submeter a tais exames, diante do
principio de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, hoje basta a
existência de prova testemunhal para que haja, no mínimo, a condução do
indivíduo até a Delegacia de Polícia para deliberação pela Autoridade Policial.
A
grande questão será apurar quando o conduzido está com a sua capacidade
psicomotora alterada pelo uso de álcool ou de outra substância psicoativa que
cause dependência.
Duas
questões importantes devem ser colocadas.
A
primeira é que o norte orientador para a averiguação da alteração psicomotora
está na Resolução 206 de 20 de outubro de 2006 do Conselho Nacional de Trânsito
(Contran) que, em seu anexo, elenca diversas diretivas para tal aferição.
Citando algumas, exemplificativamente, estão aspectos quanto à aparência
(sonolência, olhos vermelhos, vômitos, soluços, desordem nas vestes, odor de
álcool no hálito), atitude (agressividade, arrogância, exaltação, ironia,
dispersão), orientação (se o condutor sabe onde está, sabe a data e a hora),
dentre outros. Desta forma, já se tem diversos aspectos que devem ser sopesados
para a aferição da alteração do estado psicomotor.
A
segunda questão e que pode gerar polêmica foi a insistência legislativa em
manter no dispositivo, ainda que num parágrafo, menção à concentração de 6
decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 miligramas de álcool por litro
de ar alveolar[1]. Veja-se a redação:
Ҥ
1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I
— concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue
ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II
— sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da
capacidade psicomotora.”
Note-se
que o parágrafo primeiro do artigo 306 do Código de Trânsito, expressamente,
refere que as condutas previstas no caput serão constatadas por concentração
igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou
superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar.
Como
as condutas previstas no caput são conduzir veículo automotor com capacidade
psicomotora alterada, e o parágrafo 1º e seu inciso I dizem que esta conduta
pode ser aferida quando constatada concentração igual ou superior a 6
decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama
de álcool por litro de ar alveolar, surge a questão:
Uma
vez realizado o exame de sangue ou teste do bafômetro e comprovadas as
concentrações de álcool já mencionadas, estará automaticamente configurado o
crime de embriaguez no volante? É dizer: alcançados aqueles patamares de concentração
etílica, há uma presunção de que a capacidade psicomotora está alterada? Esta
presunção é relativa ou absoluta?
Para
se chegar a uma conclusão, singelas e objetivas considerações são imperiosas.
Em
primeiro lugar, note-se que a exigência de concentração mínima de álcool no
organismo do condutor foi retirada do caput do artigo 306, CTB. Logo, o
legislador não quis mais lidar com este parâmetro para a caracterização do
crime. Ao invés de um parâmetro rígido, engessado e enclausurado em números (teor
alcoólico), adotou um parâmetro flexível e consentâneo com a realidade das ruas
e que realmente desencadeia acidentes e mortes: a influência do álcool na
direção de veículo automotor.
Neste
contexto, trabalhar com a idéia de que, uma vez constatados 6 decigramas de
álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por
litro de ar alveolar, o crime estará caracterizado de plano, é desconstruir a
alteração que o legislador fez no caput do artigo 306, CTB. A opção legislativa
foi de privilegiar a influência de álcool alteradora dos sentidos, e não
números rígidos de concentração alcoólica. Isto porque haverá indivíduos com
tolerância mais acentuada ou não ao álcool que poderão apresentar concentração
etílica muito superior aos níveis previstos na lei e, nem assim, apresentarão
comprometimento das atividades psicomotoras. Outros, com dois copos de cerveja,
terão exaltação ou torpor suficiente para causar sensível alteração em suas
habilidades mentais e físicas e, desde já, ficarem inaptos a guiar veículos
automotores.
Deste
modo, tem-se que a mera constatação dos níveis de 6 decigramas de álcool por
litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar
alveolar não constitui presunção absoluta de atividade psicomotora alterada
pelo uso de álcool. Isto pode não se confirmar no mundo dos fatos e a lei não
pode se dissociar desta realidade.
Ademais,
as regras mais elementares de hermenêutica determinam que o caput (cabeça do
artigo) é o fio condutor para a interpretação de seus parágrafos e incisos.
Neste contexto, se a cabeça do artigo fez uma escolha em privilegiar o critério
da alteração da atividade psicomotora, presumir que concluída pela mera
constatação dos níveis de álcool já mencionados seria ir contra a própria razão
da alteração legislativa. A mens legis aponta para alteração dos sentidos
comprovada no caso concreto e até mesmo quando a concentração de álcool seja
inferior àquela estipulada no inciso I do parágrafo primeiro do artigo 306 do
CTB.
Conclusão
Com isto, a conclusão a que se chega é que, uma vez constatados os níveis de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, está-se diante de uma presunção relativa de que existe alteração da atividade psicomotora. Esta constatação constituir-se-ia em um importantíssimo indício que, bastasse ser corroborado por qualquer outro elemento (especialmente aqueles previstos na Resolução 206/2006 do Contran), garantiria o mínimo probatório apto a autorizar uma prisão em flagrante e o decurso do inquérito policial e ação penal pelo crime de embriaguez ao volante.
Com isto, a conclusão a que se chega é que, uma vez constatados os níveis de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, está-se diante de uma presunção relativa de que existe alteração da atividade psicomotora. Esta constatação constituir-se-ia em um importantíssimo indício que, bastasse ser corroborado por qualquer outro elemento (especialmente aqueles previstos na Resolução 206/2006 do Contran), garantiria o mínimo probatório apto a autorizar uma prisão em flagrante e o decurso do inquérito policial e ação penal pelo crime de embriaguez ao volante.
Repete-se:
a alteração do artigo 306 do CTB abandonou o critério fechado do índice de teor
alcoólico, privilegiando o critério da alteração da atividade psicomotora.
Neste contexto, o teor alcoólico verificado no exame de sangue e teste do
bafômetro servirão, no máximo, como certeza da ingestão de bebida alcoólica,
mas não prova cabal da alteração da atividade psicomotora. Os níveis de concentração
etílica previstas no inciso I do parágrafo primeiro do artigo 306 do Código de
Trânsito geram mera presunção relativa de alteração da atividade psicomotora,
podendo ser desconfigurada quando demonstrado que o condutor está situado no
tempo, espaço, local, não possui fala arrastadas, estado de sonolência ou
qualquer outro sinal indicativo de alteração das suas habilidades motoras e
mentais, nos termos da Resolução 206/2006 do Contran.
É
esta uma interpretação que se acredita mais consentânea com o que é revelado
pela praxis envolvendo crimes de trânsito, bem como garante elementos mais
seguros para a aferição da culpabilidade do condutor. E isto, não há dúvidas,
se revela vital no sistema processual penal, pois somente uma culpabilidade
apurada com o máximo de segurança e garantias possíveis é que poderá
relativizar a Presunção de Inocência de que é detentor todo indivíduo que
interage num contexto social baseado no Estado Democrático de Direito.
[1] A
concentração alveolar é inovação trazida pela nova lei para referir-se aos
índices obtidos no etilômetro (bafômetro).
Thiago Solon Gonçalves Albeche* é
delegado de Polícia do Rio Grande do Sul. Professor Universitário.
Revista Consultor
Jurídico, 15 de janeiro de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi