Mostrando postagens com marcador #Recordações. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador #Recordações. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Soteco dos Anos 70: Taruira a Eremita do Morro


Por Dag Vulpi

Recordar é revisitar os fantasmas e as travessuras da própria infância. Entre medos e brincadeiras, ganhamos coragem, enfrentamos figuras temíveis e descobrimos que, mesmo nas travessuras mais ousadas, existem lições que o tempo transforma em memória. Maria Taruira, com sua rabugice lendária, continua viva em nossas lembranças, lembrando-nos da complexidade do humano e do prazer inesperado das pequenas aventuras.

Na crônica anterior, contei minha saga de ter disputado o último duelo com D’Jango (confira aqui) e, ao fazê-lo, revivi a profusão de personagens estranhos e fascinantes que povoavam aquele recém-criado bairro de Vila Velha, nos anos 70. Hoje, continuo minha arqueologia afetiva e trago à tona mais uma figura: a nada sociável Maria Taruira.

Taruira era uma senhora solitária e esquisitona, moradora de um barraco diminuto, escondido entre o matagal do morro do bairro Soteco. Magra, descabelada, sempre com a roupa suja, alimentava-se e vestia-se do pouco que, de vez em quando, alguém deixava à sua porta, movido pela piedade. Gratidão, contudo, não fazia parte do seu dicionário. As bem-intencionadas senhoras precisavam agir com cautela: deixar os donativos e sumir antes que a infeliz pudesse retribuir com sua arma mais temida — uma lata de urina, projetada com precisão cirúrgica.

Era uma senhora antissocial ao extremo. Quem se aventurasse por perto recebia, primeiro, a saraivada da lata e, logo em seguida, uma enxurrada de palavrões e maldições. Seu talento para desestabilizar o semelhante era incomparável. Não poucas vezes, senhoras regressavam a casa, chorosas, assombradas pelo encontro com a desgraça ambulante que era Taruira.

Parte de sua rabugice era injustificada; outra parte, bem merecida. A molecada da redondeza a atormentava constantemente. A maioria de nós a temia, mas, quando reunidos em pequenos bandos, éramos nós que sentíamos o peso do seu temperamento.

Lembro-me com nitidez das tardes que antecediam nossas expedições. Cada um trazia estilingue e embornal cheio de pelotas, recolhidas junto aos trilhos da estrada férrea de São Torquato — por onde vagões carregados de minério chegavam de Minas Gerais rumo ao porto de Tubarão, inaugurado pela Vale do Rio Doce em 1962, projeto pioneiro de Eliezer Batista.

Nos sábados de nossa infância, minha casa era o quartel-general. Mais de quinze garotos se reuniam ali, e subíamos o morro com a desculpa de “caçar passarinho” — matar rolinhas com estilingue era prática comum e, na época, ainda não nos importávamos com o politicamente correto. Escondíamo-nos nas moitas, calculando ângulos, aguardando o momento certo. Nosso alvo não era a pobre Taruira, mas seu barraco: madeira com telhado e lateral de zinco, que amplificavam o impacto das pelotas a um volume ensurdecedor. Imagine dezenas delas atingindo o metal ao mesmo tempo!

O ataque era meticuloso: disparávamos, nos escondíamos, recarregávamos e disparávamos novamente. A senhora emergia do barraco, olhos arregalados, cabelo em desalinho, vocabulário em chamas, e nós, em êxtase, corríamos morro abaixo, sentindo o sabor agridoce da revanche. Só parávamos quando cada um de nós estava seguro em casa.

Hoje, essas lembranças chegam temperadas de arrependimento — mas, na época, eram prazeres absolutos. Depois das “batalhas”, reuníamo-nos para comentar a audácia de cada um, o prazer secreto de enfrentar a temível Taruira.

Anos depois, a senhora foi hospitalizada, acometida por grave tuberculose. Nunca mais ouvi falar dela. E, ainda assim, ao fechar os olhos, consigo vê-la: pequena, magra, rabugenta, mas viva, impávida e indomável, no coração daquele morro que guardava nossas travessuras.

Sobre o Blog

Bem‑vindo ao Blog Dag Vulpi!

Um espaço democrático e apartidário, onde você encontra literatura, política, cultura, humor, boas histórias e reflexões do cotidiano. Sem depender de visões partidárias — aqui prevalecem ideias, conteúdos e narrativas com profundidade e propósito.

Visite o Blog Dag Vulpi