terça-feira, 27 de agosto de 2013

O padre e o comunista

Morto em 25 de março, o padre Renzo Rossi deixou marcas eternas por onde passou.

Sigo nesse texto o esforço de continuar revelando o trabalho do padre Renzo Rossi, morto em 25 de março deste ano. Renzo deixou marcas eternas por onde passou. Nunca fez alarde disso, e talvez tenha sido essa característica, de servir sem esperar retorno, que o fez tão querido por todos que tenham compartilhado de sua convivência, inclusive pelos que tinham convicções materialistas, como as dezenas e dezenas de prisioneiros e prisioneiras políticas que visitou país afora. Há mais de dez anos, escrevi o livro As asas invisíveis do padre Renzo. Recentemente, junto com Jorge Fellipi, dirigi o filme do mesmo nome, que brevemente irá às telas da TV Brasil.


Aqui, vou esboçar uma convivência específica entre ele e Haroldo Lima. Nascido em Caetité, na Bahia, em 7 de outubro de 1939, Lima intensifica sua militância política com o ingresso no curso de Engenharia da Universidade Federal da Bahia, em 1959, pelo qual se forma em 1963. Foi o orador de sua turma. Destacou-se como liderança política vinculada à Juventude Universitária Católica (JUC), recrutado por Jorge Leal Gonçalves Ferreira, mais tarde morto pela ditadura, um dos desaparecidos do período. Tanto Ferreira quanto Lima foram fundadores da organização revolucionária Ação Popular.

Ação Popular (AP) nasce em 1963, a partir de um encontro em Salvador, na Bahia, do qual participam Herbert José de Souza, (Betinho), Duarte Pereira, Aldo Arantes, José Serra, ele mesmo, Vinicius Caldeira Brandt, Jorge Leal Ferreira, Péricles de Souza, Severo Sales, Fernando Schmidt, Manoel Joaquim Barros, e o próprio Haroldo Lima, para lembrar alguns nomes. Nasce a partir do cristianismo progressista, tendo a Juventude Universitária Católica como berço, passa ao marxismo, enamora-se do maoísmo, chega à compreensão radicalizada da luta revolucionária socialista, e desaparece no final dos anos 70, início dos anos 80.

Uma boa parte de seus dirigentes e militantes é incorporada pelo PCdoB no início dos anos 70, que recebe a herança da presença sólida dela no movimento estudantil. Vários dos atuais dirigentes do PCdoB de hoje são remanescentes da AP. A partir de outubro de 1973, uma ofensiva brutal da repressão mata a maior parte dos dirigentes da AP socialista, aquela que não se incorporou ao PCdoB: José Carlos Novais da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, Paulo Wright, Fernando Santa Cruz, entre outros.

Lima está entre os que lideraram a movimentação da AP em direção ao PCdoB, em oposição, por exemplo, a Paulo Wright e Jair Ferreira de Sá, que defendiam a manutenção da organização. A AP havia, então, se orientado numa nova perspectiva – a da revolução socialista –, ultrapassando a noção de revolução por etapas, como era defendida pelo PCdoB, que a herdara do PCB.

A radicalização do PCdoB, ao decidir-se pela deflagração da Guerrilha do Araguaia, início dos anos 70, não o livrara da idéia  da revolução em etapas: primeiro, a democrático-popular; depois a socialista. Desde 1973, quando deu-se a incorporação de um amplo contingente de AP ao PCdoB, Lima integra o Comitê Central do partido. Cedo, destacou-se como liderança estudantil.

Em 1963, no texto escrito por ele para ser lido na solenidade de formatura dos Engenheiros da UFBA, eleito orador da turma, firma sua convicção socialista, anticapitalista, humanista, sem se desvincular do cristianismo. Daí em diante, caminhará aceleradamente em direção ao marxismo, naturalmente um marxismo contingenciado pelas circunstâncias históricas de então.

Foi dirigente da AP durante anos. Era o Zé Antonio, seu nome frio dentro da organização, não tão desconhecido como se pretendia. Suas relações com o padre Renzo se iniciam logo depois da chegada do sacerdote ao Brasil, quando este estava ainda na igrejinha do Alto dos Perus junto com o padre Paulo Tonnucci, que viera com ele da Itália na missão religiosa, em meados dos anos 60.

Provavelmente final de 1965 ou início de 1966, Lima, já um dos dirigentes centrais da AP, conversa com seu companheiro de organização, Ronald Freitas. Este também saiu de AP, foi para o PCdoB e é até hoje um dos dirigentes nacionais do partido. Na conversa, Freitas informa a Lima da chegada dos padres italianos. Define-os como “muito interessantes”. Estivera com um deles, Renzo, e propõe a Lima conhecê-lo. É apresentado por Freitas a Renzo na pequena igreja do Alto dos Perus, janta com ele, toma um bom vinho, já que italiano, riem muito, e Lima sai de lá com uma ótima impressão.

Uma pessoa descontraída, leve, sem malícia, disposta a servir, a ajudar o próximo. Foi assim que Lima o percebeu. Os olhos alumiaram: aquela disposição para ajudar podia ser muito útil à organização, a se debater continuamente para encontrar um lugar para se reunir. A conjuntura, sob a ditadura, era de dificuldades.

Até a morte do sacerdote, em março de 2013, nunca deixarão de ser amigos, e Renzo se tornará uma anjo providencial para Lima em diversas ocasiões. O anjo invisível surgia como que do nada, e o socorria. Possibilidade só reservada a anjos, provavelmente.

Lima, logo na primeira conversa, em meio à comida e ao vinho, se adiantou: precisava de local para uma reunião com umas 20 pessoas. Para a AP, naquelas circunstâncias, era um encontro grande. Não era fácil, sob a ditadura, encontrar lugar para reunir 20 pessoas. Renzo não relutou. Houve a reunião, com direito a almoço para todos, e o sacerdote fez questão de se apresentar a todos. Lima se impressionou com a forma descontraída como ele se relacionava com as pessoas e as situações.

Para todos os participantes da reunião, tratava-se de uma situação tensa e perigosa, como de fato era. E Renzo brincando, sorrindo, dando tapas em todo mundo, alegre, feliz, pronto a servir. Depois desse primeiro encontro, a cada solicitação, dava um jeito de encontrar locais para que a AP se reunisse. Os laços foram se consolidando.

Renzo não fortalecia apenas a amizade com Lima. Conheceu também Jorge Leal, já havia estabelecido relação com Ronald Freitas. Jorge Leal, de modo especial, encontrou grandes afinidades com Renzo, especialmente pelo fato de ser, ainda, coordenador da Juventude Universitária Católica. Era um ano mais velho que Lima, um católico mais convicto até ali, com uma sólida base teológica, e tudo isso o aproximou muito do sacerdote.

Entre 1966 e 1967, chega à Bahia o padre Alípio de Freitas, que tivera intensa participação política no período anterior a 1964, muito visado pela repressão, portanto. O sacerdote tivera forte vinculação com as Ligas Camponesas do Nordeste, cuja principal liderança era Francisco Julião. No período anterior a 64, tão explosiva era sua atuação, que o cardeal dom Jaime de Barros Câmara, quando o soube no Rio de Janeiro, determinou: em sua diocese, não podia celebrar missa. Antes de chegar à Bahia, estivera em Cuba. E agora queria passar o que aprendera de luta armada para a AP.

Padre Alípio atendia por outro nome, mas Lima sabia de sua real identidade. Todos da AP queriam assistir aos cursos dele, mas não havia onde colocá-lo. “Ele era uma espécie de elefante, muito grande, conhecidíssimo no Brasil, perseguidíssimo, totalmente clandestino, quase um Prestes quanto à situação de segurança”, explica Lima.

Este, ainda na legalidade, engenheiro da Coelba, leva-o para seu apartamento, à avenida D. João VI, em Brotas, Salvador. O sacerdote só saía à noite. Depois de algum tempo, a situação de segurança se agravou. Era necessário tirá-lo de lá. Tanto por ele próprio, quanto por Lima, que podia ser preso também como decorrência de uma eventual prisão de padre Alípio.

Lima recorreu a Renzo, sem dizer tudo a ele. Limitou-se a informar tratar-se de pessoa muito perseguida. Não disse sequer que era padre. Renzo não titubeou: problemas, para ele, deviam ser resolvidos, e ponto. Padre Alípio foi para o novo abrigo. Quando, poucos dias depois, Haroldo voltou para vê-lo no Alto dos Perus, surpreende-se com a intimidade entre os dois, Renzo já sabia de tudo, e não estava assustado, nada. Haroldo se impressionava a cada passo com a disponibilidade de Renzo, com sua entrega, com seu desassombro diante das dificuldades, com sua capacidade de convivência com as mais variadas situações.

A figura de Luís Medeiros foi outra a impulsionar a humanidade de Renzo, o amor dele pelos perseguidos. Este, militando na AP, depois de participar como dirigente da greve dos canaviais do Cabo, em Pernambuco, 1968, é preso, e se joga do segundo andar do prédio do DOPS em São Paulo, depois de ser violentamente torturado. Era dezembro de 1968.

Medeiros ficou tetraplégico. Lima estava em Recife, como dirigente da AP naquele final de 1968, e por variados caminhos, fez chegar a dom Hélder Câmara a informação. Tem uma convicção: foi a visão daquele corpo destroçado, todo queimado por cigarros e sem poder se mexer, que levou dom Hélder a iniciar as denúncias sobre as atrocidades da ditadura.

Anos depois, Renzo, após iniciar sua odisséia de visitas e solidariedade aos prisioneiros políticos de todo o País em 1975, vai se cruzar com Medeiros, e dará a ele uma assistência superior àquela que pai ou mãe dá a um filho, como define Lima. Ia de Salvador para Brasília seguidamente, onde Medeiros estava então, levanta recursos pra ele, dá-lhe uma mesada, mexe com Recife para que os companheiros ingressem com ações penais visando indenizações, paga advogados. Conversa com Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, e consegue com que a Assembléia Legislativa aprove uma pequena pensão para Medeiros.

Foram anos nessa empreitada de amor. Medeiros só mexia os olhos e a cabeça, e criou com Renzo uma relação profunda de amor – não temia pedir ajuda ao sacerdote, qualquer dificuldade acorria a ele, até morrer. Essa relação impressionou Lima profundamente.

Lima será preso às 9 horas do dia 16 de dezembro de 1976, na esteira do que é conhecido como Massacre da Lapa, em São Paulo, quando são assassinados Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Baptista Drumond. Será levado imediatamente para o quartel da Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, e torturado barbaramente durante 11 dias. Depois dessa fase, volta para São Paulo, para o DOPS, onde permanece por coisa de quase 40 dias, e depois é levado para o Presídio do Hipódromo e em seguida para o Barro Branco. E é aqui que Renzo reencontra Haroldo Lima.

Renzo dava uma assistência sistemática aos presos políticos do presídio do Barro Branco. Envolvia-se profundamente com as questões pessoais de cada um dos prisioneiros, inclusive aquelas envolvendo os familiares deles – mulher, filhos, pais, parentes. E a cada visita seguinte, prestava conta de tudo. E não era uma assistência religiosa clássica. Tornou-se amigo de todos, sem qualquer pretensão de converter ninguém.

A segunda linha de assistência era política, em sentido amplo. Passou a ser, desde 1975, quando começa a sua peregrinação pelos presídios políticos brasileiros, um pombo-correio, ponto de articulação entre os presos políticos de todo o Brasil. Não havia quem pudesse realizá-la. O surgimento de Renzo foi absolutamente providencial. Passou a ser a fonte de informações entre os prisioneiros para combinar datas e formas de luta.

Portava-se como um autêntico militante clandestino: não tomava nota de nada, tinha consciência dos riscos, dava um jeito de memorizar tudo, anotava apenas uma ou outra palavra-chave para conseguir ser rigoroso no cumprimento das tarefas. Na visita seguinte, prestava contas de tudo, um militante absolutamente responsável, embora nunca tenha sido vinculado especificamente a nenhuma das organizações revolucionárias. Tratava-se de uma militância cristã muito singular, um homem a quem o cristianismo fez muito bem. Renzo conseguiu reunir na vida o melhor do Evangelho: amar o outro sem esperar nada em troca.

Fosse um irresponsável, e representaria um risco muito grande. Sabia a história política de cada um e, para além disso, a vida pessoal de todos, seus dramas familiares, angústias, dificuldades financeiras, tudo. As informações dominadas por ele ultrapassavam o conhecimento de qualquer um dos prisioneiros. Com o cumprimento das tarefas, sempre um cumprimento muito rigoroso, a confiança nele foi aumentando – esta a impressão de Lima desde que o reencontrou no Barro Branco.

Renzo contribuiu para a articulação de greves de fome nacionais, esteve solidário em outras parciais, país afora. Lima recorda-se de modo particular da deflagrada em julho de 1979 a favor da anistia, decretada no final de agosto. Nesta, o dirigente comunista viveu uma situação singular. A greve já havia sido deflagrada, e ele não podia ainda parar de se alimentar. É que Theodomiro Romeiro dos Santos iria fugir, como fugiu, no dia 17 de agosto. Lima havia preparado uma carta aberta para anunciar a fuga e a sua entrada na greve, e isso só pôde ser feito uns três dias após a fuga, quando foi descoberta.

Theodomiro fugiu porque temia ser assassinado logo depois que os demais companheiros encarcerados na Galeria F da Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, fossem soltos – Paulino Vieira e o próprio Haroldo Lima. Sabia-se que a anistia a ser aprovada não contemplava os acusados pelos chamados “crimes de sangue”, como era o caso de Theodomiro. A anistia terminará por perdoar torturadores. E não anistiará os revolucionários que tenham resistido à prisão.

Lima saiu alguns dias depois de 28 de agosto de 1979, data da decretação da anistia pelo ditador João Baptista de Figueiredo, depois de aprovada pelo Congresso Nacional. Ainda o retiveram na prisão umas 48 horas para tentar esclarecer circunstâncias da fuga de Theodomiro, infrutiferamente. A repressão ficou estupefata com o fato, e mal sabiam que aquela fuga tivera a participação decisiva do padre Renzo.

Theodomiro pôde se locomover com mais facilidade em direção aos esconderijos em que ficou até se asilar na Nunciatura Apostólica em Brasília, e depois seguir para o exílio, devido aos dez mil dólares entregues por Renzo no Centro de Treinamento de Líderes, em Itapoan, organização da Igreja Católica, alguns dias antes.

Quando Lima foi solto, à noite, ao chegar em casa depara-se novamente com Renzo, que o esperava com toda a alegria do mundo. Alegria por ele, Haroldo Lima. Alegria por saber que Theodomiro estava são e salvo em algum lugar do Brasil ou do mundo. Alegria pela anistia pela qual lutara tanto. Mesmo insuficiente, trouxera felicidade a tanta gente. Pergunta a Lima: como vai sobreviver? “Recebo uma ajudazinha do partido”. Renzo passa a lhe dar uma mesada como ajuda.

E aí veio o Movimento contra a Carestia, início dos anos 80. E a explosão popular: centenas de ônibus depredados durante uma semana. Lima estava em casa quando recebe a visita de Renzo, por acaso, em plena efervescência daquela quase-insurreição urbana da capital baiana. De repente, batem à porta. Era a polícia. Não houve chance de escapar, foi arrastado, ele grita: “estou sendo preso”.

A polícia não se incomodou ao vislumbrar aquele pacato cidadão na sala. Enganara-se. Renzo, mal os policiais saíram, tomou do telefone, e deu o alarme. Quando Lima chega à Secretaria de Segurança Pública, na Piedade, vê advogados, amigos, militantes. Decorrência direta da ação do anjo invisível. Antonio Carlos Magalhães queria responsabilizar Lima pelo quebra-quebra. Poucos dias depois, é solto. Quando chega em casa, Renzo o espera. Ia levá-lo a uma audiência com o cardeal dom Avelar Brandão Vilela. O anjo invisível nunca descansa.


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