Por
Acredito que uma das chaves para
compreender o Brasil atual é retomar sua história politica e social, percebendo
quais estruturas e práticas do passado ainda permanecem influentes e entram em
choque com práticas modernas e progressistas.
Em outras palavras, lançar
uma luz sobre a fricção social e politica entre aspectos atrasados e avançados
da sociedade em mudança pode ser uma boa via para interpretação do Brasil.
Na esteira de estudar como
processos arcaicos se mantém com formas modernas, José Maurício Domingues, no texto A Dialética da Modernização Conservadora
e a Nova História do Brasil (2004), concentra-se em compreender
teoricamente como se dá o fenômeno da modernização conservadora no Brasil. Seu
ponto de partida é o dialogo com Barrington Moore Jr., para quem a entrada das sociedades na era
moderna poderia ocorrer de três maneiras, pela via democrática, pela via
socialista revolucionária ou pela via autoritária.
Pode-se compreender a
modernização conservadora como, primeiramente, uma recusa da mudança das
relações de trabalho rural, com os grandes proprietários mantendo o controle da
força de trabalho. As elites agrárias forçariam a insipiente burguesia avessa
aos processos de democratização a modernizar-se. Isso acarretaria na
modernização sob a liderança e interesse das elites agrárias, mantendo o
processo e as subjetividades coletivas sob o controle de um bloco autoritário.
No Brasil, os grandes
agentes da modernização foram os grandes proprietários. A modernidade foi
instalada entre nós paulatinamente sem que um dos seus principais aspectos, a
liberdade, ganhasse muito espaço. Em todos os períodos de modernização
nacional, que se deram por um viés conservador, era fundamental para a elite
dirigente controlar os processos de desencaixe que transformariam os planos
individuais e coletivos. Apesar do controle exercido pelas elites dos processos
de modernização, houve consequências inesperadas no tecido social, “uma
dialética virtuosa forçou seu caminho no curso da modernização conservadora”
(DOMINGUES, 2004 p. 189). Os processos de desencaixe desencadearam mudanças
radicais que escaparam do controle do bloco dirigente, ensejando cada vez mais
liberdade em indivíduos e coletividades, mudando por completo as subjetividades
coletivas.
O sucesso do programa de
modernização pelo alto minou suas próprias bases. As duas ditaduras brasileiras
do século XX sucumbiram, pois não conseguiram compreender e nem lidar com esse
paradoxo das consequências, principalmente durante a segunda delas, onde o
processo levou ao esgotamento do modelo que tomou o poder em 1964. A
modernização foi tão longe em suas consequências que se tornou impossível
controlar as subjetividades desencaixadas que se erigiram com o processo, nem
mesmo lidar com as novas demandas que surgiam. Sem embargo, a civilização
brasileira ficou tão complexa que o arranjo modernizante/conservador não
conseguia mais dar conta. O resultado foi a democratização e a Constituição de
1988.
Domingues conclui que,
apesar das desigualdades, o grau de liberdade e pluralidade das formas de vida
no Brasil aumentou exponencialmente. Entretanto, a sociedade brasileira teria
mais dificuldade de criar instituições que engendrassem a solidariedade social,
resultando numa poliarquia distorcida, num individualismo predatório, numa
grande fragmentação social e em baixa consciência de cidadania tanto
individuais quanto coletivas.
A sociedade nacional
congregou em seu âmago, mesmo em períodos de democracia formal, de caracteres
modernos com traços arcaicos, ambos convivem tanto em complementação quanto em
oposição. Nossa revolução burguesa sempre ocorreu tutelada por grupos de cima e
sem a participação do povo. Assim, nossa democracia nunca integrou a totalidade
da população, subsistindo padrões de exclusão ou em processos de extermínio
cultural e étnico que permanecem por longos períodos: pobres, negros, indígenas
e outras minorias. O que explicaria tal cenário seria a tendência de nossa
sociedade a conciliação, um dos traços genéticos da nossa civilização, conforme
relata Paulo Mercadante em A Consciência Conservadora no
Brasil(1980). Isso explicaria porque nossa modernização sempre equilibre os
antagonismos, isto é, sempre adote traços sociais avançados tendo que fazer
concessões a praticas e grupos que representem o passado.
Nosso último período de
democratização, a constituição de 1988 e a Nova República, apesar da grande
participação e engajamento social, foi tutelada por grupos dirigentes da
ditadura militar, resultado numa vitória política do chamado “centrão”, hoje
personificado no PMDB e em outros partidos fisiológicos. Uma das consequências
disso foi a gestação de uma poliarquia incapaz de completar o ciclo de
solidariedade social, de liberdade e de igualdade. Mas isso não impediu que um
maior adensamento das relações e pluralidade de modos de vida surgisse,
acompanhando as mudanças que ocorriam a nível global. A vitória de Lula em
2002, seguida de um período de doze anos prosperidade econômica, amparados numa
politica social democrata e numa grande conciliação entre as classes atestam o
adensamento de nossa civilização que não poderiam mais ser liderada pelo velho
esquema conservador que liderou o Brasil de 1929 a 1945 e 1964 a 1984.
O próprio esgotamento dessa
política conciliatória é atestada por uma série de fatores, conforme escrevi em artigo anterior: pela fragilidade de uma
economia baseada na exportação de commodities; pela publicização de esquemas de
corrupção, investigados pelo Ministério Público e pela Polícia Federal,
instituições que ganharam força pelo próprio governo Lula; uma mudança maior na
subjetividade coletiva, que passou a cobrar mais transparência dos seus
governantes e melhoria nos serviços públicos, como atestado nas Jornadas de
Junho de 2013; o fim melancólico e traumático de mais de uma década de domínio
do PT no executivo federal e a ascensão de um bloco governista basicamente
liberal conservador, tendo como líder o PMDB, partido que nunca saiu
efetivamente do poder, sendo ao longo dos anos o fiel da balança e o fator
conciliatório de um ineficaz presidencialismo de coalização; a judicialização
da politica e o fortalecimento do mandarinato jurídico tornam claros que a
politica da grande conciliação de Lula chegou ao fim, bem como a capacidade
reguladora da Nova República. É um paradoxo das consequências que tais
fenômenos estejam tão intimamente ligados e que ele tenha ocorrido não durante
um governo abertamente conservador, mas num governo liderado por um partido
que, pela sua história, tinha compromisso maior com os setores mais
desfavorecidos da população.
Me aproximo do diagnostico
de proposto por Domingues e
por Florestan Fernandes, este desenvolvido no artigo de Tatiana Gomes Martins: Mudança Social e
desenvolvimento no pensamento de Florestan Fernandes nos anos 50 (2003).
Nesse contexto de extrema desigualdade, heteronomia e fragmentação social,
precisamos democratizar a democracia, nos termos do segundo, através de um
processo de mudança provocada por mecanismos de planejamento democrático, que
corrijam os descompassos históricos da nossa sociedade e levem os benefícios do
desenvolvimento para toda a sociedade, especialmente para setores
historicamente marginalizados; ou nos dizeres do primeiro, temos que criar
instituições que de fato propiciem a solidariedade social, levando os valores
de liberdade, igualdade e fraternidade as últimas consequências. Também
precisamos pensar no valor da pluralidade e da tolerância a diferentes modos de
vida como fundamentais para uma democracia plena que abarque minorias como
negros, LGBT`s, imigrantes, indígenas e quilombolas e outros povos tradicionais.
Uma saída para isso seria a
progressiva instituição de formas democráticas baseadas na democracia direta,
isto é, na participação e na deliberação, cujo foco seriam as demandas do dia a
dia e os problemas do cotidiano, mais próximos das condições dos cidadãos; e
dotando de mais poder as experiências já existentes. Isso resultaria na
fecundação de um espírito democrático, critico e ativo na população aproximando
o poder do povo e devolvendo o poder à política. Assim, as experiências de
participação, se bem dosadas e iniciadas ainda na escola e implementada
intensiva e extensivamente nos bairros, podem render bons frutos a democracia
brasileira, funcionando como uma escola de formação de líderes políticos,
transformando a subjetividade coletiva e aumentando o coeficiente de cidadania.
Trata-se do desenvolvimento
da virtude democrática e dos canais de expressão cidadã, valores que remontam à
Grécia Antiga.
A única forma de conter essa
anomia histórica é um movimento duplo e dialético entre sociedade e estado,
reformando nossas instituições e incorporando uma maior participação direta dos
cidadãos.
*Este artigo foi adaptado de um artigo acadêmico
chamado “Democracia, representação e participação no Brasil: antigos e
novos dilemas de uma sociedade em mudança” escrito para a disciplina
Teorias Sociais do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
UNESP/ARARAQUARA.
otimo artigo
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