Por Fábio Medina Osório*
O julgamento da Ação Penal 470, o
processo do Mensalão, pelo Supremo Tribunal Federal terá, tão logo publicados
os votos vencedores e vencidos, uma nova repercussão no plano do Direito
Punitivo brasileiro, a ser aquilatada num horizonte mais longo. Cuida-se de
avaliar os parâmetros de juridicidade do STF, no que diz com os princípios da
tipicidade e da culpabilidade do Direito Penal, além do ônus da prova e do
devido processo legal punitivo.
A lógica dos votos e a tipologia
das fundamentações deverão suscitar reflexões sobre o STF como referência
máxima na formação do sistema normativo pátrio. As críticas doutrinárias aos
votos proferidos serão legítimas e contribuirão para o aperfeiçoamento do
sistema, pois a jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores, deve ser
avaliada criticamente pelo meio acadêmico, até como forma de estimular o
aprimoramento das instituições.
Já se sabe que, dentre os aspectos
mais relevantes, o valor dos indícios para alicerçar condenações ensejará uma
aguda discussão na comunidade jurídica, na perspectiva dos votos que serão
publicados, com reflexos na compreensão do princípio da presunção de
inocência. Como ainda não li os autos nem as informações reunidas no
processo, tampouco a íntegra dos votos proferidos, não tenho opinião formada
sobre os parâmetros que daí emergirão ou o teor das críticas que serão
oportunas. Tivesse havido tempo para acompanhar todos os votos pela TV
Justiça, talvez fosse possível emitir uma opinião sólida sobre a qualidade das
votações, mas, ainda assim, pecaria pela falta de leitura dos autos.
Há, no entanto, um aspecto
sintomático que chama a atenção e me parece que o STF e a Procuradoria-Geral da
República estão alinhados com as visões mais modernas sobre este tema: os réus,
todos, responderam em liberdade à ação penal 470. O que se observa é que neste
julgamento do Mensalão, tido pelo Relator, pela Procuradoria-Geral da República
e por muitos como emblemático em termos de novo paradigma para o sistema
punitivo, eis que punidos crimes como corrupção ativa e passiva, lavagem de
capitais, evasão de divisas, formação de quadrilha, todos os réus
responderam ao processo em liberdade, sem nem mesmo sujeitarem-se às medidas
cautelares alternativas à prisão.
Em tal contexto, admitindo-se que a
jurisprudência busca fixar pautas isonômicas de tratamento aos jurisdicionados,
o que se pode esperar de outros processos envolvendo os chamados ilícitos do
“colarinho branco”? Não há mais lógica nas prisões preventivas quando se tratar
de crimes sem violência à pessoa humana? Equivocou-se o Procurador-Geral da
República ao não postular prisões preventivas dos acusados ou agiu com
prudência e dentro do modelo constitucional? Penso que atuou corretamente e
deverá balizar atuação isonômica noutras situações análogas. O Ministério
Público pode até criticar posicionamento de sua cúpula institucional, mas seria
importante respeitar balizas emanadas do STF.
Cabe efetivamente notar que a prisão
provisória, ou preventiva, todos sabem, é medida excepcional, que se funda na
necessidade de garantir que alguma espécie de perigo iminente e incontornável
seja afastado da sociedade. O processo já traz consigo efeitos aflitivos
poderosos: é um castigo alguém responder a um processo, tanto que se exigem
indícios e determinados pressupostos para essa espécie de situação. O processo
produz danos à imagem e prejuízos econômicos, pode desequilibrar competições
políticas ou empresariais, adquire publicidade ampla na sociedade e bloqueia
oportunidades profissionais.
São frequentes as exigências de
“Ficha Limpa” que adentram o terreno dos antecedentes das pessoas e o peso dos
processos é considerável, ainda que inexistam condenações. O que se dirá, num
cenário em que os próprios processos já constituem espécies de penalidades,
sobre o cabimento de uma prisão antes da sentença? É medida extraordinária, não
pode ser realmente banalizada, porque traduz forte penalidade antecipada ao
arrepio do devido processo legal, direitos de defesa e contraditório.
Pode-se decretar uma prisão
preventiva para resguardar testemunhas, evitar que um acusado ou investigado
destrua provas, ou que fuja da aplicação da lei, quando esta já deve ser
cumprida de imediato. Nos casos de crimes violentos, é possível decretar
uma preventiva para evitar que o sujeito permaneça cometendo crimes contra a
vida humana, por exemplo, pois nenhuma outra medida, salvo a prisão, seria
capaz de contê-lo, como formula para proteção da ordem pública.
Como evitar que uma pessoa,
assaltante violento, continue a agredir vidas humanas, quando há indícios de
que, em liberdade, possa vir a faze-lo? Há inúmeras situações em que prisões
provisórias, cautelares, são necessárias. Com a alteração do artigo 319 do Código
de Processo Penal pela Lei 12.403/2011 instituiu-se um conjunto de medidas
cautelares alternativas à prisão, que sequer foram adotadas no processo do
Mensalão.
A preventiva só pode ser decretada
quando qualquer daquelas outras medidas mostrar-se insuficiente. O artigo 282,
parágrafo 4º, do mesmo CPP, enuncia que o conjunto de medidas alternativas
depende da meritocracia do sujeito. Quer dizer, pode-se evitar a sequência de
determinados crimes impondo aos acusados afastamento de funções, ou obrigações
provisórias de abstenção ou de ação. Pode-se coibir a fuga de alguém com o
recolhimento de seu passaporte, assim como é viável monitorar suas atividades,
sua residência e inclusive exigir-lhe prestações de contas, com comparecimento
periódico ao juízo. Não é necessário, nem possível, desde logo antecipar a
privação da liberdade das pessoas, sem julgamento definitivo.
E quando se antecipa, abruptamente,
cerceamento à liberdade, o que acontece? Medidas abusivas ensejam espaço ao
desvio de finalidade ou desvio de poder de agentes públicos. A prisão
transforma-se num espetáculo de execração pública e punição antecipada.
Imperioso evitar a multiplicação de atos arbitrários, que deterioram a
confiança dos cidadãos nos mecanismos de distribuição de justiça.Na mesma trilha,
é importante evitar que o processo, e a prisão, transformem-se em instrumentos
opressores, até cruéis, com ofensa à dignidade humana e à presunção de
inocência das pessoas.
Uma das lições do Mensalão,
portanto, é que determinados crimes, não importa o grau de sua repugnância
social, não ensejam, automaticamente, prisões preventivas. Por certo,
publicados os votos, muitos outros debates serão travados.
Fábio Medina Osório* é advogado, doutor em Direito Administrativo e ex-secretário adjunto da Secretaria da Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul. (Revista Consultor Jurídico, 18 de dezembro de 2012)
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