Por Thiago
Trung*
É muito comum,
no debate político pouco elegante, a alegação de que "o povo não sabe votar".
Quero morrer de catapora quando ouço isso, ainda mais quando o interlocutor se
julga um ente externo ao conceito de povo.
Primeiro que
não existe o conceito de voto errado.
Segundo que
é de uma arrogância sem tamanho presumir que o voto de um concidadão se deu por
ingenuidade ou, pior, por burrice: o Brasil tem proporções continentais, uma
distribuição de renda que é motivo de vergonha, cidades imensas, zonas rurais maiores
ainda, locais que sofrem com a seca, regiões que sofrem com alagamentos, e cada
cidadão sabe exatamente quais são os problemas que lhe afligem e onde o calo
lhe aperta.
Terceiro,
ninguém está completamente livre da manipulação política, por mais escolado que
seja no assunto. Se somos manipulados com mentiras, estatísticas tendenciosas
ou mesmo com informações incompletas, nossa energia destrutiva deve se
direcionar aos agentes da manipulação, e não às vítimas. Um debate político
saudável envolve a compreensão e o questionamento dos motivos que levam o
concidadão a declarar voto em determinado candidato, e não a mera
desqualificação do pensamento diferente do seu.
Dando
prosseguimento à série Para entender política, parto agora para o segundo dos
quatro textos que foram originalmente pensados para dar aos leitores do Papo de
Homem um arcabouço jurídico básico sobre política.
No primeiro
texto, nós entendemos que a Constituição Federal é a base do nosso ordenamento
jurídico, que o poder político emana do povo e que o Estado tem suas funções
distribuídas em três Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Neste
texto, explico quais são exatamente os nossos direitos políticos e como a
Constituição Federal pretende garantir que o poder, de fato, emane do povo.
Antes de
adentrarmos aos direitos políticos, gostaria de fazer uma diferenciação
terminológica. Quando lidamos com a ciência jurídica, é importante termos em
mente que as palavras, além de seu significado ordinário, possuem também um
significado técnico.
É muito
comum, em nosso cotidiano, confundir os conceitos de nacionalidade e cidadania.
Claro que essa confusão não provoca danos na nossa vida, já que todo mundo
sempre acaba se entendendo, mas, como estamos tratando de política do ponto de
vista jurídico, nada mais justo do que elucidar os conceitos.
1. Nacionalidade e cidadania são a mesma coisa?
Nacionalidade
é o vínculo existente entre um indivíduo e um determinado Estado. As regras
para obtenção e perda de nacionalidade variam de país para país. No caso
brasileiro, tais regras estão, claro, na Constituição Federal.
As pessoas
podem nascer ou tornar-se brasileiras. São brasileiros natos:
- todos que nascem em território tupiniquim, ainda que tenham pais estrangeiros e desde que eles não estejam a serviço de seu país de origem;
- os que nascem no exterior enquanto um de seus pais estiver serviço do Brasil;
- e os que nascem no exterior, de pai ou mãe brasileira, que sejam registrados na repartição brasileira competente ou venham a residir no Brasil e optem, após atingirem a maioridade, pela nacionalidade brasileira.
Já os brasileiros
naturalizados são aqueles que adquirem a nacionalidade voluntariamente,
seguindo os trâmites legais aplicáveis. Essa diferenciação é importante pois os
cargos mais estratégicos de nossa República somente podem ser ocupados por
brasileiros natos.
É o caso dos
cargos de Presidente, Vice-Presidente, Presidente da Câmara dos Deputados,
Presidente do Senado Federal, Ministro do Supremo Tribunal Federal,
funcionários da carreira diplomática, oficiais das Forças Armadas e Ministro de
Estado da Defesa.
A
Constituição Federal, assim, garante a igualdade política entre brasileiros
natos e naturalizados, pero no mucho.
A
nacionalidade brasileira, originária ou adquirida, é requisito para a
cidadania, que é a capacidade de participar do governo e de ser representado
politicamente. Assim, nem todo brasileiro é cidadão, mas todo cidadão é
brasileiro.
Como se
adquire essa capacidade mágica?
Fácil: basta
que o indivíduo (brasileiro nato ou naturalizado) aliste-se eleitoralmente
quando atingir 16 anos. Seria um bom motivo de preocupação se houvesse uma
lista de requisitos do tipo ser homem, ter nascido em tal lugar, ser adepto de
determinada religião, superar uma renda anual de tantos reais. E, veja que
interessante, a cidadania é tão boa, mas tão boa, que nós somos obrigados a
adquirí-la quando completamos 18 anos, sendo facultativa para os analfabetos,
para os maiores de 70 anos e para os adolescentes entre 16 e 18 anos. Leia esta
última frase com uma pontinha de ironia, porque nenhuma obrigatoriedade me
parece adequada no campo político.
2. O precioso direito ao voto universal, direto e secreto
Basicamente,
os direitos políticos são compostos pelos direitos de eleger-se para cargos
políticos e de votar em eleições, referendos e plebiscitos.
É um pouco esquisita a forma
como a Constituição se organizou, pois no capítulo de “Direitos Políticos”
somente tratou das regras eleitorais pelas quais o povo intervém na estrutura
governamental. Explico minha estranheza: partindo de um conceito de direitos
políticos menos legalista, parece-me que também deveriam estar incluídos nesse
capítulo os dispositivos sobre partidos políticos. Enfim, colocarei essa alteração
na caixa de sugestões.
O artigo 14 diz que a
soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual para todos.
Hoje, para nós, essa redação
parece a coisa mais normal do mundo, mas em
um passado não tão distante o direito ao voto não era universal, não era direto
e não era secreto. Em vários lugares do planeta essas garantias
ainda não são realidade.
O lance de o voto ser secreto
tem como objetivo evitar qualquer tipo de pressão sobre o eleitor. Não há patrão,
parente, político ou bispo que possa exigir que você lhes diga sua escolha:
suas decisões políticas são pessoais e somente podem ser abertas se você assim
desejar. Esse sigilo também é um excelente artifício para impedir a compra de
votos.
Ainda com relação às
características do voto, quero fazer um comentário sobre o valor igual, o que
significa dizer que cada cidadão tem direito a um voto. Daqui vem o desabafo do
início do texto, pois, como já disse, a Constituição Federal dispõe que todos
os cidadãos têm rigorosamente o mesmo peso eleitoral e o mesmo direito de
influenciar a política do país.
3. Elegibilidade: quem pode se candidatar a quais cargos?
Vejamos também a outra ponta,
sobre os requisitos para ser eleito ou, uma palavra mais exata, os requisitos
de elegibilidade. Exige-se mais de quem quer se eleger do que de quem
simplesmente vota.
Além da nacionalidade
brasileira (e, para aqueles cargos que mencionei acima, a nacionalidade deve
ser originária), cada cargo exige uma idade mínima que varia de 18 anos (para
Vereadores) a 35 anos (para Presidente, Vice-Presidente e Senador).
Adicionalmente, o candidato deve estar em pleno exercício dos direitos
políticos, alistado eleitoralmente, com domicílio eleitoral no local onde
pretende concorrer, e estar filiado a um partido político.
Abro um pequeno parêntese
sobre os partidos políticos, porque sei da força que o apartidarismo tem tomado
na sociedade brasileira.
Este texto limita-se a tratar
dos fundamentos jurídicos da ação política e, sinceramente, os fundamentos
jurídicos dos partidos políticos são pouco interessantes, pelo menos para este
momento. A discussão sobre a pertinência da obrigatoriedade de filiação para a
elegibilidade e sobre a forma como os partidos políticos atuam são discussões
características da ciência política, que certamente tem muito mais a contribuir
para o tema do que o direito. Sinto frustrar o leitor ao não tratar dos
partidos políticos, mas me aprofundarei no tema em outro texto sobre o assunto.
Além dos requisitos para
elegibilidade, existem algumas proibições, ou inelegibilidades. Como são
restrições ao direito político, um dos mais caros direitos individuais, as
inelegibilidades são poucas e têm o objetivo de manter a normalidade da
condução do Estado e evitar o abuso de poder.
4. E quem não pode se candidatar:
A primeira inelegibilidade é
a dos analfabetos.
Por mais inclusiva que seja a
Constituição Federal, entendeu-se que a atividade política exige que o
candidato possa escrever e ler, considerando que invariavelmente sua função, se
eleito, lhe exigirá tais competências. Este assunto ficou em evidência nas
últimas eleições para Deputado Federal, em que se questionou a condição de alfabetizado do candidato Tiririca, eleito por
São Paulo.
É bom ressaltar que somente é
necessária a alfabetização. É comum ouvirmos o discurso de que fulano não tem
faculdade, ou que cicrano nem fala inglês para desqualificar um político.
Ora, ora. Esse tipo de
argumentação é criticável por alguns motivos, dentre os quais destaco os
seguintes:
(i) a população brasileira é
heterogênea, e parece-me saudável que essa heterogeneidade se reflita também no
sistema político; do mesmo jeito que pessoas com ensino superior não se sentem
representadas por parlamentares menos letrados, as pessoas sem estudo formal
podem ver as titulações acadêmicas com desconfiança;
(ii) nossa cultura supervaloriza
a educação formal e se esquece de que há sabedoria e conhecimento prático fora das escolas e
universidades;
(iii) se o político foi eleito,
ele reuniu os votos de diversas pessoas que o julgaram digno para representá-las;
menosprezar um político é ignorar as pessoas que se identificaram com ele.
Tente aceitar que o nosso
país é por demais desigual e que um Legislativo que reflita essa desigualdade
garante legitimidade a todos os extratos da população.
Digo tente aceitar porque
este é um exercício saudável e estou aqui para fomentar a discussão, mas
raciocínios mais oligárquicos, em que se defende que a população seja liderada
por um grupo de pessoas supostamente mais esclarecidas que são capazes de
discernir o que é melhor para a população, mesmo contra sua vontade, também são
possíveis.
Particularmente, não partilho
desse entendimento pois, embora eu consiga entender seus fundamentos, parece-me
que os riscos envolvidos na concentração do poder político são maiores do que
os possíveis benefícios.
Prosseguindo, outra
inelegibilidade constitucional é a do terceiro mandato consecutivo para os
chefes do Poder Executivo dos 3 níveis federativos. Em outros termos,
permite-se a reeleição consecutiva de Presidente, Governador e Prefeito uma
única vez, de modo a evitar que uma pessoa se perpetue no Poder.
Se você prestar atenção na
Constituição, vai perceber que o §5° (lê-se parágrafo quinto) do art. 14
original está riscado, e que há uma nova redação de 1997. Isso porque a redação
original de 1988 não previa a possibilidade de reeleição, que só foi
estabelecida depois de muita discussão política.
Uma inelegibilidade
semelhante recai sobre cônjuge e parentes consanguíneos ou afins, até o segundo
grau ou por adoção, dos chefes do Executivo (presidentes, governadores e
prefeitos) no território de jurisdição do titular, evitando-se a criação de
clãs familiares no poder.
Por fim, a última
inelegibilidade prevista constitucionalmente é aquela referente aos militares,
que não podem exercer cargos eletivos juntamente com suas carreiras. Este
dispositivo é uma clara resposta ao período anterior a 1988, em que o país
viveu sob uma ditadura militar. O trauma foi grande e acho particularmente
benéfica essa separação entre domínio técnico da força e poder político.
Considerando que a
Constituição Federal tem o propósito de ser um documento básico, é natural que
diversos assuntos sejam direcionados para tratamento infraconstitucional (ou
seja, assuntos tratados em leis de hierarquia inferior à da Constituição).
Isso ocorre com as
inelegibilidades, que, de acordo com a própria Constituição, podem ser criadas
via lei complementar. É o que ocorre, por exemplo, com
a Lei da Ficha Limpa, que alterou
a Lei Complementar 64 e que resultou nisso aqui: 14 mil fichas-sujas devem ser impedidos de disputar as eleições
esse ano.
Como essas leis são extensas
e detalhadas, sugiro que você dê uma lida nelas sozinho. Se ficar com muita
preguiça, o resumo é que se o cara vacilou forte, ele não vai poder se eleger.
5. Como plebiscitos e referendos funcionam? Eles são iguais?
Os direitos de votar e ser
votado fazem parte da democracia
indireta adotada no Brasil, segundo a qual a eleição de nossos
representantes é direta, mas o efetivo exercício político é feito indiretamente
pelos representantes.
Existem, contudo, momentos em
que o processo de tomada de decisões políticas pode se dar diretamente, por meio
de uma consulta popular que pode tomar a forma de plebiscitos ou referendos.
A diferença entre eles é que
o plebiscito é realizado antes da criação de determinado ato legislativo,
enquanto que o referendo é convocado após sua criação para que o eleitorado o
aceite ou rejeite.
As consultas populares são
exceções em nosso sistema político e se justificam em questões de alto impacto
social, como ocorreu com o Plebiscito de 1993, em que a população
escolheu entre monarquia ou república e parlamentarismo ou presidencialismo, e com o Referendo de 2005, sobre o estatuto do desarmamento.
Com a agitação social de
junho de 2013, um debate bastante saudável foi instaurado sobre uma possível
consulta popular referente à reforma política, mas o assunto esfriou junto com
os ânimos dos brasileiros.
6. Iniciativa popular: o mecanismo por meio do qual você pode participar diretamente
Um outro instrumento de
participação direta previsto pela Constituição Federal é a iniciativa popular,
que é a proposta de legislação que brota diretamente do povo, e não de seus
representantes.
No Brasil, a iniciativa
popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto
de lei subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional (atualmente, 1.4 milhão de pessoas), distribuído por pelo
menos cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles. Dá
um trabalhão e é um baita desafio, é verdade, mas pensa que as dificuldades
para mobilização popular em 1988 eram muito maiores do que hoje.
Se antes a iniciativa popular
poderia ser apenas uma previsão formal ou, pior, uma ferramenta disponível
somente aos setores da população que detinham influência em pelo menos 5
Estados da União, o avanço dos meios de telecomunicações mudou essa situação ao
permitir uma conexão sem fronteiras físicas aos concidadãos do país.
A própria lei da Ficha Limpa,
da qual falei acima, é resultado da iniciativa popular. Ela é o quarto projeto dessa natureza a se tornar lei. Bacana,
né?
7. É possível perder os direitos políticos?
Finalizando, se a
Constituição Federal prevê os direitos políticos, nada mais justo que ela
também diga quando tais direitos podem ser retirados. É bom saber que o
constituinte foi sábio o suficiente para proibir a cassação, que é entendida
como a retirada dos direitos políticos de forma unilateral pelo poder público,
e limitar a perda ou a suspensão desses direitos a poucos casos.
O art. 15 dispõe que se perde
definitivamente os direitos políticos em razão da perda da nacionalidade
brasileira ou da recusa em cumprir obrigação a todos imposta ou prestação
alternativa por motivo de crença ou convicções filosóficas ou políticas – pensa
na negativa de prestação do serviço militar pelos homens, por exemplo.
Quando, contudo, o impeditivo
tem natureza temporária – como uma incapacidade civil absoluta, condenação
criminal transitada em julgado e improbidade administrativa – os direitos
políticos são apenas suspensos, mas depois voltam.
* * *
Apenas para
concluir, eu imaginava que este texto seria o menor da série, mas acabou que
errei. Quando vi, já estava maior que o primeiro.
Vou parar o
monólogo por aqui e deixar a discussão fluir nos comentários, que têm sido uma
ótima fonte de aprendizado. E, claro, vou começar a preparar o próximo artigo
sobre as competências da União, dos Estados, do Município e do Distrito
Federal.
* * *
Nota do
editor: esse é o segundo texto da série "Para entender política", por meio da qual pretendemos
elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos
ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem
difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando.
É advogado de propósito. Gosta de arte, música e
política e acredita que sempre dá para mudar. Acredita também que Yourcenar
está sempre certa, e que isso não muda nunca.
Adorei este texto ... bastante claro ... objetivo ... vou procurar o anterior que ainda não li ... e como o proprio autir falou é preciso conhecer melhor pra poder participar ... falar menos bobagem ... não compartilhar ideias errôneas ou que não são possíveis para nossa Constituição ... agradecida ... vou compartilhar
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