Morto
em 25 de março, o padre Renzo Rossi deixou marcas eternas por onde passou.
por Emiliano José
Sigo nesse
texto o esforço de continuar revelando o trabalho do padre Renzo Rossi, morto
em 25 de março deste ano. Renzo deixou marcas eternas por onde passou. Nunca
fez alarde disso, e talvez tenha sido essa característica, de servir sem
esperar retorno, que o fez tão querido por todos que tenham compartilhado de
sua convivência, inclusive pelos que tinham convicções materialistas, como as
dezenas e dezenas de prisioneiros e prisioneiras políticas que visitou país
afora. Há mais de dez anos, escrevi o livro As asas invisíveis do padre
Renzo. Recentemente, junto com Jorge Fellipi, dirigi o filme do mesmo nome, que
brevemente irá às telas da TV Brasil.
Aqui, vou
esboçar uma convivência específica entre ele e Haroldo Lima. Nascido em
Caetité, na Bahia, em 7 de outubro de 1939, Lima intensifica sua militância
política com o ingresso no curso de Engenharia da Universidade Federal da
Bahia, em 1959, pelo qual se forma em 1963. Foi o orador de sua turma.
Destacou-se como liderança política vinculada à Juventude Universitária
Católica (JUC), recrutado por Jorge Leal Gonçalves Ferreira, mais tarde morto
pela ditadura, um dos desaparecidos do período. Tanto Ferreira quanto Lima
foram fundadores da organização revolucionária Ação Popular.
Ação Popular
(AP) nasce em 1963, a partir de um encontro em Salvador, na Bahia, do qual
participam Herbert José de Souza, (Betinho), Duarte Pereira, Aldo Arantes, José
Serra, ele mesmo, Vinicius Caldeira Brandt, Jorge Leal Ferreira, Péricles de
Souza, Severo Sales, Fernando Schmidt, Manoel Joaquim Barros, e o próprio
Haroldo Lima, para lembrar alguns nomes. Nasce a partir do cristianismo
progressista, tendo a Juventude Universitária Católica como berço, passa ao
marxismo, enamora-se do maoísmo, chega à compreensão radicalizada da luta revolucionária
socialista, e desaparece no final dos anos 70, início dos anos 80.
Uma boa parte
de seus dirigentes e militantes é incorporada pelo PCdoB no início dos anos 70,
que recebe a herança da presença sólida dela no movimento estudantil. Vários
dos atuais dirigentes do PCdoB de hoje são remanescentes da AP. A partir de
outubro de 1973, uma ofensiva brutal da repressão mata a maior parte dos
dirigentes da AP socialista, aquela que não se incorporou ao PCdoB: José Carlos
Novais da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, Paulo Wright, Fernando Santa
Cruz, entre outros.
Lima está
entre os que lideraram a movimentação da AP em direção ao PCdoB, em oposição,
por exemplo, a Paulo Wright e Jair Ferreira de Sá, que defendiam a manutenção
da organização. A AP havia, então, se orientado numa nova perspectiva – a da
revolução socialista –, ultrapassando a noção de revolução por etapas, como era
defendida pelo PCdoB, que a herdara do PCB.
A
radicalização do PCdoB, ao decidir-se pela deflagração da Guerrilha do
Araguaia, início dos anos 70, não o livrara da idéia da revolução em
etapas: primeiro, a democrático-popular; depois a socialista. Desde 1973,
quando deu-se a incorporação de um amplo contingente de AP ao PCdoB, Lima
integra o Comitê Central do partido. Cedo, destacou-se como liderança
estudantil.
Em 1963, no
texto escrito por ele para ser lido na solenidade de formatura dos Engenheiros
da UFBA, eleito orador da turma, firma sua convicção socialista,
anticapitalista, humanista, sem se desvincular do cristianismo. Daí em diante,
caminhará aceleradamente em direção ao marxismo, naturalmente um marxismo
contingenciado pelas circunstâncias históricas de então.
Foi dirigente
da AP durante anos. Era o Zé Antonio, seu nome frio dentro da organização, não
tão desconhecido como se pretendia. Suas relações com o padre Renzo se iniciam
logo depois da chegada do sacerdote ao Brasil, quando este estava ainda na
igrejinha do Alto dos Perus junto com o padre Paulo Tonnucci, que viera com ele
da Itália na missão religiosa, em meados dos anos 60.
Provavelmente
final de 1965 ou início de 1966, Lima, já um dos dirigentes centrais da AP,
conversa com seu companheiro de organização, Ronald Freitas. Este também saiu
de AP, foi para o PCdoB e é até hoje um dos dirigentes nacionais do partido. Na
conversa, Freitas informa a Lima da chegada dos padres italianos. Define-os
como “muito interessantes”. Estivera com um deles, Renzo, e propõe a Lima
conhecê-lo. É apresentado por Freitas a Renzo na pequena igreja do Alto dos
Perus, janta com ele, toma um bom vinho, já que italiano, riem muito, e Lima
sai de lá com uma ótima impressão.
Uma pessoa
descontraída, leve, sem malícia, disposta a servir, a ajudar o próximo. Foi
assim que Lima o percebeu. Os olhos alumiaram: aquela disposição para ajudar
podia ser muito útil à organização, a se debater continuamente para encontrar
um lugar para se reunir. A conjuntura, sob a ditadura, era de dificuldades.
Até a morte do
sacerdote, em março de 2013, nunca deixarão de ser amigos, e Renzo se tornará
uma anjo providencial para Lima em diversas ocasiões. O anjo invisível surgia
como que do nada, e o socorria. Possibilidade só reservada a anjos,
provavelmente.
Lima, logo na
primeira conversa, em meio à comida e ao vinho, se adiantou: precisava de local
para uma reunião com umas 20 pessoas. Para a AP, naquelas circunstâncias, era
um encontro grande. Não era fácil, sob a ditadura, encontrar lugar para reunir
20 pessoas. Renzo não relutou. Houve a reunião, com direito a almoço para
todos, e o sacerdote fez questão de se apresentar a todos. Lima se impressionou
com a forma descontraída como ele se relacionava com as pessoas e as situações.
Para todos os
participantes da reunião, tratava-se de uma situação tensa e perigosa, como de
fato era. E Renzo brincando, sorrindo, dando tapas em todo mundo, alegre,
feliz, pronto a servir. Depois desse primeiro encontro, a cada solicitação,
dava um jeito de encontrar locais para que a AP se reunisse. Os laços foram se
consolidando.
Renzo não
fortalecia apenas a amizade com Lima. Conheceu também Jorge Leal, já havia
estabelecido relação com Ronald Freitas. Jorge Leal, de modo especial,
encontrou grandes afinidades com Renzo, especialmente pelo fato de ser, ainda,
coordenador da Juventude Universitária Católica. Era um ano mais velho que Lima,
um católico mais convicto até ali, com uma sólida base teológica, e tudo isso o
aproximou muito do sacerdote.
Entre 1966 e
1967, chega à Bahia o padre Alípio de Freitas, que tivera intensa participação
política no período anterior a 1964, muito visado pela repressão, portanto. O
sacerdote tivera forte vinculação com as Ligas Camponesas do Nordeste, cuja
principal liderança era Francisco Julião. No período anterior a 64, tão
explosiva era sua atuação, que o cardeal dom Jaime de Barros Câmara, quando o soube
no Rio de Janeiro, determinou: em sua diocese, não podia celebrar missa. Antes
de chegar à Bahia, estivera em Cuba. E agora queria passar o que aprendera de
luta armada para a AP.
Padre Alípio
atendia por outro nome, mas Lima sabia de sua real identidade. Todos da AP
queriam assistir aos cursos dele, mas não havia onde colocá-lo. “Ele era uma
espécie de elefante, muito grande, conhecidíssimo no Brasil, perseguidíssimo,
totalmente clandestino, quase um Prestes quanto à situação de segurança”,
explica Lima.
Este, ainda na
legalidade, engenheiro da Coelba, leva-o para seu apartamento, à avenida D.
João VI, em Brotas, Salvador. O sacerdote só saía à noite. Depois de algum
tempo, a situação de segurança se agravou. Era necessário tirá-lo de lá. Tanto
por ele próprio, quanto por Lima, que podia ser preso também como decorrência
de uma eventual prisão de padre Alípio.
Lima recorreu
a Renzo, sem dizer tudo a ele. Limitou-se a informar tratar-se de pessoa
muito perseguida. Não disse sequer que era padre. Renzo não titubeou:
problemas, para ele, deviam ser resolvidos, e ponto. Padre Alípio foi para o
novo abrigo. Quando, poucos dias depois, Haroldo voltou para vê-lo no Alto dos
Perus, surpreende-se com a intimidade entre os dois, Renzo já sabia de tudo, e
não estava assustado, nada. Haroldo se impressionava a cada passo com a
disponibilidade de Renzo, com sua entrega, com seu desassombro diante das
dificuldades, com sua capacidade de convivência com as mais variadas situações.
A figura de
Luís Medeiros foi outra a impulsionar a humanidade de Renzo, o amor dele pelos
perseguidos. Este, militando na AP, depois de participar como dirigente da
greve dos canaviais do Cabo, em Pernambuco, 1968, é preso, e se joga do segundo
andar do prédio do DOPS em São Paulo, depois de ser violentamente torturado.
Era dezembro de 1968.
Medeiros ficou
tetraplégico. Lima estava em Recife, como dirigente da AP naquele final de
1968, e por variados caminhos, fez chegar a dom Hélder Câmara a informação. Tem
uma convicção: foi a visão daquele corpo destroçado, todo queimado por cigarros
e sem poder se mexer, que levou dom Hélder a iniciar as denúncias sobre as
atrocidades da ditadura.
Anos depois,
Renzo, após iniciar sua odisséia de visitas e solidariedade aos prisioneiros
políticos de todo o País em 1975, vai se cruzar com Medeiros, e dará a ele uma
assistência superior àquela que pai ou mãe dá a um filho, como define Lima. Ia
de Salvador para Brasília seguidamente, onde Medeiros estava então, levanta
recursos pra ele, dá-lhe uma mesada, mexe com Recife para que os companheiros
ingressem com ações penais visando indenizações, paga advogados. Conversa com
Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, e consegue com que a Assembléia
Legislativa aprove uma pequena pensão para Medeiros.
Foram anos
nessa empreitada de amor. Medeiros só mexia os olhos e a cabeça, e criou com
Renzo uma relação profunda de amor – não temia pedir ajuda ao sacerdote,
qualquer dificuldade acorria a ele, até morrer. Essa relação impressionou Lima
profundamente.
Lima será
preso às 9 horas do dia 16 de dezembro de 1976, na esteira do que é conhecido
como Massacre da Lapa, em São Paulo, quando são assassinados Pedro Pomar,
Ângelo Arroyo e João Baptista Drumond. Será levado imediatamente para o quartel
da Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, e torturado barbaramente durante 11
dias. Depois dessa fase, volta para São Paulo, para o DOPS, onde permanece por
coisa de quase 40 dias, e depois é levado para o Presídio do Hipódromo e em
seguida para o Barro Branco. E é aqui que Renzo reencontra Haroldo Lima.
Renzo dava uma
assistência sistemática aos presos políticos do presídio do Barro Branco.
Envolvia-se profundamente com as questões pessoais de cada um dos prisioneiros,
inclusive aquelas envolvendo os familiares deles – mulher, filhos, pais,
parentes. E a cada visita seguinte, prestava conta de tudo. E não era uma
assistência religiosa clássica. Tornou-se amigo de todos, sem qualquer
pretensão de converter ninguém.
A segunda
linha de assistência era política, em sentido amplo. Passou a ser, desde 1975,
quando começa a sua peregrinação pelos presídios políticos brasileiros, um
pombo-correio, ponto de articulação entre os presos políticos de todo o Brasil.
Não havia quem pudesse realizá-la. O surgimento de Renzo foi absolutamente
providencial. Passou a ser a fonte de informações entre os prisioneiros para
combinar datas e formas de luta.
Portava-se
como um autêntico militante clandestino: não tomava nota de nada, tinha
consciência dos riscos, dava um jeito de memorizar tudo, anotava apenas uma ou
outra palavra-chave para conseguir ser rigoroso no cumprimento das tarefas. Na
visita seguinte, prestava contas de tudo, um militante absolutamente
responsável, embora nunca tenha sido vinculado especificamente a nenhuma das
organizações revolucionárias. Tratava-se de uma militância cristã muito
singular, um homem a quem o cristianismo fez muito bem. Renzo conseguiu reunir
na vida o melhor do Evangelho: amar o outro sem esperar nada em troca.
Fosse um
irresponsável, e representaria um risco muito grande. Sabia a história política
de cada um e, para além disso, a vida pessoal de todos, seus dramas familiares,
angústias, dificuldades financeiras, tudo. As informações dominadas por ele
ultrapassavam o conhecimento de qualquer um dos prisioneiros. Com o cumprimento
das tarefas, sempre um cumprimento muito rigoroso, a confiança nele foi
aumentando – esta a impressão de Lima desde que o reencontrou no Barro Branco.
Renzo
contribuiu para a articulação de greves de fome nacionais, esteve solidário em
outras parciais, país afora. Lima recorda-se de modo particular da deflagrada
em julho de 1979 a favor da anistia, decretada no final de agosto. Nesta, o
dirigente comunista viveu uma situação singular. A greve já havia sido
deflagrada, e ele não podia ainda parar de se alimentar. É que Theodomiro
Romeiro dos Santos iria fugir, como fugiu, no dia 17 de agosto. Lima havia
preparado uma carta aberta para anunciar a fuga e a sua entrada na greve, e
isso só pôde ser feito uns três dias após a fuga, quando foi descoberta.
Theodomiro
fugiu porque temia ser assassinado logo depois que os demais companheiros
encarcerados na Galeria F da Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, fossem
soltos – Paulino Vieira e o próprio Haroldo Lima. Sabia-se que a anistia a ser
aprovada não contemplava os acusados pelos chamados “crimes de sangue”, como
era o caso de Theodomiro. A anistia terminará por perdoar torturadores. E não
anistiará os revolucionários que tenham resistido à prisão.
Lima saiu
alguns dias depois de 28 de agosto de 1979, data da decretação da anistia pelo
ditador João Baptista de Figueiredo, depois de aprovada pelo Congresso
Nacional. Ainda o retiveram na prisão umas 48 horas para tentar esclarecer
circunstâncias da fuga de Theodomiro, infrutiferamente. A repressão ficou
estupefata com o fato, e mal sabiam que aquela fuga tivera a participação
decisiva do padre Renzo.
Theodomiro
pôde se locomover com mais facilidade em direção aos esconderijos em que ficou
até se asilar na Nunciatura Apostólica em Brasília, e depois seguir para o
exílio, devido aos dez mil dólares entregues por Renzo no Centro de Treinamento
de Líderes, em Itapoan, organização da Igreja Católica, alguns dias antes.
Quando Lima
foi solto, à noite, ao chegar em casa depara-se novamente com Renzo, que o
esperava com toda a alegria do mundo. Alegria por ele, Haroldo Lima. Alegria
por saber que Theodomiro estava são e salvo em algum lugar do Brasil ou do
mundo. Alegria pela anistia pela qual lutara tanto. Mesmo insuficiente,
trouxera felicidade a tanta gente. Pergunta a Lima: como vai sobreviver?
“Recebo uma ajudazinha do partido”. Renzo passa a lhe dar uma mesada como
ajuda.
E aí veio o
Movimento contra a Carestia, início dos anos 80. E a explosão popular: centenas
de ônibus depredados durante uma semana. Lima estava em casa quando recebe a
visita de Renzo, por acaso, em plena efervescência daquela quase-insurreição
urbana da capital baiana. De repente, batem à porta. Era a polícia. Não houve
chance de escapar, foi arrastado, ele grita: “estou sendo preso”.
A polícia não
se incomodou ao vislumbrar aquele pacato cidadão na sala. Enganara-se. Renzo,
mal os policiais saíram, tomou do telefone, e deu o alarme. Quando Lima chega à
Secretaria de Segurança Pública, na Piedade, vê advogados, amigos, militantes.
Decorrência direta da ação do anjo invisível. Antonio Carlos Magalhães queria
responsabilizar Lima pelo quebra-quebra. Poucos dias depois, é solto. Quando
chega em casa, Renzo o espera. Ia levá-lo a uma audiência com o cardeal dom
Avelar Brandão Vilela. O anjo invisível nunca descansa.
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