segunda-feira, 9 de julho de 2012

OS CAPRICHOS DA HISTÓRIA - Josephina Carneiro

Por Josephina Carneiro

É importante ressaltar que essa descontinuidade e desprezo é mais comum do que podemos imaginar. Entramos na universidade com muito pouca informação. Aos poucos vamos fazendo contato com ícones da Educação, Cultura, Sociologia. Idealizamos um mundo bem melhor e possível com a nossa contribuição. Um universo transformador. Saímos da faculdade ansiosos em colocar em prática os conhecimentos adquiridos. Mesmo quem já está cursando e já trabalha em escolas os relatos estão sempre povoados em decepções. Em outras palavras: teoria e prática nem sempre caminham na mesma direção.


Poderia relatar casos e mais casos de meus pares na universidade. Daria um livro bem extenso. Mesmo dentro da Faculdade de Pedagogia o discurso libertador muitas vezes fica em desencontro com a prática. É o que Paulo Freire denomina de Corporeificação . O melhor discurso é na verdade o exercício da prática.

Não posso verbalizar que sou um democrata, um progressista e possuir uma prática reacionária, autoritária e elitista. Acredito que realmente deve ser complicado romper com um modelo engessado e repressor de educação para quem o recebeu.
Os discursos das jovens professoram geralmente são como um disco arranhado: repete, repete e repete. Quem tenta criar um modelo inovador é temido. É como se fossemos uma grande ameaça ao sistema educacional. Quando não é pela coordenação muitas vezes vem dos próprios pais. Lidar com esse tipo de frustração é muito doloroso. Por isso assistimos cada vez mais os formandos procurando concursos para coordenação, supervisão ou mesmo na área da Pedagogia Empresarial. Sem contar os que abandonam mesmo a carreira de educadores. Nem todos possuem a vontade e a força, a constância, a perseverança e a persistência para continuar lutando da recriação da sociedade injusta. Poucos possuem coragem e até disponibilidade para lutar pela construção de uma outra ordem social menos injusta e mais humana. Não são todos que estão dispostos a enfrentar continuamente até a exaustão o desrespeito aos educadores e educandos por parte da administração pública ou privada das escolas, assim como lutar em busca do direito que possuímos de ser respeitados e reagir aos que nos destratam. Essa prática cansa.

Portanto eu era mais uma vivenciando a experiência do repete, repete e repete. Existem muitas maneiras de se aniquilar e minar um projeto. A primeira providência já teria sido tomada reduzindo a equipe de 15 funcionários para 02. A partir de um determinado momento, todos os dias a sede do Cateretê era freqüentemente arrombada e saqueada. Eu enviava relatórios, fazia B.O ., nenhuma providência era tomada. Cada peça do figurino roubado, carregava junto um pedaço do meu coração. Não encontro palavras para descrever minha dor, nem a dos meus alunos. Talvez a música do Chico Buarque de Holanda (Pedaço de mim), possa se aproximar do sofrimento, da saudade e da nostalgia que já nos envolvia naquele momento. Era nosso patrimônio, recheado de recordações, de sorrisos, de noites mal dormidas e de alegrias. Talvez seja comparada a amargura de uma mãe que perde um filho de forma inesperada. Ou um órgão do corpo amputado. Só existe uma constatação: é indefinível. 

Na verdade, quando falamos em patrimônio, às vezes nos escapa que patrimônio é uma construção cultural, essa representação estrutura-se nos elementos fundamentais o qual se baseiam as práticas do dia a dia. Construímos juntos um lugar de identificação. Tínhamos edificado um sentimento de pertencimento, de identidade. Assim, o projeto Cateretê possuía o grande potencial do patrimônio justificado não apenas pelas suas características físicas, muros, tijolos, madeira, figurinos, adereços etc., mas, sobretudo pelo significado desses elementos carregados de sentido, história e beleza, Nosso desgosto coletivo estava representado na destruição dos figurinos das cirandeiras, do vaqueiro, dos estandartes. Tudo ali possuía uma história, um valor inestimável. Era nosso patrimônio, recheado de recordações, de sorrisos, de noites mal dormidas de alegrias, de sonhos realizados ou não.
O interessante dessa história insólita é que constantemente, em nossas aulas, abordávamos a cerca de patrimônio material e imaterial. Chegamos até a levar os alunos em uma visita ao Museu do Folclore Edison Carneiro no Rio de Janeiro.

A verdade é que os alunos só conseguiram apreender o significado de patrimônio através da perda e da dor. Perceberam que a representação material está diretamente associada a sua referência imaterial. Através de símbolos, significados e valores como também nas práticas sociais. Desta feita nosso espaço foi ganhando vida, repletos de estima e importância. Ficaram na memória nossos registros de pequenos momentos que sacodem nossa alma, todas as vezes que os recordamos. Uma das grandes realidades da vida é que a grandeza da existência é permeada justamente pelos pequenos momentos do cotidiano. Assim todos que participavam do Cateretê nas Artes tornaram-se depositários de uma memória coletiva que deveria ser preservada.
Mas o fato é que assim não foi. A sede do projeto continuava a ser invadida. Sumiam mais peças, adereços, instrumentos. Até que um dia roubaram praticamente todas as cadeiras, mesas, arrancaram os motores das duas geladeiras e todas as torneiras. O resto que tinha sobrado do figurino foi totalmente destruído pelo líquido do extintor de incêndio. Acho que o inferno que Dante descreveu chegou bem perto do vandalismo provocado naquela noite.

Vencida pelo cansaço percebi que chegara os meus compassos de espera. Adoeci.
Liguei para a Secretária de Educação, informei o acontecido pela última vez. Solicitei a presença da Secretária de Educação Maria Inês Azevedo de Oliveira e a Coordenadora de Projetos Especiais Sônia Teixeira para que se dirigissem até a sede do projeto, com a finalidade de entregar as chaves e pedir demissão. 

Sentei no meio fio em frente à sede enquanto as esperava e recordava a coragem daquele povo que sobrevive a custo de muita teimosia, com a quase total ausência do Estado. Rememorava as milhares de vezes os desabafos de jovens mães que mais pareciam velhas senhoras. Ouvi os longos sorrisos das crianças, compartilhando conosco seus sonhos de vida. E chorei, chorei muito. Sentia-me exausta, cansada e com a saúde muito debilitada. Eu possuía um fio de força. 

Poderia me servir de consolo a dor de um Anísio Teixeira com sua Escola Parque. Ou relembrar a visita de uma amiga, semanas antes na sede do projeto Cateretê Nas Artes, desabafando que teria sua biblioteca comunitária fechada por total falta de suporte do Governo. Não precisava ser muito perspicaz para perceber em seu semblante a dor que a consumia. Carregava os olhos marejados de lágrimas ao falar da destruição do seu projeto. Um total descaso do governo de uma cidade que nem praça possui para suas crianças. Passaria horas, com certeza, descrevendo inúmeros casos que vão de ilustres intelectuais até as criaturas que trabalham em profundo anonimato. Somos um braço do Estado. E esse mesmo Estado nos amputa. 

O Vereador Waldeck Carneiro ainda entrou com uma petição para o regresso do projeto. Haveria votação no plenário, mas eu realmente não conseguia mais sair da cama. Precisa parar. Possuía todas as armas em minhas mãos, a sociedade civil estava toda comigo, mas eles precisavam de uma liderança e eu realmente, por mais que quisesse não conseguia. 

Chegaram a Sonia Teixeira e a Rita. Entreguei as chaves, depois fotografei toda aquela depredação. Percebi que elas ficaram intrigadas com todos os detalhes que eu fotografava. Observavam todos os meus movimentos. Dei um sorriso para mim mesma, me despedi e fui embora. 

A História é uma senhora caprichosa! Ela existe como possibilidade e não como determinação. A história não é. Ela está sendo.

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