Por Carlos Costa*
“O século XIX chamava de terroristas os niilistas, aqueles que não se importavam com nada. Eles não têm medo de morrer: seu slogan é o mesmo que os fascistas entoavam durante a Guerra Civil espanhola: ‘Viva la Muerte’. Aquela noite, antes de dormir [refere-se ao 11 de setembro de 2001], abri Chateaubriand e li sua confissão de que a Revolução [francesa, de 1789] o teria arrastado em seu fluxo se ele não tivesse visto a primeira cabeça carregada na ponta de uma estaca. E então ele concluiu: ‘O assassinato nunca será aos meus olhos um objeto de admiração e um argumento pela liberdade; não conheço nada mais servil, mais desprezível, mais covarde, mais tacanho que um terrorista’.”
Essa frase de Alberto Manguel, comentando o clássico Memórias de Além-Túmulo, de François René de Chateaubriand, em seu Os Livros e os Dias (pág. 68), estabeleceu uma conexão com o mote por trás da discussão que se quis estabelecer nos estertores do julgamento da Ação Penal 470. Não houve grandes manifestações durante o processo, pois como se sabe a esperança é a última que morre. E havia a aposta de que a Corte Suprema, formada majoritariamente por indicação dos últimos dois governos, seguiria a receita da pizza. Mas como o dito ficou pelo não dito, e o resultado não foi a pizza esperada, começaram as tentativas de alterar o que foi decidido, a não aceitar o resultado desfavorável, como na história do garoto que é o dono da bola e seu time só pode ganhar. Vou comentar apenas o debate ocorrido no dia 17 de dezembro na sede do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo, a que assisti pela intenet.
Por que a citação inicial do trecho escrito por Alberto Manguel? Basta trocar a palavra “assassinato” usada por Chateaubriand por “roubo” (O assassinato/roubo nunca será aos meus olhos um objeto de...
admiração e um argumento pela liberdade) e temos uma reflexão sobre o mensalão. Os participantes do debate de 17 de dezembro no sindicato insistiam em qualificar o substantivo mensalão com o adjetivo “suposto”, seguramente porque as retiradas de volumes de dinheiro não vinham caracterizadas num tradicional contra-cheque ou holerite. A cena do assessor do deputado José Guimarães (PT-CE), irmão de José Genoíno, flagrado no aeroporto de Congonhas com uma pasta e um volume extra de dólares na cueca, permanece no imaginário nacional como um momento antologicamente ridículo desses tempos de botim efetuado à margem da lei.
Pode parecer contrarrevolucionário o princípio de que os fins não justificam os meios. Mas ele continua sendo o fundamento civilizatório por trás de todas as conquistas da humanidade. Caso contrário, estaríamos ainda admitindo a prática espartana de eliminar as crianças nascidas aleijadas ou com defeitos, ao contrário do respeito e atenção com os portadores de deficiências físicas, que é o padrão das sociedades civilizadas. Como diz (no documentário comentado nesta coluna em 5 de dezembro, clique aqui para ler) o arquiteto Nilton Gurman, tio do jovem Vitor, atropelado na madrugada de 22 de julho de 2011 na Rua Natingui, na Vila Madalena, em São Paulo, a advogada que provocou o atropelamento e a morte de seu sobrinho sem dúvida era uma boa moça, uma boa filha. Teria talento e um bom currículo. Mas ao dirigir embriagada e em alta velocidade um carro com que não tinha familiaridade, acabou a história da menina boa. E a motorista que dirigiu alcoolizada tornou-se uma criminosa (mesmo sendo boa filha) e deve pagar por isso.
Assim, o que se ouviu no debate ocorrido naquela segunda-feira de dezembro ignorou o tempo todo esse princípio civilizatório. Tomemos como exemplo o companheiro José Genoíno. Como a motorista que provocou a morte de Vitor Gurman, Genoíno tem uma trajetória ilibada, lutou contra a ditadura, arriscou sua vida em prol das garantias democráticas que nos eram negadas. Mora, segundo um dos partipantes da mesa, numa casa simples que teria chocado um repórter alemão que viera entrevistá-lo (“Um dirigente de seu porte mora numa casa tão simples?”, teria comentado o estrangeiro). Mas como a motorista que atropelou e matou o jovem Vitor, Genoíno também atropelou o princípio civilizador de que os fins não justificam os meios. Como tantos companheiros, envolveu-se no esquema de roubo e de suborno. Deve pagar por isso.
É fato que no caso do julgamento da AP 470 houve excessos e houve escassez, como ressaltava o antigo anúncio de um regulador para uso feminino. Os excessos podem ser creditados à pressão dos meios de comunicação que em muitos casos se utilizaram do julgamento para garantir os altos índices de audiência. E esses índices se tornaram quase o único objetivo da existência da mídia. Mas houve, também, um interesse do cidadão em que mais uma história em que os fins justificam os meios não acabasse dando em nada. Concordo com o ator José Maia, presente no debate, que o televisionamento de julgamentos do STF não é benéfico, ao transformar em espetáculo o que deveria ser uma discussão mais consensada a portas fechadas, pois não é a presença dos meios de comunicação que garante o pleno direito de defesa.
Mas não posso concordar com frases de efeito que abundaram no debate. Não se pode comparar o processo da AP 470 com o impeachment do presidente do Paraguai, decidido em menos de dois dias. O mensalão se arrastou por um tempo além do razoável, sobretudo nas mãos do revisor — magistrado que se gaba da celeridade de seu trabalho, apresentando seu gabinete como modelo pelos padrões ISSO 9001.
Voltemos, no entanto, para o debate realizado no Sindicato dos Engenheiros, sobretudo à parte das perguntas finais. Há tempos não assistia a uma sequência de clichês e palavras de ordem como as que aconteceram no encontro. Não houve perguntas ou ponderações, mas inflamados discursos de três minutos, os inscritos jogando para a plateia e terminando com palavras de luta (“À vitória companheiros!”; “Os ministros do STF rasgaram a Constituição!”; “Não houve isenção e nem o legítimo direito de defesa”).
Claro que caberá aos condenados todo o direito de recursos para fazer valer seus direitos, resta saber a quem. Afinal, o STF é nossa corte de última apelação. Nota-se a preocupação em buscar pareceres de juristas estrangeiros e a revista CartaCapital entrevistou um jurista do interior da Argentina dando sua douta contribuição para o debate. Outros falam em apelar para cortes internacionais. A questão é simples: houve ou não houve uso da máquina e do dinheiro público para garantir aprovação de leis e a “base parlamentar aliada”? Os dólares escapando da cueca do assessor do irmão do Genoíno não foram ilusão de ótica.
E aí passamos à escassez. Houve falta de tranquilidade e do senso de oportunidade. Há ainda a permear nosso pensamento jurídico o princípio de que um julgamento existe para condenar. E isso é a constatação de um leigo. O julgamento existe para condenar ou para absolver, para pesar com prudência e moderação, não se trata de um acerto de contas, como pode ter parecido em algum momento do longo processo da AP 470. Já comentei aqui que “o uso do cachimbo entorta a boca” (e ao escrever isso lembro os lábios do trompetista americano Louis Armstrong) e isso pesou em alguns momentos do longo julgamento.
Mas faltou mais, no meu modesto parecer, faltou decoro. Penso, como leigo, que um dos ministros deveria ter se isentado por sua notória ligação com alguns dos réus da AP 470. Mas também a questão do decoro está em desuso nesses tempos em que o fim justifica os meios — e o decoro foge do terreno da lógica para entrar no dos princípios.
Discute-se agora o futuro de José Genoino, suplente que deveria assumir no início de janeiro — o que de fato aconteceu. Na mesma linha de princípio e não da lógica, os condenados na AP 470 deveriam ter o que nos velhos tempos se dizia “vergonha na cara” e renunciar. Em países de cultura mais tradicional, como o Japão, dirigentes pegos em caso de corrupção costumam suicidar-se. Exageros a parte, o companheiro João Paulo diz ter namorado a ideia. Se o STF o considera culpado, Genoíno teria mostrado a grandeza que alardeiam os seus pares com um simples ato de renúncia.
Claro que seria pedir demais. E o fato de o STF ingerir no que deveria ser uma decisão do Parlamento (a cassação dos condenados) mostra que vergonha na cara é produto em escassez no mercado. Se de modo próprio os condenados tivessem tomado a iniciativa, teríamos o alívio de não assistir a Câmara dos Deputados ratificar que os fins justificam os meios.
Termino com um trecho da página seguinte do citado livro de Manguel: “O Ocidente reconhece o outro apenas para desprezá-lo melhor, e depois fica atônito com a resposta que recebe [refere-se ao 11 de setembro de 2001]. [...] Mas os velhos truísmos ainda valem: que violência gera violência; que todo poder é abusivo; que o fanatismo de qualquer tipo é inimigo da razão; que propaganda é propaganda mesmo quando tem a pretensão de nos mobilizar contra a iniquidade; que a guerra nunca é gloriosa, exceto aos olhos dos vencedores, que acreditam que Deus está do lado dos grandes guerreiros. Talvez seja por isso que lemos, e que em momentos de trevas voltamos aos livros: para encontrar palavras para o que já sabemos.”
Carlos Costa* é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Revista Consultor Jurídico
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