quinta-feira, 7 de março de 2013

Violência não se resolve com mudança na legislação


Por Mário de Magalhães Papaterra Limongi*
A tragédia de Santa Maria traz à tona, mais uma vez, a questão da legislação penal brasileira. Tomados pela comoção, comunicadores praticamente exigem a prisão dos responsáveis e relembram que ninguém foi preso em outros casos que também comoveram a nação.

É natural que a morte de tantos jovens cause um desejo de punição, ainda que qualquer punição não seja proporcional à dor sentida pelos amigos e familiares dos rapazes e moças que perderam a vida quando pretendiam apenas se divertir.

Por mais doloroso que isto seja, a verdade é que, dentro do atual sistema, é pouquíssimo provável que, depois de longo processo, ocorra a prisão de qualquer um dos responsáveis pelo acontecido.

Ainda que se possa sustentar que se trata de dolo eventual, o fato é que, em hipóteses semelhantes (Bateau Mouche, shopping de Osasco, etc) as decisões judiciais foram pela ocorrência de crime culposo.
Aliás, as análises e opiniões sobre o sistema punitivo brasileiro vão de um extremo a outro.

Casos como o de Santa Maria fazem com que se diga que a nossa legislação, por ser excessivamente branda, incentiva a criminalidade, e pessoas perigosíssimas, que deveriam estar confinadas, estão em liberdade.

Há quem, no entanto, em posição diametralmente oposta, sustente que a nossa legislação penal se equivoca ao dar importância exagerada à pena de prisão que deveria ser restringida a pessoas efetivamente perigosas. De acordo com os que assim pensam, os nossos presídios estão repletos de pessoas que não ostentam periculosidade a quem seria mais eficaz a aplicação de penas alternativas, tais como a prestação de serviços à comunidade.

Penso que o grande equívoco é se imaginar que a legislação, que sempre pode ser melhorada, acabará com a violência e a sensação de impunidade.

De outro lado, importante desmentir certas afirmações que, tantas vezes repetidas, parecem verdades absolutas.

Assim é que não é verdade que pequenos delinquentes estejam cumprindo pena. Um ou outro caso excepcional, sempre apontado pela imprensa, pode ocorrer, mas, nem de longe, é a regra.

Como a nação tomou conhecimento no julgamento do mensalão, para que um réu primário cumpra pena em regime fechado, desde o início, é preciso que seja condenado à pena privativa de liberdade igual ou superior a oito anos o que, convenhamos, não é pouco. O não reincidente condenado a pena superior a quatro e que não exceda a oito pode cumpri-la em regime semiaberto e o condenado a pena igual ou inferior a quatro anos cumpre a pena, desde o início, em regime aberto.

Dando um exemplo que pode ser entendido pelo leigo, no caso de homicídio, o réu primário só cumprirá pena, desde o início, em regime fechado se for condenado pela prática de crime qualificado (as circunstâncias que qualificam o crime — motivação fútil ou torpe, emprego de meio cruel, etc.— são especificadas no Código Penal). Se o homicídio for simples, ou seja, sem nenhuma circunstância que o qualifique, a pena mínima prevista é de seis anos e o regime de cumprimento de pena será o semiaberto. Se, no entanto, for reconhecida uma circunstância que diminua a pena, tal como o fato de o réu ter agido sob o domínio de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima, o réu poderá receber a pena de quatro anos de reclusão e cumpri-la em regime aberto. Portanto, é perfeitamente possível que alguém condenado à pena de quatro anos de reclusão por homicídio doloso jamais se recolha à prisão. Ora, se é possível que alguém condenado por homicídio doloso não cumpra a pena no sistema penitenciário, com mais razão em caso de crime culposo.

Assim, para que um homicida primário seja recolhido a regime fechado e passe a conviver com presos reincidentes e perigosos, é preciso que seja definitivamente condenado pela prática de homicídio qualificado. Ainda que se diga que o homicida possa ser um criminoso eventual, ninguém há de sustentar que não se trata de crime grave e que seu autor não deva ser minimamente punido.

Portanto, não é verdade que réus primários, que praticam crimes sem gravidade, estejam recolhidos ao sistema penitenciário ( a exceção fica por conta dos crimes de roubo, inegavelmente graves, em que os juízes são mais rigorosos na fixação do regime de cumprimento de pena até mesmo para o réu primário). A ideia, sempre divulgada, de que o réu pobre que furtou comida para os filhos vai para a cadeia simplesmente só ocorre em ficção. Para que um furtador cumpra pena privativa de liberdade, é preciso que seja reincidente, ou seja, é necessário que faça do furto seu meio de vida.

Como se vê, parece não proceder o argumento de que a legislação seja dura em excesso e que privilegie a pena privativa de liberdade.
Mesmo assim, não há como negar a superpopulação carcerária, o que indica que o sistema não é tão frágil como alguns imaginam.
O Estado não consegue acompanhar o aumento da população carcerária e as construções de presídio não acompanham a demanda.
Quem já teve oportunidade de visitar nossos presídios sabe que as condições dadas aos presos são péssimas, pelo que não é razoável se dizer que o criminoso não teme ser preso. Em verdade, quem delinque imagina que não será descoberto e punido. O que incentiva a criminalidade não é a suposta fragilidade da pena, mas a ideia de não receber qualquer punição.

Já estive dos dois lados.
Como promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de São Paulo por nove anos, várias vezes me revoltei com a possibilidade de um homicida cumprir pena em regime aberto.

Como Secretário Adjunto de Segurança de 1999 a 2001 convivi com a superpopulação carcerária nos distritos policiais e considerava a possibilidade de que muitos pudessem estar em liberdade.

Na verdade, o problema é muito mais complexo e não se resolve simplesmente com a mudança da legislação penal.

Tragédias como a de Santa Maria só serão evitadas com um conjunto de medidas e com mudança geral de mentalidade.

Da mesma forma, a opção por uma legislação penal mais ou menos dura passa por uma discussão com toda a sociedade desde que não se tenha a ilusão de que a simples mudança de legislação seja a solução para acabar com a violência.

Mário de Magalhães Papaterra Limongi* é procurador de Justiça.
Revista Consultor Jurídico

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