terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Alcool no sangue não prova alteração psicomotora

Por Thiago Solon Gonçalves Albeche* 
Ao apagar das luzes de 2012, no dia 21 de dezembro, foi publicada, com vigência imediata, a nova Lei 12.760, que alterou dispositivos do Código de Trânsito.


Os presentes comentários concentrar-se-ão na alteração legislativa perpetrada quanto ao crime de embriaguez ao volante previsto no artigo 306 do Código Nacional de Trânsito. Assim, importante analisar as modificações nos elementos normativos do tipo previstos neste dispositivo para que se possa extrair uma interpretação consentânea tanto com os fins da lei quanto com as garantias individuais do cidadão. 

O artigo 306 do CTB, com sua até então vigente redação, assim estava disposto:
 “Artigo 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. (...)”



Pela redação revogada, o crime de embriaguez ao volante estava caracterizado toda vez que fosse constatada a concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Era necessário que esta concentração numérica fosse devidamente comprovada. Para que isto fosse possível, apenas o exame de sangue e o bafômetro eram considerados meio de prova adequado para alcançar a conclusão exigida pelo tipo penal. Esta foi a posição que prevaleceu na jurisprudência, superando a divergência inicial diante do entendimento de que a prova testemunhal também poderia demonstrar a embriaguez. Prevaleceu a interpretação restritiva do tipo penal e, efetivamente, os 6 decigramas de álcool por litro de sangue somente com exame de sangue ou teste do etilômetro poderiam ser constatados. Ilustrativa, é a seguinte jurisprudência firmada no Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE.
ART. 306 DA LEI N.º 9.503/97. DOSAGEM ALCÓOLICA. AFERIÇÃO. AUSÊNCIA DE SUJEIÇÃO AO BAFÔMETRO. INEXISTÊNCIA DE EXAME DE SANGUE. ÍNDICE APURADO DIANTE DOS SINAIS CLÍNICOS E MANIFESTAÇÕES FÍSICAS E PSÍQUICAS DO AVALIADO. IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE. AUSÊNCIA.

1. Com a redação conferida ao artigo 306 do CTB pela Lei 11.705/2008, tornou-se imperioso, para o reconhecimento de tipicidade do comportamento de embriaguez ao volante, a aferição da concentração de álcool no sangue. Ausente a sujeição a etilômetro ou a exame de sangue, torna-se inviável a responsabilização criminal. Entendimento consolidado pela colenda Terceira Seção deste STJ, no julgamento do REsp 1.111.566/DF, representativo de controvérsia, nos moldes do art. 543-C do Código de Processo Civil.

2. Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1205216/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 18/10/2012, DJe 26/10/2012)
Deste modo, sem exame de sangue ou teste do bafômetro, não havia como impor qualquer pena ao condutor que não fosse submetido a tais procedimentos, mesmo que houvesse ingerido bebida alcoólica.

Nova redação
“Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência (...)”
A novidade no tipo penal está na retirada do caput da concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Agora, o dispositivo exige que o condutor esteja com a “capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Note-se que, ao invés de um tipo penal engessado, que exigia a prova numérica e quantitativa da concentração de álcool, passou-se a admitir a influência do álcool afetando a capacidade psicomotora do condutor para que esteja configurado o delito.

Não bastasse isso, a alteração legislativa fez questão de frisar o alargamento dos meios de prova que poderão ser utilizados para a comprovação da embriaguez ao volante:
“§ 2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.”

Ainda que desnecessário este dispositivo, uma vez que no sistema processual vigora o princípio da liberdade de provas, desde que lícitas e morais, a redundância demonstra preocupação do legislador não só em evitar dúvidas quanto às possibilidades probatórias, como indicar meios de prova que se revelam úteis para demonstrar situações de embriaguez. É o caso da previsão de admissão de vídeos para comprovação da alteração do estado psicomotor do condutor. De qualquer forma, peque-se por excesso e não por omissão. Bem vinda a previsão.

O fato é que não é mais necessária a realização do bafômetro ou exame de sangue para que haja a prisão em flagrante por crime de embriaguez ao volante. Se antes bastava a negativa pelo condutor em se submeter a tais exames, diante do principio de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, hoje basta a existência de prova testemunhal para que haja, no mínimo, a condução do indivíduo até a Delegacia de Polícia para deliberação pela Autoridade Policial.

A grande questão será apurar quando o conduzido está com a sua capacidade psicomotora alterada pelo uso de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência.

Duas questões importantes devem ser colocadas.
A primeira é que o norte orientador para a averiguação da alteração psicomotora está na Resolução 206 de 20 de outubro de 2006 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) que, em seu anexo, elenca diversas diretivas para tal aferição. Citando algumas, exemplificativamente, estão aspectos quanto à aparência (sonolência, olhos vermelhos, vômitos, soluços, desordem nas vestes, odor de álcool no hálito), atitude (agressividade, arrogância, exaltação, ironia, dispersão), orientação (se o condutor sabe onde está, sabe a data e a hora), dentre outros. Desta forma, já se tem diversos aspectos que devem ser sopesados para a aferição da alteração do estado psicomotor.

A segunda questão e que pode gerar polêmica foi a insistência legislativa em manter no dispositivo, ainda que num parágrafo, menção à concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar[1]. Veja-se a redação:

“§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I — concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou

II — sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.”

Note-se que o parágrafo primeiro do artigo 306 do Código de Trânsito, expressamente, refere que as condutas previstas no caput serão constatadas por concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar.

Como as condutas previstas no caput são conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada, e o parágrafo 1º e seu inciso I dizem que esta conduta pode ser aferida quando constatada concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, surge a questão:

Uma vez realizado o exame de sangue ou teste do bafômetro e comprovadas as concentrações de álcool já mencionadas, estará automaticamente configurado o crime de embriaguez no volante? É dizer: alcançados aqueles patamares de concentração etílica, há uma presunção de que a capacidade psicomotora está alterada? Esta presunção é relativa ou absoluta?

Para se chegar a uma conclusão, singelas e objetivas considerações são imperiosas.

Em primeiro lugar, note-se que a exigência de concentração mínima de álcool no organismo do condutor foi retirada do caput do artigo 306, CTB. Logo, o legislador não quis mais lidar com este parâmetro para a caracterização do crime. Ao invés de um parâmetro rígido, engessado e enclausurado em números (teor alcoólico), adotou um parâmetro flexível e consentâneo com a realidade das ruas e que realmente desencadeia acidentes e mortes: a influência do álcool na direção de veículo automotor.

Neste contexto, trabalhar com a idéia de que, uma vez constatados 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, o crime estará caracterizado de plano, é desconstruir a alteração que o legislador fez no caput do artigo 306, CTB. A opção legislativa foi de privilegiar a influência de álcool alteradora dos sentidos, e não números rígidos de concentração alcoólica. Isto porque haverá indivíduos com tolerância mais acentuada ou não ao álcool que poderão apresentar concentração etílica muito superior aos níveis previstos na lei e, nem assim, apresentarão comprometimento das atividades psicomotoras. Outros, com dois copos de cerveja, terão exaltação ou torpor suficiente para causar sensível alteração em suas habilidades mentais e físicas e, desde já, ficarem inaptos a guiar veículos automotores.

Deste modo, tem-se que a mera constatação dos níveis de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar não constitui presunção absoluta de atividade psicomotora alterada pelo uso de álcool. Isto pode não se confirmar no mundo dos fatos e a lei não pode se dissociar desta realidade.

Ademais, as regras mais elementares de hermenêutica determinam que o caput (cabeça do artigo) é o fio condutor para a interpretação de seus parágrafos e incisos. Neste contexto, se a cabeça do artigo fez uma escolha em privilegiar o critério da alteração da atividade psicomotora, presumir que concluída pela mera constatação dos níveis de álcool já mencionados seria ir contra a própria razão da alteração legislativa. A mens legis aponta para alteração dos sentidos comprovada no caso concreto e até mesmo quando a concentração de álcool seja inferior àquela estipulada no inciso I do parágrafo primeiro do artigo 306 do CTB.

Conclusão
Com isto, a conclusão a que se chega é que, uma vez constatados os níveis de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, está-se diante de uma presunção relativa de que existe alteração da atividade psicomotora. Esta constatação constituir-se-ia em um importantíssimo indício que, bastasse ser corroborado por qualquer outro elemento (especialmente aqueles previstos na Resolução 206/2006 do Contran), garantiria o mínimo probatório apto a autorizar uma prisão em flagrante e o decurso do inquérito policial e ação penal pelo crime de embriaguez ao volante.

Repete-se: a alteração do artigo 306 do CTB abandonou o critério fechado do índice de teor alcoólico, privilegiando o critério da alteração da atividade psicomotora. Neste contexto, o teor alcoólico verificado no exame de sangue e teste do bafômetro servirão, no máximo, como certeza da ingestão de bebida alcoólica, mas não prova cabal da alteração da atividade psicomotora. Os níveis de concentração etílica previstas no inciso I do parágrafo primeiro do artigo 306 do Código de Trânsito geram mera presunção relativa de alteração da atividade psicomotora, podendo ser desconfigurada quando demonstrado que o condutor está situado no tempo, espaço, local, não possui fala arrastadas, estado de sonolência ou qualquer outro sinal indicativo de alteração das suas habilidades motoras e mentais, nos termos da Resolução 206/2006 do Contran.

É esta uma interpretação que se acredita mais consentânea com o que é revelado pela praxis envolvendo crimes de trânsito, bem como garante elementos mais seguros para a aferição da culpabilidade do condutor. E isto, não há dúvidas, se revela vital no sistema processual penal, pois somente uma culpabilidade apurada com o máximo de segurança e garantias possíveis é que poderá relativizar a Presunção de Inocência de que é detentor todo indivíduo que interage num contexto social baseado no Estado Democrático de Direito.

[1] A concentração alveolar é inovação trazida pela nova lei para referir-se aos índices obtidos no etilômetro (bafômetro).
Thiago Solon Gonçalves Albeche* é delegado de Polícia do Rio Grande do Sul. Professor Universitário.
Revista Consultor Jurídico, 15 de janeiro de 2013


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