Durante uma época, no final da década de 1960 e início dos anos 70, em São Paulo, muita gente da dita classe média esperava a madrugada acordada para ir tomar sopa de cebola no restaurante do Ceasa, atual Ceagesp, e quase ninguém sabia como começou essa onda de disputar lugar numa mesa com os caminhoneiros que chegavam de madrugada para entregar produtos agrícolas e outras mercadorias, para tomar sopa de cebola.
Nessa história também teve estudante no meio.
Em 1967 e 68, havia no Crusp, o Conjunto Residencial da USP, na Cidade Universitária, muitas reuniões políticas que entravam pela madrugada. Muitos estudantes que décadas depois seriam da cúpula do governo Lula participaram dessas reuniões, e lembrando bem, ex-militantes de esquerda que depois estiveram no governo FHC também. Depois de muita teoria sobre a revolução que haveria de vir, se ela seria urbana ou rural, se seria conduzida por trabalhadores ou por intelectuais, ou mesmo por militares de esquerda, se ela se iniciaria com um foco revolucionário, como a Revolução Cubana, se seria deflagrada por operários ou se a partir do campo se faria o cerco das cidades como queriam os maoístas, batia a fome. E aí? Lá pelas três ou quatro horas da manhã, todos os bares da região estavam fechados. A solução era caminhar a pé até o (então) Ceasa e dividir as mesas com os caminhoneiros para saborear um prato de sopa de cebola, coisa que parecia muito esquisita para os outros.
Era algo inacreditável na época, não pela mistura de estudantes e caminhoneiros, mas porque a cebola não era vista como componente principal de um prato, mas apenas condimento, um ingrediente secundário.
Misturar estudantes e trabalhadores era até uma proposta dos revolucionários — ainda que teóricos — de todas as tendências que terminavam suas discussões no Ceasa, comunistas, socialistas ou anarquistas de diversos matizes, muitos abrigados em siglas como PCB, PCdoB, Polop, AP, ALN, VPR… Mas comer cebola? Cruz credo, reagiam alguns, quando falávamos dessa pequena aventura gastronômica.
Quando contávamos que tomávamos sopa de cebola e gostávamos, quase todo mundo torcia o nariz. Comer cebola? Que horror! Mas caíam na tentação de experimentar e tornavam-se novos apreciadores dela.
Hoje penso que se os caminhoneiros aos quais aquela estudantada se misturava pudessem imaginar o que virariam aqueles jovens, talvez cumprimentassem alguns, mas certamente partiriam pra porrada com outros, né?
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças-feiras.
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