Por Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy*, na revista Consultor Jurídico
O problema da
escravidão é um dos mais complexos na obra de Machado de Assis. Pode-se
atribuir à ironia machadiana uma crítica muito bem engendrada a mais sórdida
fórmula de exploração que o Brasil conheceu, que muito nos envergonha, e que
nos choca, sempre, e sempre.
O assunto é um
dos temas do conto Pai contra Mãe, publicado em Relíquias da Casa
Velha, já na edição de 1906. Trata-se da estória de um caçador de
escravos: Cândido Neves, o Candinho da intimidade da família.Cândido Neves, ao
que pode parecer, era branco-branco, no inusitado nome. Candinho era
um homem andado. Passara por muitas empresas, trabalhara no comércio, aprendera
tipografia. Mas Candinho nunca se fixou em ofício nenhum. Ganhava a vida (muito
mal) na maligna tarefa de capturar escravos foragidos. Era a ocupação que
encontrou depois de que quase tudo havia tentado. Segundo Machado:
Cândido Neves
perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores
ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a
estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um
pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e
saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um
escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo.
A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina,
conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e
descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a
gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanha logo,
espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre
saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele
os vencia sem o menor arranhão (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 184).
Candinho
casou-se com Clara, moça casadoura, mas muito operosa, e que costurava para
fora. Por falta de melhor opção, Clara acabou acomodando-se com Candinho. Vida
dura. Dividiam o cômodo alugado com a tia de Clara. Ela se chamava Mônica.
Clara engravidou. A espera da criança coincidiu com um declínio da atividade
nefasta de Cândido. As condições de vida haviam piorado. Rareavam escravos
foragidos:
Um dia os
lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes,
meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio
crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais,
copiou os anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um
competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem
aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se
difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos
aluguéis (MACHADO DE ASSIS, cit., pp. 184-185).
Tudo muito
irônico. E muito triste. Clara auxiliava o marido como podia. E tudo fazia;
“não tinha sequer tempo de emendar a roupa do marido, tanto era a necessidade
de coser para fora” (MACHADO DE ASSIS, cit., loc. cit.). Quanto a Cândido,
prossegue Machado de Assis:
Quando ele
chegava à tarde, via-se lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía
outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se
de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a
cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em
desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem
(MACHADO DE ASSIS, cit., loc.cit.).
A tia que
vivia com o casal sugeriu que a criança que nasceria fosse levada à roda
dos enjeitados,como então se chamava algo que sugere os orfanatos que surgiram
mais tarde. Cândido resistia. Os credores ameaçavam de todos os lados, e de
todos os modos. O senhorio deu a Cândido um prazo fatal para pagamento do
débito: cinco dias. E Cândido, continua Machado de Assis:
(...) saiu por
outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum
empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos
anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito.
Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias,
não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do
proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança. A situação era aguda.
Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir
para a rua (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 187).
Cândido não se
rendeu aos fatos e ainda tentava alternativas, antes de deixar o filho entre
crianças abandonadas. Tentava, e lembrou-se de uma velha nota de escravos
foragidos, que davam conta de uma mulata; oferecia-se uma quantia que
resolveria os problemas de Cândido. Em vão, Cândido buscou informações, e
continuou:
Saiu de manhã
a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela
parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da
Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à
pessoa que tinha os sinais indicados (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 188).
Sem mais
opções e sem recursos, desiludido, e com a criança no colo, rumava para a tal roda
dos enjeitados. Foi quando teve a impressão de ter visto a tal escrava
foragida. Deixou o filho no farmacêutico, a quem pediu que cuidasse da criança,
por um instante. Cândido alcançou a escrava — Arminda — a quem capturou, na
linguagem de Machado de Assis, após ter “tirado o pedaço de corda da
algibeira”, e de quem “pegou dos braços” (cf., MACHADO DE ASSIS, cit., p. 189).
E agora com a
escrava capturada, enquanto o filho estaria com o boticário, Cândido
apressou-se a ter com o dono da presa, na busca da recompensa. A cena é
chocante:
Foi arrastando
a escrava pela Rua do Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o
senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou
com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa
próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim,
arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor
estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 190).
Constatou-se
que a escrava estava grávida. O realismo da narrativa impressiona, deprime:
Machado de Assis descreve o aborto vivido pela pobre escrava, o que ocorria
enquanto Cândido recebia a recompensa:
Arminda caiu
no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem-mil
réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta-mil
réis, enquanto o senhor novamente dizia a escrava que entrasse. No chão, onde
jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O
fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os
gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia
que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que
ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre (MACHADO DE ASSIS,
cit., p. 191).
Cândido ainda
conseguiu apanhar o filho. Pagou as dívidas. Retornou a vida com alguma
esperança. Alguma maldade o marcava; justificou para si o aborto, “nem todas as
crianças vingam, bateu-lhe o coração” (MACHADO DE ASSIS, cit., loc.cit.).
No contexto
desta narrativa atemorizante, de quem testemunhou ou conheceu testemunhas de
tal tempo (Machado de Assis nasceu em 1839 e morreu em 1908), descreve-se os
horrores da escravidão. Não se sabe (e nem se saberá) se o fez como espectador
desinteressado (do que duvido) ou como par de Castro Alves, ainda que sem métrica,
rima, Eugênia Câmara ou furor romântico e revolucionário. É o que sugere o
primeiro parágrafo do conto:
A escravidão
levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições
sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um
deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de
folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos,
por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, uma para respirar,
e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a
tentação de furtar, porque era geralmente dos vinténs do senhor que eles
tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a
sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social
e humana nem sempre se alcança com o grotesco, e alguma vez o cruel. Os
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos
de máscaras (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 179).
Os pormenores
sugerem imagens que capturam aquele odioso tempo. Nesse sentido, e esse o
argumento do ensaio, em Machado de Assis captura-se importante fragmento de
nosso direito, com realismo impressionante, ainda que explicitado em prosa de
ficção:
O ferro ao
pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a
haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada
atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo
que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco
era pegado (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 180).
O bruxo do
Cosme Velho descrevia com muita naturalidade a situação de seu tempo.
Comprova-nos a situação do escravo que fugia, fazendo-o com a percepção de quem
tudo vivenciou; não há testemunho mais ortodoxo, fonte primária mais eloquente:
Há meio
século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da
escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de
apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que
servia de padrinho, e ao mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando,
apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade.
Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes
marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando (MACHADO DE ASSIS, cit.,
loc.cit.)
A captura de
escravos fugidos parece ter sido ofício rentável, que alimentava uma então
sofisticada e autoenganadora ideia de se “pôr ordem à desordem” (MACHADO DE
ASSIS, cit., loc. cit.).
A narrativa
machadiana permite que se vejam com olhos privilegiados peculiaridades e
tristezas de uma época difícil. A riqueza do pormenor é mais enfática do que
imagens remanescentes dos daguerreótipos. Instituições e rotinas que escapam à
narrativa oficial do Direito são captadas, com toda intensidade, também na
literatura de ficção, justificando-se algum argumento que anima a aproximação
entre o direito e as humanidades, no sentido de que a literatura seja instância
privilegiada para compreensão das fórmulas institucionais de nossos
antepassados.
Referência
Machado de Assis, Joaquim Maria. Contos, São Paulo e Rio de Janeiro: Record, 2008.
Machado de Assis, Joaquim Maria. Contos, São Paulo e Rio de Janeiro: Record, 2008.
*Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy é
livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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