sábado, 13 de abril de 2013

Imposturas de Olavo de Carvalho


Por Gustavo Moreira, 
A direita conservadora, no Brasil e em outros países, vem se empenhando no combate aos movimentos negros, cujas reivindicações tenta desqualificar em todas as ocasiões propícias.  Os episódios mais evidentes de discriminação racial muitas vezes são contestados de maneira cínica.  Não é raro que, após a exposição na mídia de fatos desta natureza, certos comentaristas lancem a culpa sobre os ofendidos.  Com mais frequência, após análises superficiais o racismo é "transformado" em mero preconceito econômico, mesmo que as reais condições econômicas dos envolvidos sejam desconhecidas por completo.

       Hoje de manhã encontrei no Youtube o vídeo Mandela, genocídio, racismo, produzido por Olavo de Carvalho e publicado em fins de 2010.  O "decano" do site Mídia sem Máscara, como de hábito, constrói   em seis minutos uma tosca mistura de acusações estapafúrdias, generalizações grosseiras, distorções factuais e impropérios:
               
       O trecho abaixo (ver de 2:04 em diante) me despertou a atenção pelo volume de desonestidade intelectual  agregado em apenas duas frases:

"Dívida por dívida, vejam o seguinte: os muçulmanos, entre os quais havia uma quantidade enorme de negros africanos, eles invadiram a Europa e começaram a fazer escravos lá pelo menos oito séculos antes que os europeus se metessem na África.  E a totalidade do tráfico de escravos dentro da Europa para o mundo muçulmano é imensa, algo por baixo, por baixo entre três e cinco milhões de pessoas."

        Olavo de Carvalho, maliciosamente, superestima o número dos negros islamizados que tomaram parte nos ataques dirigidos pelo Islã à Europa na Alta Idade Média.  Pela leitura de Albert Hourani, notamos que a conquista da Península Ibérica pelos muçulmanos coube essencialmente a árabes e berberes norte-africanos.  O autor informa que com a substituição da dinastia dos Omíadas pela dos Abássidas, ainda no século VIII, houve um reforço na ocupação da região por elementos originários da Síria. 

Hourani 60

 O povoamento muçulmano da península a partir da África cresceu nos séculos seguintes, mas continuou fortemente associado às migrações dos berberes, mediterrâneos de ancestralidade caucasiana em sua maior parte. Não há qualquer indício de que os negros formassem mais do que uma pequena minoria, e menos ainda de que desfrutassem obrigatoriamente de posições sociais de prestígio.  

Hourani 61

Pelo contrário: Alberto da Costa e Silva relata que os negros, chegando em maior quantidade a  Al-Andalus a partir da instauração do poder dos califas almorávidas (século XI), muitas vezes o faziam na qualidade de escravos.  Fica claro que atribuir aos povos subsaarianos um protagonismo na escravização de cristãos semelhante ao desempenhado pelos europeus do século XV em diante na África é uma impostura absurda.

Costa e Silva 133





A tentativa de culpabilização extra do Islã também é falha.  Os processos de escravização verificados na bacia do Mediterrâneo foram uma via de mão dupla: se milhares de prisioneiros visigóticos, hispano-romanos e de outras etnias do sul da Europa caíram no cativeiro (o que não há como negar), os muçulmanos vencidos nas guerras ibéricas tinham um destino semelhante.  Isto fez com que as áreas que constituem a atual Espanha, nas quais a escravidão era bastante difundida, conhecessem uma organização econômica bem distinta da que prevalecia na França, na Alemanha e nos Países Baixos, por exemplo. 


Anderson 164


O mesmo se deu em Portugal, reino em que a servidão feudal se atrofiou em consequência da disseminação da mão de obra escrava.  A conquista do Alentejo e do Algarve, províncias do sul, forneceu aos proprietários rurais numerosos cativos islâmicos.  A expressão "trabalhar como um mouro" constitui um reflexo daquele tempo.



Anderson 167

Sobre a escravidão ibérica, devo também ressaltar que o historiador português José Hermano Saraiva,  insuspeito de qualquer inclinação esquerdista ou terceiro-mundista, afirma que os muçulmanos introduziram em seu país melhoramentos agrícolas que reduziram a necessidade de trabalho compulsório. 

Saraiva 18


 Portugueses e espanhóis viviam em contato com muçulmanos e eram influenciados por estes, me diria em triunfo um conservador mais afoito.  Este argumento cai com igual facilidade.  A narrativa dos cronistas árabes a respeito da tomada de Jerusalém, no início das Cruzadas, demonstra que os defensores da cidade sabiam que, após a derrota, seriam exterminados ou escravizados  pelos franj (francos), ingleses, franceses e alemães.    

Maalouf 12

Com a continuidade das Cruzadas, os venezianos assimilaram o cultivo da cana, produzindo açúcar na Ásia Ocidental e mais tarde nas ilhas mediterrâneas de Chipre, Creta, Malta e Sicília.  Esta atividade não dispensou o emprego de outros escravos, talvez majoritariamente muçulmanos, e entre os quais fatalmente haveria alguns negros. 



Costa e Silva 136

Sobre a atuação dos venezianos como mercadores ou donos de escravos, temos razões para suspeitar de que nada deveram em atrocidades aos senhores mais cruéis da América Portuguesa.  Durante a Baixa Idade Média, os habitantes da Bósnia, para escapar ao controle de Veneza, se lançaram nos braços do Império Otomano, tornando-se muçulmanos.      

Anderson 280/281


Quanto ao tráfico em direção às Américas, as estatísticas provam que os negros escravizados provinham maciçamente de regiões alheias ao domínio islâmico, como a África Centro-Ocidental e o Golfo da Guiné.  Alegar que os descendentes de súditos do rei do Congo trazidos para o Brasil não podem declarar sua indignação porque marroquinos, egípcios e sudaneses de pele escura possuíram escravos europeus na Idade Média faz tanto sentido quanto exigir desculpas do atual governo austríaco pela ação dos negreiros britânicos. 

Lovejoy 93

Isto diz respeito, em profundidade, ao Brasil. Os dados acerca dos desembarques de escravos no Rio de Janeiro, porto mais ativo do continente neste negócio, não deixam dúvidas de que no período entre 1790 e 1830, marcado pela revitalização da agricultura comercial e pela expansão dos cafezais, os trabalhadores das plantações eram importados, em sua maioria esmagadora, de Luanda, Cabinda e Benguela, localizadas na atual Angola, e secundariamente de Moçambique. 


Florentino 234

Além de inconsistente, a discussão levantada por Olavo de Carvalho é empobrecida.  Ele tenta incutir no público a ideia de que muitos negros pretendem se vingar de todos os brancos, da forma mais ampla ao seu alcance, ou talvez exigir do Estado indenizações pecuniárias que evidentemente jamais poderão ser pagas.  Desvia o foco da questão que realmente tem importância e não deve ser protelada: como construir uma sociedade realmente igualitária, inclusive no aspecto étnico, nos dias de hoje.  O projeto liberal, centrado na mera igualdade jurídica, vem fracassando há quase duzentos anos.    

Referências:

ANDERSON, Perry.  Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991.
FLORENTINO, Manolo.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 
HOURANI, Albert.  Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LOVEJOY, Paul.  A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MAALOUF, Amin.  As Cruzadas vistas pelos árabes.  São Paulo: Brasiliense, 1988.
SARAIVA, José Hermano.  Breve História de Portugal.  Lisboa: Bertrand Editora, 1989.  
SILVA, Alberto da Costa e.  A manilha e o libambo.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

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