quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Quando a razão se curva diante da crença

 


Por Dag Vulpi

É natural ao ser humano priorizar as informações que confirmam suas próprias crenças, ainda que elas não sejam verdadeiras. Esse impulso instintivo nos faz colher evidências de forma seletiva, buscar lembranças convenientes e interpretar os fatos de maneira, muitas vezes, enviesada. E quanto mais o assunto desperta emoção ou toca em convicções arraigadas, mais forte é esse efeito — conhecido como viés de confirmação.

Meu propósito inicial ao escrever este texto era simples: esclarecer, de uma vez por todas, a celeuma que ronda as urnas eletrônicas — e as desconfianças de fraude que ressurjem a cada nova eleição, sempre que o resultado não agrada a uma parcela dos eleitores. É curioso perceber que muitos dos que hoje as atacam, outrora as exaltavam, quando o resultado lhes era favorável.

Enquanto escrevo, percebo o paradoxo: mesmo antes de concluir a introdução, sei que alguns leitores já estarão em desacordo com o que afirmo. Essa desarmonia, no entanto, não é culpa da razão, mas das crenças que a antecedem. Ainda assim, proponho-me a seguir, na esperança de que ao menos alguns leiam até o fim — e talvez, com alguma sorte, reflitam.

Lembro-me, então, de duas situações que ilustram bem esse comportamento humano.

A primeira vem das missas de domingo. Na entrada da igreja, aquelas senhorinhas dedicadas distribuem, com todo o esmero, os livretos de cânticos. Imagino-as reunidas dias antes, revisando cada página, certificando-se de que tudo sairá nos conformes. No entanto, quando o celebrante anuncia: “Abram o livro de cânticos na página tal”, ocorre algo curioso. A maioria das pessoas, por conhecer de cor os louvores, abre o livreto — mas nem sequer o lê. Já os que não sabem a letra (e me incluo entre eles), seguem as palavras impressas, mas nem sempre conseguem acompanhar o ritmo da melodia. O resultado é uma espécie de coro dissonante, em que o esforço e o carinho daquelas senhoras acabam, de certo modo, em vão.

A segunda lembrança vem do início da minha carreira profissional, no antigo Banco Nacional, do saudoso José de Magalhães Pinto. Eu tinha apenas 19 anos e trabalhava como escriturário. Jovem e cheio de ideias, comecei a observar algumas deficiências na rotina da agência — falhas pequenas, mas que se repetiam por hábito.

Como ainda não havia me acomodado à rotina e trazia fresca na mente a teoria aprendida na faculdade de Administração, resolvi propor melhorias. Certa manhã, pedi ao gerente de serviços, o senhor Lourival Lourenço, que me ouvisse por alguns minutos. Ele foi receptivo, pediu dois cafezinhos e me convidou a expor minhas ideias. Falou-me com entusiasmo, elogiou minha iniciativa e disse que eu tinha futuro na instituição. Animado, garantiu que, se não todas, pelo menos 90% das propostas seriam adotadas em várias agências do país.

Naquela mesma noite, movido por um entusiasmo juvenil, sentei-me à minha velha Olivetti e redigi seis páginas detalhando cada uma das melhorias. Entreguei-as no dia seguinte, dentro de um envelope endereçado ao gerente. No fim do expediente, ele me chamou e disse, com um ar sereno, que seria melhor se eu fizesse um resumo.

Voltei para casa tarde da noite, depois da faculdade, e resumi as seis páginas em três. Entreguei novamente o material. Algumas horas depois, o senhor Lourival me chamou outra vez. Pediu, com gentileza, que fizesse um novo resumo, “mas apenas daquilo que conversamos no primeiro dia.”

Naquele momento compreendi: não importava o quanto eu me esforçasse para aperfeiçoar o que já estava cristalizado. Minhas ideias, por mais fundamentadas que fossem, não encontrariam eco em quem já havia decidido não mudar.

E é exatamente assim que ocorre quando se discute as urnas eletrônicas. Pouco adianta apresentar fatos, dados e auditorias — para muitos, não há argumento que suplante a crença de que houve fraude. E, curiosamente, essa convicção persiste mesmo quando a realidade insiste em prová-la infundada.

Nosso cérebro é mestre em proteger aquilo em que queremos acreditar. Descartamos o que não combina com nossas certezas e nos agarramos aos sinais que as confirmam. Afinal, entre a verdade incômoda e a ilusão confortável, quase sempre preferimos o consolo da crença ao desconforto da razão.


Nota do autor

Este texto não pretende persuadir, mas convidar à reflexão. Antes de desacreditar uma urna, talvez devamos recontar os votos que damos às nossas próprias convicções.

Por Dag Vulpi

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