No Pará, prefeito é investigado por
entregar casas a pessoas fora da faixa dos beneficiados
REDENÇÃO (PA) E RIO - “Não queria
luxo, não. Só sair do aluguel. Aluguel vence muito ligeiro”, diz Maria do
Socorro Ribeiro, de 31 anos, inscrita no programa Minha Casa Minha Vida, no
município de Redenção, no Pará, e não contemplada com uma das 500 casas
entregues em 29 de março deste ano. Socorro vive com os filhos de 9 e 14 anos e
o marido, servente de pedreiro que luta contra um glaucoma que já cegou um
olho. Com problema crônico nos rins, ela deve mais de R$ 500 de aluguel e só
não foi despejada porque a proprietária do imóvel tem “pena de botar para
fora”. O Bolsa Família de R$ 134 por mês é o que sustenta os quatro. E a pouca
comida chega à mesa graças às cinco galinhas que cria.
— A casa ia mudar tudo. Não é que a gente ia ter mais dinheiro. Ia ter sossego — diz.
Enquanto Socorro sonha com a casa
própria, o primeiro empreendimento do Minha Casa Minha Vida em Redenção é alvo
de investigação da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF).
A suspeita é que as casas foram usadas como moeda eleitoral pelo prefeito
Wagner Fontes (PTB), que tentou se reeleger, mas perdeu no primeiro turno para
Vanderlei Coimbra Noleto (PRP).
O Minha Casa Minha Vida, para
famílias que recebem de 0 a 3 salários mínimos, é um dos programas voltados
para o público-alvo do Brasil Sem Miséria, plano lançado em 2011 como
carro-chefe do governo Dilma Rousseff e que reúne ações como o Bolsa Família, o
Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil. Em todo o Brasil, até 15 de outubro, mais de 300 mil unidades foram
entregues nessa faixa de renda. Mas o plano — criado para tirar 16,2 milhões de
pessoas que ainda vivem abaixo da linha de pobreza extrema, isto é, com renda
mensal inferior a R$ 70 — enfrenta uma série de fraudes investigadas por MP,
PF, Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU),
como mostra levantamento do GLOBO nos órgãos de controle.
País afora, o Brasil Sem Miséria é
alvo de fraudes comandadas por pessoas que deveriam zelar pela boa execução do
programa — mas se transformaram em exploradores da miséria e não se constrangem
em ludibriar os que estão no extremo da pobreza, para quem falta até comida.
Na Paraíba, um esquema envolvendo o
Programa do Leite desviou milhões, enquanto famílias recebiam leite adulterado.
Em Mato Grosso do Sul, um gato recebeu o Bolsa Família. E, pelo país, são
comuns casos em que pessoas sem o perfil dos programas foram neles incluídas,
enquanto outras que realmente precisam estão de fora. Nos últimos seis meses, O
GLOBO garimpou nas cinco regiões brasileiras exemplos dessas fraudes, que miram
a verba pública do Brasil Sem Miséria mas atingem o brasileiro mais miserável.
Elas são o tema da série de reportagens publicada a partir de hoje.
Embora enfrente problemas, o Brasil
Sem Miséria, que este ano teve orçamento de R$ 28,26 bilhões, tem sido a
garantia de vida melhor para famílias como a de José Carlos Sousa, de 25 anos.
Ele vive em Redenção, com a mulher e o filho de 5 anos, e viu a vida mudar
desde que trocou um quartinho mofado por uma casa de dois quartos, sala,
cozinha e banheiro no Jardim América II, onde estão as unidades do Minha Casa
Minha Vida.
Cunhada
do prefeito ganha casa
Na cidade paraense de Redenção, diz
a PF, além de usar o Minha Casa como moeda eleitoral, a prefeitura entregou
unidades para pessoas que não estavam na faixa de 0 a 3 salários mínimos. Por
lá, até a cunhada do prefeito foi contemplada.
— Levantamos, por meio de provas
testemunhais e documentais, que o prefeito dividiu o número de casas
financiadas pelo Minha Casa Minha Vida em cotas, distribuídas entre os
secretários e os ocupantes de cargos da administração municipal. Eles
encaminhavam e indicavam pessoas a serem beneficiadas, em troca de apoio
político aos candidatos ligados ao prefeito — diz Luís Felipe da Silva,
delegado da PF. — O inquérito já constatou que existem pessoas com vários
imóveis e veículos próprios, com renda razoável, e ainda assim beneficiadas.
Em fevereiro, a entrega das casas
foi suspensa pela Justiça Federal, que decidiu a favor de representação do MPF.
O juiz da 9ª Vara Federal de Redenção determinou que o prefeito não realizasse
o sorteio, antes da entrega das chaves. Em março, no entanto, a Justiça Federal
liberou a entrega dos imóveis.
— As denúncias são falsas. É o grupo
político adversário que fala que as casas foram entregues em troca de voto. Se
aconteceu, eu não fiquei sabendo — diz o prefeito Wagner Fontes, que recebeu a
equipe do GLOBO em seu gabinete e a coagiu e ameaçou quando soube o teor da
reportagem.
No encontro, Fontes chegou a dizer
que “se (alguém) falar mal a fim de difamar, pode ser que amanhã ou depois
esteja morto”, e contou a história de um blogueiro da região que “sumiu”. A
ameaça foi registrada na PF de Redenção.
Segundo o Ministério das Cidades,
responsável pelo Minha Casa, a “escolha dos beneficiários é da responsabilidade
da prefeitura, que estabelece os critérios aprovados pelo Conselho Municipal e
está sujeito à fiscalização dos órgãos de controle”. O município é ainda o
responsável pelo cadastramento, e “os dados dos candidatos são verificados pela
Caixa Econômica Federal”. Em caso de “comprovada irregularidade, a Caixa requer
a rescisão do contrato”.
Em Redenção, a PF investiga se as
pessoas encaminhadas por Elcir Lustosa, então chefe de gabinete, e contempladas
com o imóvel podiam mesmo ser beneficiadas. À polícia, Jardel Teles, gestor do
Bolsa Família no município, disse que alguns não se enquadravam no perfil
exigido. Também à PF, servidores da prefeitura disseram que em 2011 o então secretário
de Meio Ambiente, Lázaro Marinho, esteve no Departamento de Trânsito Municipal
acompanhado de um funcionário da secretaria. Ele teria dito que Marinho
“possuía cinco casas para serem distribuídas”.
No inquérito, a PF investiga se
Creuza de Jesus Lopes de Oliveira, cunhada de Wagner Fontes e nomeada por ele
para a Comissão de Habitação (portaria 154/2011) — que tem como atribuição
selecionar beneficiários do Minha Casa —, teria direito a um dos imóveis. A
polícia já sabe que a servidora pública vive com Vanderlã Monteiro Fontes,
irmão do prefeito, em uma casa cedida há oito anos por Wagner Fontes, no setor
Santa Tereza, área central da cidade. E que, mesmo tendo recebido as chaves em
29 de março, até julho não havia se mudado.
Segundo o ministério, os donos dos
imóveis têm 30 dias para ocupar as casas. “A não ocupação no prazo implica
rescisão de pleno direito do contrato de venda e compra. Quando comprovado que
o beneficiário não ocupou por motivo alheio à vontade, o prazo pode ser
estendido.”
Procurada, Creuza não explicou por
que não havia se mudado — “não é da sua conta” — e afirmou que “nunca” fez
parte da Comissão de Habitação. O prefeito confirmou que a nomeou para a
comissão. Disse que a “demitiu” e que nova comissão foi criada. O advogado da prefeitura
e o assessor especial do gabinete ficaram de enviar esse documento, mas isso
não ocorreu até o fechamento da edição.
— Ela vive com meu irmão, com quem
tem um filho, e eu dei a eles uma casa — diz Fontes. — Entregamos 500 casas e
eu soube de duas ou três situações que me contrariaram. Creuza ganhou e fiquei
contrariado. Eu não sabia que fez o cadastro.
Segundo o ministério, servidores
públicos podem ser beneficiados desde que estejam na faixa de renda
determinada. A PF investiga se Creuza tem mesmo renda entre 0 e 3 salários.
Mesmo investigado, Fontes, de olho
na reeleição, determinou no segundo semestre o cadastramento de mais três mil
pessoas no Minha Casa e prometeu mil casas. Não contou que o governo federal
ainda analisa dois novos projetos, que somam 893 unidades. Por isso, seguindo
determinação do MP Eleitoral, a PF instaurou novo inquérito em 28 de setembro.
E apura suposto crime de corrupção eleitoral.
— A investigação apura novas
denúncias de uso do programa como instrumento para obter votos — conta o
delegado Luís Felipe da Silva.
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