Por Gustavo Moreira,
do Blog: História & Política
A direita conservadora,
no Brasil e em outros países, vem se empenhando no combate aos movimentos
negros, cujas reivindicações tenta desqualificar em todas as ocasiões
propícias. Os episódios mais evidentes de discriminação racial muitas
vezes são contestados de maneira cínica. Não é raro que, após a exposição
na mídia de fatos desta natureza, certos comentaristas lancem a culpa sobre os
ofendidos. Com mais frequência, após análises superficiais o racismo é
"transformado" em mero preconceito econômico, mesmo que as reais condições
econômicas dos envolvidos sejam desconhecidas por completo.
Hoje de
manhã encontrei no Youtube o vídeo Mandela, genocídio, racismo,
produzido por Olavo de Carvalho e publicado em fins de 2010. O
"decano" do site Mídia sem Máscara, como de hábito, constrói
em seis minutos uma tosca mistura de acusações estapafúrdias, generalizações
grosseiras, distorções factuais e impropérios:
O trecho
abaixo (ver de 2:04 em diante) me despertou a atenção pelo volume de
desonestidade intelectual agregado em apenas duas frases:
"Dívida por dívida, vejam o
seguinte: os muçulmanos, entre os quais havia uma quantidade enorme de negros
africanos, eles invadiram a Europa e começaram a fazer escravos lá pelo menos
oito séculos antes que os europeus se metessem na África. E a totalidade
do tráfico de escravos dentro da Europa para o mundo muçulmano é imensa, algo
por baixo, por baixo entre três e cinco milhões de pessoas."
Olavo de Carvalho, maliciosamente, superestima o número dos negros
islamizados que tomaram parte nos ataques dirigidos pelo Islã à Europa na Alta
Idade Média. Pela leitura de Albert Hourani, notamos que a conquista da
Península Ibérica pelos muçulmanos coube essencialmente a árabes e berberes
norte-africanos. O autor informa que com a substituição da dinastia dos
Omíadas pela dos Abássidas, ainda no século VIII, houve um reforço na ocupação
da região por elementos originários da Síria.
Hourani 60
Hourani 61
Pelo contrário: Alberto da Costa e Silva
relata que os negros, chegando em maior quantidade a Al-Andalus a partir
da instauração do poder dos califas almorávidas (século XI), muitas vezes o
faziam na qualidade de escravos. Fica claro que atribuir aos povos
subsaarianos um protagonismo na escravização de cristãos semelhante ao
desempenhado pelos europeus do século XV em diante na África é uma impostura
absurda.
A tentativa de culpabilização extra do Islã
também é falha. Os processos de escravização verificados na bacia do
Mediterrâneo foram uma via de mão dupla: se milhares de prisioneiros
visigóticos, hispano-romanos e de outras etnias do sul da Europa caíram no
cativeiro (o que não há como negar), os muçulmanos vencidos nas guerras
ibéricas tinham um destino semelhante. Isto fez com que as áreas que
constituem a atual Espanha, nas quais a escravidão era bastante difundida,
conhecessem uma organização econômica bem distinta da que prevalecia na França,
na Alemanha e nos Países Baixos, por exemplo.
Anderson 164
O mesmo se deu em Portugal, reino em que a
servidão feudal se atrofiou em consequência da disseminação da mão de obra
escrava. A conquista do Alentejo e do Algarve, províncias do sul,
forneceu aos proprietários rurais numerosos cativos islâmicos. A
expressão "trabalhar como um mouro" constitui um reflexo daquele
tempo.
Anderson 167
Sobre a escravidão ibérica, devo também
ressaltar que o historiador português José Hermano Saraiva, insuspeito de
qualquer inclinação esquerdista ou terceiro-mundista, afirma que os muçulmanos
introduziram em seu país melhoramentos agrícolas que reduziram a necessidade de
trabalho compulsório.
Saraiva 18
Portugueses e espanhóis viviam em
contato com muçulmanos e eram influenciados por estes, me diria em triunfo um
conservador mais afoito. Este argumento cai com igual facilidade. A
narrativa dos cronistas árabes a respeito da tomada de Jerusalém, no início das
Cruzadas, demonstra que os defensores da cidade sabiam que, após a derrota,
seriam exterminados ou escravizados pelos franj (francos),
ingleses, franceses e alemães.
Maalouf 12
Com a continuidade das Cruzadas, os
venezianos assimilaram o cultivo da cana, produzindo açúcar na Ásia Ocidental e
mais tarde nas ilhas mediterrâneas de Chipre, Creta, Malta e Sicília.
Esta atividade não dispensou o emprego de outros escravos, talvez majoritariamente
muçulmanos, e entre os quais fatalmente haveria alguns negros.
Costa e Silva 136
Sobre
a atuação dos venezianos como mercadores ou donos de escravos, temos razões
para suspeitar de que nada deveram em atrocidades aos senhores mais cruéis da
América Portuguesa. Durante a Baixa Idade Média, os habitantes da Bósnia,
para escapar ao controle de Veneza, se lançaram nos braços do Império Otomano,
tornando-se muçulmanos.
Quanto ao tráfico em direção às Américas, as
estatísticas provam que os negros escravizados provinham maciçamente de regiões
alheias ao domínio islâmico, como a África Centro-Ocidental e o Golfo da Guiné.
Alegar que os descendentes de súditos do rei do Congo trazidos para o
Brasil não podem declarar sua indignação porque marroquinos, egípcios e
sudaneses de pele escura possuíram escravos europeus na Idade Média faz tanto
sentido quanto exigir desculpas do atual governo austríaco pela ação dos
negreiros britânicos.
Isto diz respeito, em profundidade, ao
Brasil. Os dados acerca dos desembarques de escravos no Rio de Janeiro, porto
mais ativo do continente neste negócio, não deixam dúvidas de que no período
entre 1790 e 1830, marcado pela revitalização da agricultura comercial e pela
expansão dos cafezais, os trabalhadores das plantações eram importados, em sua
maioria esmagadora, de Luanda, Cabinda e Benguela, localizadas na atual Angola,
e secundariamente de Moçambique.
Florentino 234
Além de inconsistente, a discussão levantada
por Olavo de Carvalho é empobrecida. Ele tenta incutir no público a ideia
de que muitos negros pretendem se vingar de todos os brancos, da forma mais
ampla ao seu alcance, ou talvez exigir do Estado indenizações pecuniárias que
evidentemente jamais poderão ser pagas. Desvia o foco da questão que
realmente tem importância e não deve ser protelada: como construir uma
sociedade realmente igualitária, inclusive no aspecto étnico, nos dias de hoje.
O projeto liberal, centrado na mera igualdade jurídica, vem fracassando
há quase duzentos anos.
Referências:
ANDERSON, Perry. Passagens da
Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991.
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras:
uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos
árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LOVEJOY, Paul. A escravidão na África:
uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos
árabes. São Paulo: Brasiliense, 1988.
SARAIVA, José Hermano. Breve História
de Portugal. Lisboa: Bertrand Editora, 1989.
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e
o libambo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
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