A onda do politicamente correto
cresceu a ponto de tolher a liberdade de pensamento. O maior problema, porém, é
outro: a reação torna tudo o que é incorreto "bacana". E abre
espaço para a intolerância.
por Maurício Horta
"Toda mulher que eu vejo na rua
reclamando que foi estuprada é feia pra c... Tá reclamando do quê? Deveria dar
graças a Deus." A fala é de um show de comédia stand-up de Rafinha Bastos.
O Twitter foi inundado de mensagens com variações do tema proposto por Mayara
Petruso - a estagiária de direito que recomendou o afogamento de nordestinos.
Claro que nem Rafinha está defendendo o estupro nem os afogadores de imigrantes
são necessariamente homicidas em potencial.
Boa parte dessa truculência é uma
reação à onda politicamente correta das últimas décadas. A incorreção, nesse
sentido, virou uma arma para defender a liberdade de expressão, que só existe
quando você também é livre até para pensar o impensável e dizer o
impronunciável.
Mas o que acontece quando o
impensável agride o próximo gratuitamente? Para entender como chegamos a esse
nó, vamos para a origem do termo "politicamente correto". Ele
apareceu pela primeira vez com um significado bem diferente do que usamos
hoje: na China dos anos 30, surgiu para denotar a estrita conformidade com a
linha ortodoxa do Partido Comunista, tal como enunciado por Mao Tsé-tung. Mas,
o significado com que a expressão chegou até nós é uma criação dos Estados
Unidos dos anos 60.
Na época, universitários americanos
abraçaram a defesa dos direitos civis, seja das mulheres, seja dos negros. Era
uma época de transformações na sociedade: as empresas e universidades, antes
habitadas só por brancos, agora viam chegar mulheres, negros, gays, imigrantes.
Era preciso ensinar as pessoas a conviver com a diferença. Nisso, negro
virou african-american, ("afro-americano"), fag ("bicha")
virou gay ("alegre"). O paradoxal aí é que, pela primeira vez na
história americana, quem buscava estender os direitos civis também advogava por
uma limitação na liberdade de expressão.
O passo seguintes viria com os anos
90. Mais especificamente com a derrocada do mundo comunista. O fim do
socialismo mudou a agenda dos grupos de esquerda. Se antes a busca pela igualdade
era a busca pela diminuição das diferenças entre as classes sociais, agora era
pela eliminação das "classes pessoais". Tratava-se de não
estigmatizar as pessoas por aquilo que elas eram - afinal, não faz sentido
aumentar o peso do fardo que cada um tem de carregar na vida. Dessa maneira,
não bastava combater só o sexismo e o racismo. E "obesidade" virou
"sobrepeso"; "deficiência física" virou "necessidade
especial"...
Só que o método, por mais
bem-intencionado que seja, é inócuo. Quem explica por que é o francês Ferdinand
Saussure, o pai da linguística, num texto de 1916: "De todas as
instituições sociais, a linguagem é a que oferece menor margem a
iniciativas". Ela é utilizada por todos os membros de uma comunidade, que,
por esta ser naturalmente inerte, acaba por conservar a linguagem. Qualquer
interferência tende a ser rechaçada.
É aí que o debate começa,
Politicamente corretos ficam do lado do conselho que a sua mãe dava: seu
direito termina onde começa o do outro. Se o próximo se sente ofendido, você
não pode falar. Ponto.
Parece um argumento inatacável. Mas
tem um problema aí: quem é o juiz para decidir o que é certo e o que é errado,
o que ofende e o que não ofende? Onde fica a liberdade de pensamento, de
expressão? A ideia de que o direito de um termina onde começa o do outro vale
aqui também: pode alguém retirar o direito do outro de dizer o que pensa?
Talvez por isso a transformação
ideológica de palavras seja tão utilizada por governos: é uma ótima forma de
revogar o direito de pensar. Tanto regimes autoritários - como o apartheid
sul-africano, em que a palavra "miscigenação" virou
"imoralidade" - quanto democráticos - como o dos EUA, que usou o
termo "guerra preventiva" para o ataque unilateral ao Iraque -
usaram do expediente. No mundo do politicamente correto isso é o equivalente a
chamar de "melhor idade" a época da vida em que
vemos multiplicar o valor do plano de saúde.
De boa intenção, o politicamente
correto passa a ser visto como hipocrisia. E de hipócrita a algo fundamentalmente
errado. Como lidar com o excesso de correção política, então? Não temos a
pretensão de dar uma resposta definitiva. Mas sair xingando os outros de gordo,
aleijado, retardado e baranga estuprada é que não vai ser. Se fosse engraçado,
talvez até funcionasse. Mas não. Não é.
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