NOVA JUSTIÇA
Por Fernando Cesar Baptista de Mattos e
Vilian Bollmann*
A evolução histórica da humanidade revela
uma aparente ampliação do debate acerca da legitimidade do Estado e das
instituições sociais que detém e exercem o poder[1]. As
pressões sociais pela participação na tomada de decisões levam, cada vez mais,
a uma consolidação do exercício da democracia como elemento de regulação dos
embates políticos. Neste caminho, influenciado pelas contínuas transformações
da sociedade, o Constitucionalismo[2] sofreu
diversas alterações no tempo, especialmente no que se refere à ampliação da
esfera de atuação do Poder Judiciário bem como à necessidade de observância do
princípio democrático.
Por outro lado, muito embora cresça o
consenso quanto à necessidade de estabelecimento e perenidade da democracia,
não há, ainda, um discurso claro sobre o que significa este regime e nem
tampouco como este discurso teórico deve se concretizar na prática,
especialmente no âmbito das instituições que compõem o Estado.
Neste processo é possível apontar algumas
direções, ainda que elas possam trazer contradições entre si e não formem um
todo sistemático. A questão não é achar uma resposta definitiva (objetivo que
seria no mínimo ingênuo e, no limite, arbitrário[3]),
mas sim a possibilidade de formação de um discurso que tenha possibilidade de
aplicação no mundo da vida e, mais particularmente, no cotidiano do Poder
Judiciário.
O fio condutor do presente trabalho é a de
que a democracia é um processo e não uma simples instituição, e que ela permeia
tanto a sociedade quanto pequenos grupos sociais, em qualquer aspecto em que o
poder é exercido.
Para isso, após uma breve exposição das
características principais do conceito de Democracia no plano da Filosofia
Política e do Direito Constitucional Positivo e do papel do Judiciário,
buscar-se-á apresentar algumas possibilidades para implementação de uma gestão
democrática do Judiciário, tanto no plano de sua atividade-fim, quanto a
aspectos de suas atividades-meio.
A ideia e a prática da democracia
A democracia é um termo utilizado tanto
para designar um tipo de regime político quanto uma teoria política. Ambos
partem do pressuposto de que os governos são legítimos quando as pessoas
afetadas pelas decisões coletivas participam do processo de sua formulação[4]. Em função da competição política nos regimes
democráticos, a existência de oposição representa um mecanismo de controle que
obriga a prestação de contas pelos detentores do poder político[5]. Essa democracia competitiva facilita a discussão sobre
os argumentos utilizados pelos políticos, obrigando-os a justificar as suas
decisões[6].
O princípio fundamental da democracia é o
de que, nas questões que afetam a vida e os interesses coletivos, o povo sabe
se governar[7]. Ou seja, a legitimação do Estado decorre
da soberania popular, que seria, em última instância, o verdadeiro detentor do
poder[8]. Contra esse princípio, argumenta-se que, em
certos assuntos, o povo não saberia decidir adequadamente (argumento do
comandante do navio)[9]. Este argumento contrário a uma
“democracia total” foi inicialmente desenvolvido por Platão na sua obra A
República. Segundo ele, por analogia, o povo seria como tripulantes de um navio
que, por não terem ideia de que existe uma ciência da navegação, em vez de
estudarem os astros, as estações do ano e os ventos para guiar o barco,
discutem, entre si, para ver quem comandará o navio, embora todos se achem mais
aptos do que os demais[10]. Para Platão, o bem supremo
é o conhecimento e a democracia acaba sendo regida pelo princípio da bajulação
das massas, geralmente incapazes de aceitar ou ver a verdade[11].
Decorre do princípio da democracia a regra
da maioria, isto é, as decisões são feitas a partir da vontade da maior parte
dos votantes. Para os antigos, o regime democrático implicava que as decisões
fossem tomadas em assembléias com a participação de todos; o que não seria
possível em estados com grande extensão territorial. Porém, a partir da
experiência norte-americana, foi iniciada, com os escritos dos Federalistas,
uma distinção entre democracia e República. Esta permitiria a representação.
Mais tarde, passa-se a admitir que a forma representativa também é democracia[12].
Um argumento que se opõe à regra da maioria
é o da tirania da maioria, isto é, o fato de que as minorias ficariam sujeitas
à vontade das maiorias. Por isso, alega-se que a democracia seria, em certa
medida, inimiga dos direitos individuais[13]. Esse
perigo pode ser reduzido por alguns instrumentos antimajoritários, tais como a
previsão de mecanismos de veto institucionais entre os poderes (freios e
contrapesos), constitucionalização de direitos individuais cuja alteração seja
possível somente por um quorum qualificado e atribuição para um órgão
independente (tribunal constitucional) da tarefa de manter estes limites[14]. Este argumento é utilizado por Dworkin para atacar a
concepção de direito que, em nome de um tipo de democracia, limita as decisões
políticas e morais aos órgãos responsabilizáveis. Para ele, porém, diante da
equidade, as decisões que digam respeito a direitos contra a maioria não podem
ser deixados para a própria maioria[15].
Dworkin sugere uma dupla classificação de
concepções de democracia. Uma concepção dependente de democracia é a que tenha
a maior probabilidade de produzir decisões substantivas que tratem com igual
consideração os membros da comunidade, exigindo, portanto, sufrágio universal,
liberdade de expressão e outros direitos inerentes[16].
Uma concepção separada de democracia julga o processo político apenas pelas
suas próprias características, e não pelo resultado que dele pode surgir[17]. Assim, enquanto a concepção separada avalia a partir
de um teste inicial, a dependente avalia por um teste de chegada, ou seja, a
democracia é um conjunto de dispositivos para produção de resultados do tipo
certo[18]. Por conta dessas diferenças, a concepção
separada é mais popular e a concepção dependente gera mais controvérsias[19]. Essa distinção de Dworkin corresponde à distinção
entre democracia formal e democracia substancial. Numa discussão sobre os fins
e valores que movem um grupo político, o discurso sobre democracia distingue a
democracia formal que trata da forma de governar (como se governa) e a
substancial, que diz quais os fins para que se governa (o conteúdo da forma de
governo)[20].
Como se vê, muito embora a expressão
“Democracia” tenha uma carga valorativa positiva, gerando um consenso sobre a
sua importância, o seu detalhamento contém diversos aspectos sobre os quais há
divergência.
No plano do Direito positivo, notadamente
no Constitucional, a democracia foi uma opção política explícita tomada pelos
constituintes em 1988, tanto que assim a expressam no Preâmbulo da Constituição
da República Federativa do Brasil (CR). De fato, o texto constitucional é
aberto com a menção de que a República constitui-se num “Estado Democrático de
Direito” (art. 1º) e que os entes federados deverão zelar pela Constituição e
pelas instituições democráticas (art. 23, I). Aliás, se os Estados atuarem contra
o regime democrático, poderão ser alvos de intervenção Federal (art. 34, VII,
a).
A democracia, enquanto regime político
valorizado pelo constituinte, foi alçado à proteção especial, seja pela
hipótese de previsão de inafiançabilidade e imprescritibilidade da ação de
grupos armados contra o Estado democrático (art. 5º, XLIV), seja pela vedação
de partidos políticos que não resguardem o regime democrático (art. 17) ou que
não haja norma tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico
(art. 60, §4º, II)[21].
É importante notar que a ideia democrática
não está restrita ao exercício do direito de votar e ser votado, mas também na
ordem constitucional para que certas instituições sejam geridas com a
participação dos interessados. Com efeito, a seguridade social, como conjunto
de ações de iniciativa do Estado e da sociedade, deve ser administrado de forma
democrática, mediante gestão quadripartite (art. 194, p. único, VII). Também
deve ser gerido democraticamente o ensino público (art. 206, VI) e o acesso aos
bens culturais (art. 215, §3º, IV). Além disso, a participação popular também
se dá na forma de consultas (iniciativa popular, referendo e plebiscito),
previstas na Constituição (art. 14) e regulamentadas pela Lei 9.709/1998.
Por fim, como um dos mais importantes
instrumentos de salvaguarda das minorias ou dos indivíduos em face da regra da
maioria, a Constituição de 1988 prevê a impossibilidade de edição de norma para
certos assuntos, ainda que a ofensa seja potencial (= “tendente a abolir”). Por
isso, são previstas as chamadas cláusula pétreas, ou seja, normas
constitucionais imunes a alterações futuras, constitucionais ou legais, que
abrangem a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e
periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais (art.
60, §4º)[22].
O Judiciário no Estado Contemporâneo
O Poder Judiciário sempre foi caracterizado
como o conjunto de atribuições do Estado destinado a compor litígios concretos,
ou seja, órgão estatal cuja função jurídica e social é de individualizar as
normas gerais e abstratas emanadas do Poder Legislativo para dizer a solução de
um conflito específico que lhe foi trazido.
Porém, um novo papel foi exigido do Poder
Judiciário nas sociedades contemporâneas[23]. Houve uma
invasão da política pelo Direito em função evolução do Estado de bem-estar. A
profusão de direitos sociais e o ideal de um Estado regido por uma Constituição
dirigente produziram novas exigências por parte da sociedade e uma
transformação do Estado legal para um Estado Constitucional.
Nele, o Executivo e Legislativo buscam
regrar os processos econômicos de forma simultânea ao seu acontecimento.
Orientam-se, para essa regulação, não pelo tempo passado, mas pelo tempo
futuro. Com isso, surgem as leis experimentais de caráter temporário e a
utilização cada vez maior de conceitos jurídicos indeterminados.
Cada vez mais é exigido o cumprimento das
promessas da Jurisdição de pacificação, da qual surgem os chamados escopos do
processo, isto é, (1) o escopo social, pelo qual o processo se torna elemento
para educação dos direitos próprios e alheios; (2) os escopos políticos,
caracterizados tanto pela preservação da liberdade individual de cada um,
quanto de participação de todos nos destinos da nação, e, ainda, (3) o escopo
jurídico do processo, pelo qual este atua a fim de fazer valer a vontade
concreta do direito.
Como consequência, aumentam os litígios
trazidos pela sociedade civil ao Judiciário, deslocando o poder de decisão
política para este, já que ele dará a palavra final. Aliados a este fenômeno
que tornou o juiz um legislador implícito, surgem, também, (1) a positivação de
princípios jurídicos e direitos fundamentais nas constituições modernas,
ampliando os limites de interpretação jurídica direcionada a um imaginário do
ético e do justo, e (2) a massificação da tutela jurídica nos conflitos
coletivos, transformando o Judiciário em uma alternativa para o exercício do
jogo político.
Neste sentido, enquanto face do Estado
(art. 2º, CR), o Poder Judiciário está orientado não só pelos ditames que regem
toda a administração pública (art. 37, CR) — legalidade, moralidade,
impessoalidade, finalidade e eficiência — e pelos objetivos previstos para a
República (art. 3º, CR) — construir uma sociedade livre, justa e solidária, com
desenvolvimento nacional e igualdade social, erradicando a pobreza e a
marginalização para promover o bem de todos, sem discriminação —, mas também
pelos deveres específicos e inerentes à sua atividade precípua, dentre eles,
motivar, pública e fundamentadamente, suas decisões (art. 93, IX e X, CR), que
são a última instância de proteção dos direitos (art. 5º, XXXV, CR), fazendo-o
dentro de um tempo razoável (art. 5º, LXXVIII, CR).
Como integrante do Estado, é possível
classificar os atos oriundos do Poder Judiciário sob duas categorias, conforme
seja, ou não, uma decisão inerente à sua atividade precípua (composição de litígios):
(1) atos ligados à atividade-fim (= ato jurisdicional), ou seja, dizer o
direito dentro de uma relação jurídica controvertida, como um terceiro externo
ao conflito; (2) atos ligados a atividades-meio, ou seja, atos administrativos
de gestão do aparelho burocrático que compõe os órgãos judiciais. Por isso, o
exame da democratização do Poder Judiciário pode ser feito sob dois prismas
distintos, conforme o tipo de ato a que se refere.
A democratização do Judiciário na sua atividade-fim
Partindo-se da premissa lógica e prática de
que a atividade judicial não pode ser substituída por uma máquina ou por
decisões de assembleias permanentes e censitárias[24],
a democratização do Poder Judiciário na sua atividade-fim não significa trocar
o sujeito emissor dos juízos de valor e de fato, mas sim assegurar que as formas
de participação popular sejam mantidas e ampliadas. Isso não significa
simplesmente aumentar o direito à ampla defesa e ao contraditório, já previstos
na Constituição (art. 5º, LV), mas sim o de permitir que os instrumentos
processuais hoje existentes sejam transformados a fim de garantir a
permeabilidade das decisões à soberania popular.
Para isso, os seguintes instrumentos podem
ser utilizados como técnicas para ampliação dos espaços democráticos no âmbito
da atividade-fim da jurisdição: (1) efetivação e observância das regras da
teoria do discurso; (2) audiências públicas; (3) ampliação dos amicus
curiae; (3) priorização das ações coletivas sobre as individuais; (4) acesso à
Justiça; (5) desconcentração das competências do STF; e (6) aprimoramento dos
procedimentos de seleção e composição do STF.
Um dos primeiros aspectos é a
interiorização definitiva nas regras lógicas do discurso e das teorias da
argumentação no âmbito do Judiciário[25]. Como a
repercussão social da decisão é proporcional à posição ocupada pelo órgão
judicial dentro da estrutura do Poder Judiciário, maior é a necessidade de que
os tribunais de cúpula observem os princípios democráticos.
Outro ponto fundamental para a
democratização do Poder Judiciário no âmbito de sua atividade-fim é a
realização de audiências públicas, que asseguram uma maior participação dos
entes sociais potencial ou efetivamente atingidos pela decisão de um conflito.
Este mecanismo é relevante especialmente em duas situações: (1) processos
coletivos ligados à defesa de direitos difusos, coletivos ou individuais
homogêneos, notadamente os veiculados por intermédio de ação civil pública; e
(2) processos de índole constitucional, tanto no caso de controle objetivo e
concentrado da constitucionalidade de normas quanto no controle subjetivo e
difuso[26].
Nesta mesma linha, já está incorporada na
prática jurídica brasileira a figura do amicus curiae. Do original latino
que significa “amigo da corte”, esta figura representa a possibilidade de
terceiros, não incluídos na lide processual, ingressarem na demanda a fim de se
manifestar sobre a questão jurídica de fundo. Está prevista na Lei 9.868/99,
que, ao regular o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade
e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal, previu, expressamente que “O relator, considerando a relevância da
matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho
irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a
manifestação de outros órgãos ou entidades” (art. 7º, § 2º). Nota-se, portanto,
a possibilidade de participação da sociedade civil com voz no curso do
procedimento de formação da vontade/decisão judicial que poderá lhe afetar.
Assim, uma democratização do processo
sugere, por exemplo, que, em vez de aguardar a manifestação de eventuais
interessados, o próprio relator dê ampla divulgação ao tema discutido e oficie
a entes representativos a fim de colher suas opiniões. Abre-se a discussão para
argumentos que possibilitem uma decisão afinada com os ditames de ordem social
que estejam sob a influência deste julgamento. Por exemplo, em ações que
envolvam matéria previdenciária, é possível cogitar-se de manifestações de
associações de aposentados; nas que envolvam créditos do sistema financeiro de
habitação, permite-se sejam apresentadas razões por associações de mutuários e
também pelas instituições financeiras envolvidas direta ou indiretamente.
Há, também, uma necessidade de priorização
das ações coletivas em face das individuais, otimizando os recursos do Poder
Judiciário e simultaneamente resguardando o princípio material da igualdade. De
fato, as ações coletivas foram esvaziadas pela prática jurídica em razão da
legislação ultrapassada. Logo, a sua revalorização não pode ser apenas no plano
teórico que busca criar ritos que reproduzem os conceitos tradicionais, mas sim
focada nos aspectos que viabilizem a plena efetividade das ações coletivas.
Assim, diante do efeito erga omnes ou ultra
partes destas ações, é imprescindível a abertura da participação dos
interessados na ação, seja pela previsão de publicação das questões envolvidas
em meios de comunicação em massa (suportados por fundos específicos para isso),
seja pela sensibilização da importância de aceitação da participação oral e
efetiva de quem tenha sido admitido como amicus curiae.
A partir do momento em que os tribunais
superiores exercem políticas de ampla repercussão pelas ações coletivas, há que
se possibilitar que a decisão tenha efeitos diferidos no tempo, como ocorre
atualmente com as ações de controle concentrado de constitucionalidade. A
decisão, por exemplo, referente à correção de benefícios previdenciários pode
determinar que o pagamento dos valores atrasados seja feito em parcelas. Ou, em
outro exemplo pertinente às concessionárias de serviços públicos monopolizados
pela iniciativa privada, que seja determinado a realização e implementação de
um planos de adequação da conduta. Inibe-se, com isso, o argumento ad
terrorem de colapso econômico, pois as dificuldades podem e devem ser
levadas em conta na decisão que implementar um plano de cumprimento.
Essa revalorização das ações coletivas, que
resolveriam as questões jurídicas de forma mais célere e democrática,
implicaria, necessariamente, no óbice ao ajuizamento de milhares de ações
individuais. Porém, para que isso possa ser alcançado, o descumprimento da
decisão coletiva tem que receber forte sanção, sob pena de se tornar inócua.
Outro aspecto da democratização do Poder
Judiciário são as chamadas ondas renovatórias[27] do
processo civil que implicaram a remoção ou diminuição dos obstáculos ao acesso
à Justiça[28]. Ao removerem o formalismo do processo
civil e criminal, os Juizados Especiais[29], regrados
pela Leis 9.099/1995, no plano da Justiça Estadual, e 10.259/2001, para a
Justiça Federal, representaram um dos mais importantes passos para a
democratização do Poder Judiciário. Com efeito, a título exemplificativo, é
importante notar que, de 2004 a 2008, por meio de seus julgamentos, só os
juizados federais já pagaram mais de R$ 15 bilhões, beneficiando quase 4
milhões de pessoas, na maioria dos casos os mais carentes. Por isso a
importância da ampliação da competência destes Juizados e da estruturação dos
órgãos encarregados de processar e julgar essas ações.
A preocupação com a sobrevivência da
democracia reflete também na necessidade de desconcentração de competências do
Supremo Tribunal Federal. Com efeito, embora seja necessário que algum órgão dê
a última palavra nas discussões constitucionais, este direito e dever implica
que ele não seja cumulado com outros poderes e que haja uma postura discreta e
reservada. Algumas características do sistema brasileiro geram deturpações,
que, se não são problemáticas agora, podem representar um perigo no futuro.
Uma delas é o excesso de atribuições do
STF, que, além de Corte Constitucional, também é instância para processar e
julgar autoridades com foro privilegiado. Isso provoca não só um elevado número
de processo no STF, mas também cria um poder adicional que é o de controlar os
agentes dos demais poderes que deveriam fiscalizar aquele tribunal. Evitar que
o STF se transforme em um órgão centralizador dos três poderes implica
modificar suas competências não-constitucionais, acabando com privilégio de
foro para altas autoridades. Também é necessário alterar a sua composição e o
seu procedimento de nomeação de ministros, prevendo que os cargos sejam
destinados a membros oriundos das carreiras jurídicas (juízes, promotores e
advogados) mediante listas formadas pelo Congresso Nacional, mediante prévia e
exaustiva sabatina.
A democratização interna do Judiciário
Se a prática democrática é determinada pela
Constituição ao Estado, ela deve influenciar não só a atividade final do
Judiciário, mas também as suas próprias relações internas. É democratização da
gestão que interioriza os valores necessários para a sua prática externa, sob
pena de haver uma incompatibilidade genética que cause ruídos à atividade
jurisdicional, refletindo, por consequência, na própria sociedade.
Logo, no âmbito da democratização do Poder
Judiciário dentro de suas atividades-meio, são medidas que devem ser buscadas
como técnicas para fortalecimento dos valores democráticos: (1) eleição dos
dirigentes do Poder Judiciário pelos juízes; (2) ampliação da participação dos
juízes nas decisões dos conselhos (CNJ, CJF e CJT), seja diretamente, seja indiretamente
por meio das associações; (3) garantia de participação dos juízes na gestão
orçamentária dos tribunais; e (4) aprimoramento dos mecanismos de planejamento
estratégico dos tribunais.
A seleção dos dirigentes do Poder
Judiciário[30] é um dos principais aspectos para
ampliação do ideal democrático. Com efeito, atualmente, pelo texto da Lei
Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), cabe aos próprios tribunais,
privativamente, eleger seus presidentes e demais titulares de sua direção e
exercer a direção dos serviços (art. 21, I, e V, da LC 35/1979; art. 96, I,
“a”, da CR). Apesar de serem diretamente interessados no curso das ações
administrativas que serão dadas pelos tribunais, os juízes de primeira
instância não podem participar do processo de decisão. É de se ressaltar, por
exemplo, que tal prática já é adotada pelo Ministério Público de vários estados
e, em certo grau, pelo Ministério Público Federal, que, por exemplo, indica,
por meio de todos os membros da carreira em atividade no Ministério Público
Federal (art. 52, da LC 75/1993). Logo, há, no mínimo, a necessidade
propositura de Emenda Constitucional que amplie a democracia no Poder
Judiciário.
Outro ponto é a participação dos juízes de
primeira instância na composição dos Conselhos de controle, quais sejam, o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho da Justiça Federal (CJF) e o
Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), previstos, respectivamente,
nos artigos 103-B; 105, parágrafo único, II; e 111-A, parágrafo 2º, II; todos
da Constituição. Muito embora o primeiro tenha previsão de assentos por parte
de juízes de primeiro grau, a indicação destes é faculdade outorgada aos
Tribunais Superiores (STF, STJ e TST), impedindo a escolha por parte dos
próprios juízes. Nos demais, não há, na Constituição, a previsão de sua
composição. Logo, a alteração pode ser feita por meio de lei, prevendo tanto
que sejam integrados também por juízes de primeira instância quanto o
procedimento de sua escolha.
Um aspecto importante para a democratização
interna do Judiciário é a criação de comissões de orçamento formadas por juízes
e desembargadores, que, cumprindo a autonomia financeiro-orçamentária (art. 99,
§1º, CR), teria a competência para emitir parecer prévio sobre a proposta
orçamentária organizada pelo respectivo tribunal, inclusive com a sugestão de modificações
e ajustes que devam ser implementados, inclusive mediante abertura de créditos
suplementares e especiais; e, principalmente, receber sugestões de magistrados
e servidores acerca de pontos que devam ser priorizados por ocasião da
elaboração da proposta orçamentária. Além disso, caberia a esta comissão
avaliar a execução do orçamento do tribunal, bem como os resultados, quanto à
eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial, sem
prejuízo da atuação dos órgãos encarregados do controle interno.
Por fim, é vital, para a democracia dentro
do Judiciário, que aos juízes seja oportunizada a participação nos processos de
elaboração, acompanhamento e controle do planejamento estratégico dos
tribunais. O CNJ, por meio da Resolução 70/2009, instituiu o Planejamento
Estratégico do Poder Judiciário, com suas diretrizes e objetivos (art. 1º) e
determinou que os tribunais elaborem os seus planejamentos, com abrangência
mínima de cinco anos, aprovando-os em seus plenários até dezembro de 2009 (art.
2º), que devem ter efetiva participação dos magistrados de primeiro e segundo
grau (art. 2º, §4º). Logo, o descumprimento desta abertura democrática admite
questionamento do tribunal perante o CNJ.
Considerações finais
A partir do texto apresentado, é possível
traçar algumas premissas que, embora não conclusivas no sentido de uma verdade
inalcançável, permitem supor que, muito embora exista uma clara tendência de
aprimoramento dos instrumentos de democratização no plano da atividade-fim do
Judiciário (com ampliação do uso das técnicas do amicus curiae, audiências
públicas, ampliação dos juizados especiais etc.), não há, ainda, o mesmo
movimento no âmbito da sua atividade-meio, sobremodo no que toca à participação
da magistratura de primeira instância na formulação das políticas
administrativas dos tribunais.
Neste ponto, há a necessidade de uma
articulação dos integrantes do Poder Judiciário para a busca de alterações
legislativas e constitucionais que permitam, dentre outros, (1) a escolha dos
presidentes, vice-presidentes e corregedores dos tribunais por parte também dos
juízes de primeiro grau, tal como ocorre no âmbito do Ministério Público; (2) a
ampliação da composição dos conselhos específicos da Justiça Federal e da
Justiça do Trabalho para que prevejam assento pelos juízes, seja por indicação
das associações nacionais, seja por meio de eleição direta pelos juízes; (3)
alteração do procedimento de escolha dos integrantes do CNJ para permitir os
representantes dos juízes de primeiro grau seja feita pelos próprios juízes, e
não pelos órgãos de cúpula (que já têm seus respectivos assentos naquele
órgão); e, mediante ação judicial ou administrativa, (4) a participação dos
juízes nas comissões de planejamento estratégico (conforme já determinado pelo próprio
CNJ) e (5) criação de comissões de orçamento nos tribunais.
[1] O
poder é capacidade que um sujeito ou grupo de realizar a sua vontade,
influenciando, condicionando ou determinando o comportamento de um ou mais
pessoas (BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política, p. 216. NOVA, Sebastião
Vila. Introdução à Sociologia, p. 85). Há três teorias para conceituar poder:
(a) substancialista, o poder é o meio - força psicológica - para obter um fim;
(b) subjetivista, o poder é a capacidade de obter algo; (c) relacional, poder é
a relação entre sujeitos na qual um obtém de outro um efeito desejado (BOBBIO,
Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 77-78). Diz-se que há três formas de
poder, que produzem desigualdades entre fortes e fracos: (1) riqueza ou poder
econômico, decorrente da organização das forças produtivas; (2) saber ou poder
ideológico, oriundo organização do consenso; (3) força ou poder político,
mediante a organização do poder coativo (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo,
Sociedade, p. 82-85.). A partir da obra de Foucault, o poder pode ser
considerado como uma situação estratégica complexa numa sociedade que não
representa uma única dominação maciça e homogênea de um grupo sobre outro, mas
sim um de forma fragmentada nas múltiplas instâncias da vida, manifestando-se
de formas sutis, como a criação e classificação de identidades ou o controle do
corpo e dos desejos, ou expressas, como julgamentos e condenações. Segundo essa
visão, o poder é uma forma múltipla de dominação que circula, pois funciona em
cadeia, ou seja, o poder funciona e se exerce em rede e os indivíduos estão
sempre em posição de exercer o poder e de sofrer sua ação (FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder, p. 160-162/179-181/183. WOLKMER, Antônio Carlos.
Ideologia, Estado e Direito, p. 76-77).
[2] Constitucionalismo
é, simultaneamente, uma teoria ou ideologia e um movimento que, sob a
influência do Iluminismo e do Contratualismo, estrutura a organização política
a partir do princípio do governo limitado como indispensável para a
garantia dos direitos. Apresenta-se como uma teoria normativa da política
contra o absolutismo, pregando que o Direito limita o poder Estatal. Logo, a
liberdade, como sentido axiológico inicial do constitucionalismo, fundamentou a
idéia da Constituição como a lei para reger o Estado. Tem como traços marcantes
a Organização do Estado e a Limitação do seu poder (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 51).
[3] Ao revés, é
natural e previsível que diversas das propostas aqui apresentadas sejam
criticadas e, com isso, aperfeiçoadas ou até mesmo rejeitadas.
[4] SHAPIRO, Ian. Os
fundamentos morais da política, p. 7-8. Confira-se, também: CAPELLA, Juan
Ramón. Os cidadãos Servos.
[8] Para o tema,
especialmente para a configuração do chamado “Estado Democrático de Direito”
confira-se: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, p. 98-100; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo, p. 133-138.
[14] SHAPIRO, Ian. Os
fundamentos morais da política, p. 269-281. HÖFFE, Otfried. Justiça política,
p. 369-374.
[21] Os direitos
políticos, que abrangem o Voto (exercício do direito) e o Sufrágio (direito
propriamente dito de votar), decorrem do princípio democrático. O sufrágio é o
direito de eleger (capacidade eleitoral ativa = alistabilidade) e de ser eleito
(capacidade eleitoral passiva = elegibilidade). Não se confunde com o voto, que
é o exercício do direito de eleger. O voto é exercício do direito de sufrágio;
logo, o direito ao voto é instrumento para a realização dos direitos políticos.
No Brasil, o voto tem as seguintes características (art. 60, §4º, I): (1)
Direto; (2) Secreto e (3) Igual. A capacidade de ser votado depende do preenchimento
das condições de elegibilidade (art. 14, § 3º) e não haver nenhum das hipóteses
de inelegibilidade (art. 14, §§4º a 9º).
[22] Para uma análise
do mecanismo das cláusulas pétreas como mecanismos de garantia de direitos,
princípios e instituições, confira-se: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e
sua reserva de Justiça. Nesta obra, o autor não só descreve o fundamento
teórico, como também a prática jurídica comparada a partir das experiências das
cortes constitucionais brasileira, norte-americana e alemã.
[23] Confira-se,
dentre outros: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores, p. 31-46. CINTRA, Antônio
Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo, p. 24-25. VIANNA, Luiz Werneck; REZENDE DE CARVALHO, Maria
Alice; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização
da política e das relações sociais no Brasil, p. 15-25. ZAGREBELSKY, Gustavo.
El derecho dúctil, p. 9-10/34-39/50-51/100-103.
[24] Esta premissa
funda-se em diversos argumentos. O primeiro é que o próprio conceito de
jurisdição, como um terceiro desinteressado na lide de fundo, é incompatível
com a possibilidade de um dos litigantes ser o seu próprio juiz. O segundo
consiste no caráter contramajoritário que há nos direitos fundamentais, isto é,
há esferas de proteção que, pelo seu papel moral, são reconhecidos pelo Direito
a partir do embate entre as forças políticos. O terceiro é a impossibilidade de
que os milhões de processos julgados todo ano sejam submetidos à consulta
popular. Por fim, o critério lógico de igualdade, como um dos fundamentos da
Justiça, implica que as decisões jurídicas sejam as mesmas se mantidas as características
essenciais, o que poderia não ocorrer se as decisões judiciais fossem
realizadas por “eleições adhoc”.
[25] As teorias da
argumentação jurídica têm como objeto de estudo a argumentação produzida nos
contextos jurídicos e teriam a função de fornecer critérios para a aplicação do
ordenamento (ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 18-19). As décadas de
1960 e 1970 viram o crescimento e evolução de correntes antilogicistas da
argumentação jurídica, especialmente com Toulmin, Viehweg e Perelman,
influenciando os estudos contemporâneos com orientação hermenêutica e analítica
de Alexy, Dworkin, Aarnio, Peczenik, MacCormick e Wróblenski (FARALLI, Carla. A
filosofia contemporânea do direito, p. 43-44). O desenvolvimento destas teorias
insere-se numa dimensão política da democratização ocidental em que a autoridade
institucional perde seu valor e se passa a exigir dos órgãos públicos que
justifiquem racionalmente suas decisões (DUARTE, Écio Oto Ramos.
Neoconstitucionalismo e Positivismo jurídico, p. 57-58).
[26] No segundo caso,
a necessidade de ampliação dos debates acerca de decisões a serem proferidas no
âmbito de Recursos Extraordinários torna-se maior em função do mecanismo da
repercussão geral, especialmente pelo fato de que a implantação desta nova
técnica jurídica é caracterizada pelo julgamento simultâneo. Nota-se, de fato,
que há, cada vez mais, uma “objetivação” destas demandas individuais, ou seja,
em razão do elevado número de feitos (centenas de milhares por ano), deixa-se
de analisar o recurso extraordinário como um caso individual para julgar a
questão constitucional de fundo, determinando-se a a suspensão das remessas dos
processos pelos tribunais de segunda instância. Esta dinâmica, oriunda da
exitosa inovação contida na Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei
10259/2001) foi incorporada no texto do Código de Processo Civil pela Lei
11418/2006, que inclui os artigos 543-A e 543-B.
[27] As chamadas
ondas renovatórias do processo civil são reformas decorrentes da evolução da
ciência processual que se torna mais preocupada com a assistência judiciária aos
pobres e a representação dos interesses difusos e a racionalização do
modo-de-ser do processo na busca de sua efetividade (CINTRA, Antônio; GRINOVER,
Ada; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo, p. 43).
[28] O acesso à
justiça é a idéia ou fim de que as partes têm que ter acesso a uma ordem
jurídica justa, implicando não apenas a admissão no processo, mas também a da
efetividade do próprio direito material (CINTRA, Antônio; GRINOVER, Ada;
DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo, p. 33-34).
[30] No caso, em
especial, os Presidentes dos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais
e Tribunais Regionais do Trabalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi