Por Pierpaolo Cruz Bottini*
Na última coluna abordamos a questão da existência ou
não do dever de informar atos suspeitos de lavagem de dinheiro por
parte do advogado em relação ao seu cliente. Ficou pendente a reflexão sobre
outro problema da lei de Lavagem de Dinheiro relacionado à atividade
advocatícia: o recebimento de honorários e os atos de branqueamento de capital.
O núcleo do problema: pode-se caracterizar o advogado
que recebe dinheiro de origem infracional (ou suspeito de ter tal
origem) como pagamento dehonorários pelos serviços prestados como partícipe ou autor do
crime delavagem de dinheiro?
Rodrigo Rios trata do problema em obra específica
sobre o tema e traz importantes julgamentos de outros países para reflexão[1].
Dentre eles, a conhecida decisão judicial na Alemanha, pela qual o Tribunal
Superior de Hamburgo (Oberlandesgericht) entendeu não haverlavagem de dinheiro no
caso de advogado acusado de receber honorários oriundos do tráfico de drogas
para defender uma cliente. O Tribunal baseou sua decisão no direito fundamental
de livre escolha do defensor por parte do réu, e o adequado exercício da defesa
por parte do profissional (decisão do Oberlandesgericht de Hamburgo de
6 de janeiro de 2000). No entanto, em outro caso similar, o Tribunal
Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfg), em 30 de
março de 2004, caracterizou como lavagem de dinheiro o recebimento de
honorários por advogados que conheciam de forma segura (dolo direto) sua origem
delitiva.
Embora as decisões tenham por base ordenamento
jurídico distinto do nosso, os princípios discutidos são perfeitamente
reconhecíveis e adequados ao sistema jurídico pátrio. Sob essa ótica, parece
correta a primeira solução da jurisprudência alemã, que assegura o recebimento
dos honorários — mesmo que maculados — e afasta sua ilicitude penal diante da
importância do direito de defesa e delivre escolha do advogado.
Se observarmos com cuidado a lei brasileira de
lavagem de dinheiro (9.613/98), o recebimento de honorários maculados
não é conduta típica. Não se trata de ocultação ou dissimulação (artigo
1º,caput). O dinheiro recebido por profissional liberal, em
contraprestação a serviços realmente efetuados, com a regular emissão de nota
fiscal, não contribui para mascarar o bem, uma vez que seu destino é
conhecido e registrado. Não há ato objetivo de lavagem do
dinheiro. A transparência/formalidade do pagamento afasta a incidência do
dispositivo[2].
Também não existem as demais formas típicas (parágros
1º e 2º) porque ausente a intenção de ocultar ou dissimular no
recebimento do pagamento, elemento subjetivo inerente aos tipos penais em
comento[3]. O advogado almeja apenas a remuneração por seus serviços e o fato
de receber formalmente os valores aponta para a inexistência de qualquer vontade de
contribuir para o seu encobrimento[4].
Importante levar em consideração que o escopo da lei
de lavagem de dinheiro é garantir arastreabilidade do capital para que as
autoridades públicas possam conhecer o caminho entre a infração e o destino dos
bens. Não se impõe ao advogado o dever de investigar a origem do dinheiro ou os
atos que justificaram sua aquisição. Exige-se apenas que seu recebimento
seja registrado eanotado, para que os responsáveis pela
investigação — dentre os quais não está o profissional liberal — tenham à sua
disposição elementos para construir a cadeia de distribuição de eventuais
recursos ilícitos.
Diferente a situação do advogado que recebe os
valores a titulo de honorários e devolve parte deles como suposto
empréstimo ou pagamento de serviços inexistentes ao cliente, contribuindo
para seu mascaramento. Nesse caso a conduta do profissional consolida o ato
de reciclagem, caracterizando-se tipicamente a lavagem de dinheiro.
Fica claro, portanto, que o advogado não é imune à
legislação de lavagem de dinheiro, e o fato do ato ser praticado por um
causídico, ou no interior de um escritório não o protege da incidência da norma
penal. Por outro lado, inadequado transformar o profissional em agente de
investigação de seus próprios honorários, impondo-lhe um ônus inexistente em
outras searas profissionais. Deixemos à polícia os encargos inquiridores
e, ao advogado, o espaço lícito para seu livre exercício profissional.
[1] Para um quadro completo da questão, ver
Ríos, Advocacia e lavagem de dinheiro, p. 245-299.
[2] Nessa linha, Cabana, Los autores del
delito de blanqueo, p. 167.
[3] Sobre o tema, ver BOTTINI, Pierpaolo Cruz e
BADARÓ, Gustavo, Lavagem de dinheiro, p.130.
[4] Nesse sentido, Pérez Manzano, Neutralidad
delictiva y blanqueo de capitales, p. 177; Ríos,Advocacia e lavagem de dinheiro,
p. 145; Barros, Lavagem de dinheiro, p. 190.
Pierpaolo Cruz Bottini* é
advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário,
ambos do Ministério da Justiça.
Via Revista Consultor Jurídico
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