segunda-feira, 2 de abril de 2012

Resgate da terra

Minas terrestres mutilaram o Camboja devastado pela guerra. Hoje o país é um modelo na recuperação desse flagelo

Chhin Boreak, 19 anos, perdeu o braço direito para uma mina terrestre aos 10 anos. Um entre 12 irmãos, ele foi viver no centro de auxílio no noroeste do Camboja fundado pelo especialista em remoção de minhas Aki Ra para crianças e jovens cuja família não tem condições de cuidar deles. “A minha ambição é ser guia turístico, para poder ensinar a história do meu país aos visitantes”, diz Boreak. “O que eu mais gosto são os entalhes nos templos e as histórias que eles contam.”
 
Delicadamente, Aki Ra remove a terra com os dedos e revela uma mina terrestre verde-escura enterrada a cinco centímetros da superfície de uma estrada de terra tomada pelo mato. Do tamanho de uma lata de leite, a mina foi instalada pelo Khmer Rouge há uns 15 anos nesse caminho de bois no noroeste do Camboja – a região mais densamente minada de um dos países mais densamente minados do mundo.
“É uma mina antipessoal do tipo ‘Bouncing Betty’ 69, feita na China”, diz Aki Ra, embaçando com a respiração o visor blindado de seu capacete. “Bouncing Betty” (Betty Saltitante) é o apelido americano para uma mina terrestre que pula e se fragmenta. Quando pressionada por um pé, ela salta do chão, explode e lança estilhaços para todo lado. É capaz de retalhar as pernas de um esquadrão inteiro.
Afável e rechonchudo como um querubim, Aki Ra conhece o funcionamento da Bouncing Betty e de praticamente qualquer outra variedade de mina. Em meados dos anos 1970, quando ele tinha cinco anos, o Khmer Rouge separou-o de seus pais e o levou para a selva com outros órfãos. Naquela época, Pol Pot, o comandante do Khmer Rouge, lançara o país no caos: fechara escolas, hospitais, fábricas, bancos e mosteiros, executara professores e empresários e mandara milhões de habitantes das cidades para um gulag de campos de trabalho e fazendas. As mãozinhas de crianças como Aki Ra eram ferramentas inestimáveis. Ele foi treinado para instalar minas terrestres, desarmar e desmontar minas inimigas e reutilizar a dinamite em dispositivos hoje chamados de artefatos explosivos improvisados (AEI).
Alguns anos depois, quando os vietnamitas invadiram o Camboja, alistaram Aki Ra compulsoriamente em seu exército, e ele foi obrigado a lutar contra seus ex-captores. Quando as forças de paz da ONU finalmente chegaram em 1992, ele tinha passado quinze anos na selva. Foi trabalhar com a ONU desarmando minas. Quando as forças de paz partiram, dois anos depois, boa parte das melhores terras agrícolas – hortas, pastagens, arrozais – continuavam minadas. Agricultores que tentavam voltar a cultivar seus campos eram feitos em pedaços. Por uma década e meia, usando apenas uma faca e um graveto, Aki Ra trabalhou voluntariamente como sapador, desarmando minas terrestres em vez de detoná-las e limpando seu país um metro quadrado por vez. Pelas suas contas, ele já desarmou uns 50.000 artefatos: minas explosivas (blast), minas antitanque, minas de salto e outros explosivos.
“Achei uma porção de minas que eu mesmo instalei”, ele conta com um misto de orgulho e vergonha.
Hoje ele tem certificado para atuar como desativador de minas e trabalha com sua própria equipe, a ONG Iniciativa Limpa-Minas do Camboja (Cambodian Self-Help Demining), parcialmente financiada pelos Estados Unidos. Usam detectores de metal especiais para procurar explosivos, e foi assim que encontraram a “Bouncing Betty”.
O suor escorre pelo rosto de Aki Ra enquanto ele põe uma pequena carga de explosivo ao lado da mina terrestre, liga fios e estende um cabo fino por cem metros. Como toda organização limpa-minas oficial, a equipe de Aki Ra agora não desarma as minas – detona-as no local. Agachado atrás de uma árvore, ele aperta o botão vermelho. A explosão é medonha. Com um meio sorriso, Aki Ra pondera “uma mina a menos, uma criança sem perna a menos”.
Na guerra que assolou o Camboja de 1970 a 1998, todos os lados usaram minas terrestres. Existem mais de 30 tipos. Os moradores da região têm nomes prosaicos para elas, baseados na aparência: rã, tambor, folha de betel, sabugo de milho. A maioria foi feita na China, Rússia ou Vietnã, e algumas nos Estados Unidos. Dizem que Pol Pot, cujo regime foi responsável pela morte de aproximadamente 1,7 milhão de cambojanos entre 1975 e 1971, chamava as minas de seus “soldados perfeitos”: elas nunca dormiam e esperavam com paciência infinita. Embora sejam armas de guerra, as minas terrestres diferem das balas e bombas em dois aspectos. Primeiro, destinam-se a mutilar e não a matar, pois um soldado ferido requer a ajuda de outros dois ou três, reduzindo as forças inimigas. Segundo, e mais sinistro, quando uma guerra termina, minas terrestres permanecem no solo, prontas para explodir. Apenas 25 por cento das vítimas de minas terrestres no mundo são soldados. As demais são civis: meninos pegando lenha, mães semeando arroz, meninas pastoreando cabras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!

Abração

Dag Vulpi

Sobre o Blog

Este é um blog de ideias e notícias. Mas também de literatura, música, humor, boas histórias, bons personagens, boa comida e alguma memória. Este e um canal democrático e apartidário. Não se fundamenta em viés políticos, sejam direcionados para a Esquerda, Centro ou Direita.

Os conteúdos dos textos aqui publicados são de responsabilidade de seus autores, e nem sempre traduzem com fidelidade a forma como o autor do blog interpreta aquele tema.

Dag Vulpi

Seguir No Facebook