Por Dag Vulpi — 17 de novembro de 2025
Dos medos medievais às controvérsias digitais do século XXI, o debate sobre vacinas jamais foi exclusivamente científico. Ele sempre carregou camadas políticas, religiosas, emocionais, econômicas e simbólicas. Hoje, no Brasil e no mundo, a resistência às campanhas de imunização se reinventa e se projeta em novas arenas: redes sociais, tribunais, algoritmos, marketing personalista, influência digital e, de forma inesperada, um crescente processo de judicialização do discurso médico. Nesse cenário, torna-se urgente discutir não apenas o direito de falar, mas a responsabilidade de influenciar.
1. Breve histórico do movimento antivacina: do século XVIII ao TikTok
O movimento antivacina não é um produto da era digital, embora tenha encontrado na internet o mais fértil dos territórios. Em 1796, quando Edward Jenner apresentou a primeira vacina contra a varíola, as reações foram intensas: charges satirizavam a novidade mostrando humanos transformando-se em vacas, uma metáfora coletiva do temor ao desconhecido que ingressava no corpo.
No Brasil, o episódio mais emblemático ocorreu na Revolta da Vacina (1904), no Rio de Janeiro, marcada não apenas pela resistência ao imunizante, mas principalmente pela forma autoritária, higienista e impositiva com que foi conduzida. Desde então, o problema histórico revela um padrão duplo: medo biológico e resistência sociopolítica.
Com a popularização da internet e do ambiente digital, o discurso antivacina deixou de ser local para tornar-se viral, globalizado e monetizável. O algoritmo transformou medo em engajamento e engajamento em lucro. Se antes boatos se espalhavam nas feiras e praças, hoje se multiplicam em segundos na timeline.
2. Os riscos da juridicização do discurso médico e científico
A possibilidade de intervenção judicial sobre o discurso médico abre um debate delicado e multifacetado. De um lado, existe a necessidade ética e sanitária de proteger a saúde pública, combater a desinformação profissionalizada e responsabilizar agentes que deliberadamente difundem conteúdos falsos com finalidades políticas, ideológicas ou comerciais.
Por outro lado, há o risco de sufocar debates legítimos, investigações científicas emergentes, reflexões éticas e até mesmo a própria liberdade acadêmica, docente e de pesquisa — pilares fundamentais do avanço científico.
Entre os riscos possíveis, destacam-se:
-
Criação de precedente de censura tecnocrática;
-
Politização da ciência, deslocando o confronto metodológico para o ambiente jurídico;
-
Martirização discursiva, que pode fortalecer extremismos;
-
Redução do pensamento crítico a protocolos e normativas;
-
Confusão entre dúvida científica legítima e fraude comunicacional.
A ciência evolui porque é contestada, e não apesar da contestação. Entretanto, contestação sem método se transforma em espetáculo — e espetáculo sem responsabilidade pode resultar em tragédia sanitária.
3. Entre certezas frágeis e dúvidas rentáveis
Vivemos um tempo em que a dúvida se transforma em produto e a convicção se converte em mercadoria emocional. Se antes o conhecimento científico construía verdades provisórias, hoje opiniões pessoais reivindicam o status de verdades absolutas. Nesse contexto, a medicina — pressionada por pacientes, redes sociais, política, mercado e burocracias — caminha sobre um campo minado de interpretações, onde até o silêncio pode ser interpretado como um ato político.
4. Consideração final
Se a ciência é uma ponte construída com tijolos de erros corrigidos, cabe a nós decidir como atravessá-la: com a luz da razão ou com tochas incendiárias. Questionar é necessário; distorcer, não.
A informação é vacina.
A ignorância, quando viral, pode ser letal.
Links para Aprofundamento
-
A influência da antivacina no recrudescimento do sarampo no Brasil — artigo acadêmico que analisa como o movimento antivacinação tem impacto prático na saúde pública brasileira UniEVANGÉLICA
-
Como os movimentos antivacina se tornaram um perigo para o planeta — reportagem da Galileu com histórico, perfil de líderes antivacina e consequências sociais Revista Galileu
-
Por que o movimento antivacina não tem um pingo de sentido — coluna da Veja Saúde sobre como o estudo de Wakefield foi desmascarado e consequência disso Veja Saúde
-
Por que é tão difícil retomar a cobertura vacinal no Brasil — matéria que analisa os desafios atuais de campanhas de vacinação frente ao crescimento de hesitação Guia do Estudante
-
Negócios da desinformação: estudo sobre a arquitetura do Facebook e a disseminação de teorias antivacina — artigo acadêmico que avalia como a própria rede social facilita a formação de comunidades antivacina arXiv
-
Misinformation, Believability, and Vaccine Acceptance Over 40 Countries — pesquisa global sobre desinformação (“infodemia”) e seu impacto na aceitação de vacinas arXiv
-
COVID-19 Vaccine Hesitancy on Social Media: Building a Public Twitter Dataset — estudo de conjuntos de dados no Twitter sobre posts antivacina e desinformação online arXiv
-
Vax-Culture: A Dataset for Studying Vaccine Discourse on Twitter — outro trabalho importante para compreender o discurso antivacina nas redes sociais arXiv
