Por Gustavo
Bernardo no Colunas
O valoroso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha
enfrenta 40 combates, vencendo 20 e sendo derrotado nos outros 20. Cervantes,
seguindo a lição do seu mestre cético, Erasmo de Rotterdam, torna equivalentes
derrota e vitória, construindo um elaborado sistema de relativização tanto da
vitória quanto da derrota.
No
tempo de Cervantes outro poeta, Régnier, dizia: "o mundo é um carnaval
onde tudo se confunde; quem pensa ganhar é amiúde quem perde". Consciente
disso, o fidalgo se esmera em transformar suas derrotas em vitórias; da mesma
maneira, não comemora suas vitórias, considerando-as tão naturais quanto as
derrotas.
É
emblemático desse processo o bem conhecido episódio dos moinhos de vento. Nesse
episódio, Dom Quixote teria tido sua mais contundente e ridícula derrota. No
entanto, o título do capítulo, no original espanhol, já o apresenta como uma
das principais vitórias do cavaleiro: "Del buen suceso que el valeroso don
Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento,
con otros sucesos dignos de felice recordación".
A
luta com os moinhos de vento é única e ajudou a forjar o mito quixotesco,
porque envolve objetos inanimados que se transformam, para Dom Quixote, em
gigantes cruéis, e depois, novamente, em moinhos de vento. O absurdo não reside
somente em ver gigantes onde há trinta ou mais moinhos de ventos, mas
principalmente em arremeter sozinho contra todos eles, gritando: "Não
fujam, criaturas vis e covardes, que um cavaleiro sozinho é quem os
ataca".
A
pá de um dos moinhos, porém, derruba o ousado cavaleiro, dando o tema para uma
das imagens mais representada pelos artistas ao longo dos séculos, como na
clássica ilustração de Gustave Doré que vemos abaixo.
O
herói ferido, no chão, é admoestado por Sancho, que lhe pergunta como não viu
que atacava apenas moinhos de vento. Dom Quixote manda o amigo se calar, lhe
explicando que as coisas da guerra, mais que as outras, estão sujeitas a
mudança contínua. Na verdade, ele explica para o seu ignorante escudeiro, o
sábio Frestão transformou de repente os gigantes em moinhos de vento,
justamente para lhe roubar a glória da vitória.
"Lutar
com moinhos de vento" tornou-se, desde então, em todas as línguas
ocidentais, o paradigma da luta inútil. Não importa ao protagonista,
entretanto, que ela se apresente inútil, se a entende como necessária para o
seu desejo e, portanto, necessária para o mundo.
Dom
Quixote "lê" os moinhos de vento como se fossem gigantes e, logo
depois, como se fossem moinhos de vento mesmo, para que o leitor faça o mesmo
com a ficção de que fazem parte tanto o personagem quanto, enfim, o próprio
leitor. Lutar contra moinhos de vento é a própria luta da ficção contra a realidade,
como o romance deixa muito claro quando atribui o encantamento dos moinhos ao
"sábio Frestão".
Então,
apesar da aparente derrota, apesar de se encontrar bastante machucado, Dom
Quixote recorre a um oximoro poderoso e opõe, às más artes do sábio Frestão, a
"bondade da sua espada". A sua verdadeira espada é a fantasia, ou, em
termos mais precisos, a ficção.
Luta
contra moinhos de vento quem assume sua fantasia, quem faz ficção e quem lê
ficção, apostando todas as suas fichas na vizinhança do impossível.
É
uma luta inútil, como sabemos. Por isso mesmo, é uma luta que vale toda a pena
do mundo.
Brasil o Pais do faz de Conta.
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