sexta-feira, 5 de outubro de 2012

SÃO PAULO, ROMA REVISITADA - Ricardo Pantin


 Ricardo Ludwig Mariasaldi Pantin*

Está cada vez mais claro o papel das gestões estadual e municipal em relação à questão imobiliária em São Paulo a partir de episódios bem conhecidos de todos nós. Cerca de 70 favelas na cidade "pegaram fogo" na gestão do atual prefeito, sendo que nos últimos cinco anos o Corpo de Bombeiros registrou 530 incêndios em favelas. Exitoso programa de controle e de combate a incêndios em favelas, criado pela gestão Marta Suplicy, foi extinto pela gestão José Serra em 2005, quando assumiu a Prefeitura, política mantida pela atual gestão, que teve início após a renúncia de Serra antes do fim do segundo ano de mandato. 

Força bruta dos órgãos de segurança (bombas de efeito moral, balas e cachorros) em ação truculenta que não era vista desde o fim do regime de exceção, foi usada contra moradores de uma comunidade no interior de São Paulo com o intento de expulsá-los do local onde moravam há mais de 20 anos, com a notória intenção de favorecer um especulador. Os fatos que envolveram a desocupação violenta, com ofensa aos direitos humanos dos moradores daquela localidade e com a notícia do desaparecimento e do homicídio de moradores, além do estupro de uma jovem por soldados da ROTA, força de elite da Polícia Militar, estão sendo investigados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e implica o Governador do Estado e a Cúpula do Poder Judiciário Paulista, que desrespeitou decisão do Judiciário Federal por pressão do Executivo local e, portanto, é corresponsável pelos crimes cometidos contra os integrantes daquela comunidade.

Novo incêndio em uma comunidade da Capital Paulista que já sofrera com as chamas há 9 meses atrás e quando, agora, os moradores tentam reconstruir suas casas, são impedidos pelas forças de segurança, sobretudo pela Guarda Civil Metropolitana, que imprime mais violência, física e psicológica, contra moradores de uma área cuja propriedade lhes pertence, pendente o título aquisitivo da propriedade tão somente de declaração judicial, impedida pela Prefeitura mediante o manejo de recursos manifestamente protelatórios. A atuação das forças de segurança sob a batuta dos chefes do Executivo, além de aviltar a dignidade daquelas pessoas, impede o exercício de um direito social que é a moradia, um dos pilares do pacto político fundamental assinado por nós.

É bom esclarecer não se pretende advogar que essas pessoas continuem morando em condições inadequadas como as existentes nas comunidades aqui mencionadas, uma no Centro de São Paulo e outra em São José dos Campos. Elas estão longe de atenderem ao direito fundamental a uma moradia digna. Também não se é contra as remoções, desde que, é claro, elas sejam feitas com respeito à dignidade dessas pessoas, assegurando prévio aviso, pagamento de aluguel social e moradia digna, dentro de programas habitacionais bem estruturados.

Por outro lado, mesmo sendo o Brasil a 6ª maior economia mundial, posto galgado pelo esforço de um governo que ao longo de 10 anos consolidou o país no cenário internacional e promoveu a inclusão social, é certo que a maior e mais rica cidade do país tem uma Administração que pretende se perpetuar aliada ao capital especulativo e imobiliário e que mantém as forças de segurança submissas a esses interesses, tanto assim que pessoas de baixa renda são expulsas de suas casas com fogo, método que lembra a idade média e as cruzadas – termo cujo emprego é bem oportuno, já que religião e política parecem atualmente andar de mãos dadas, numa era em que já foi declarada a laicidade do Estado.

Oportuno lembrar também nesse contexto que moradores das comunidades do Rio de Janeiro estão sendo expulsos de suas casas em razão das obras da Copa, política tal e qual a de São Paulo que vem sendo adotada pelo Governo daquele Estado sob a mesma ótica higienista e que reza a cartilha da gentrificação(1).

O que mais causa espécie é que esse tipo de política de segurança, atrelada a interesses imobiliários, tem o apoio de parcela considerável da população.

Um dado importante nesse cenário e que explica o apoio de cidadãos a essa política estatal de rearranjo dos espaços públicos, foi divulgado recentemente pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República: o de que 53% dos brasileiros formam hoje a classe média e são responsáveis por 38% do consumo nacional.

É certo que esse quadro se deve à inclusão da classe “C” no mercado de consumo, com acesso a bens e serviços antes inacessíveis, e cujo estilo de vida preconiza a doutrina do “self-made man”(2), a mesma que está embutida no pacote de congregações religiosas que hoje influencia o voto desse público – com evidente vantagem a candidatos apoiados por essas congregações, nem que isso custe a falta de lisura do pleito eleitoral –, público antes beneficiado por políticas de inclusão do Governo Federal e que agora, uma vez inserido no mercado de consumo e com a melhora do padrão de vida adere à política de exclusão daqueles que não se encontram no mesmo patamar sócio-econômico, legitimando a implementação dessa política em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro, onde estão concentrados os meios de produção, os serviços e por onde circula a riqueza, portanto.

Essa marcha, de harmonização da velha política excludente (antes fomentada pela elite oligárquica) com a chamada nova classe média, é o que sustenta os subsistemas de repressão contra a população mais pobre e vulnerável que ainda se encontra excluída e mostra a ascensão conservadora em São Paulo como fenômeno político, tema que foi debatido na Universidade de São Paulo com a participação da Professora Marilena Chauí. No encontro, tratou a professora de falar que a sociedade brasileira é autoritária, e não se trata de falar do autoritarismo como aparelho do Estado, da ditadura, o autoritarismo é um fenômeno social. Nessa medida, a sociedade brasileira é autoritária, é vertical, hierarquizada, oligárquica, transforma todas as diferenças em desigualdades e naturaliza as desigualdades, opera com a discriminação e o preconceito de classe, religioso, de sexo, profissional e racial; é uma sociedade extremamente violenta e que tem a tendência de situar a violência apenas no campo da criminalidade e deixa de perceber que a violência é toda violação física ou psíquica que se faz contra a natureza de alguém e com isso não se reconhece a humanidade do outro.

Com essas observações bem de se ver como a classe média pensa, especialmente a classe média paulistana, daí dizer que como cidade próspera (ao menos do ponto vista competitivo defendido pelo neoliberalismo) São Paulo não permite nem quer permitir a mobilidade social, razão pela qual a cidade (assim como o Estado) vem elegendo o mesmo projeto há anos, um projeto que toma por base a militarização, a opressão e a desumanização; alia-se em torno do individualismo e tem nisso um postulado, ignorando que a construção de uma sociedade mais justa e verdadeiramente desenvolvida passa pela inclusão e pela horizontalização de direitos, sem o que o crescimento econômico não se sustenta a médio e longo prazos, perpetuando um individualismo que se consome nele mesmo, de forma autodestrutiva, não gerando distribuição de renda nem produzindo riqueza, base em que se assenta a prosperidade de uma nação.

É o que vem ocorrendo em São Paulo e nas principais capitais do país. A escolha de um projeto de culto ao individualismo, de coisificação patenteada pelo consumo em massa e que acaba por refletir na política como trato privado, que resulta no desvirtuamento e no desmonte de um Estado Social tal como aquele idealizado pela Carta Política de 1988, reconhecendo como válidas políticas higienistas e de segurança pública voltadas à criação e à manutenção de certos privilégios restritos a uma nova classe social que foi alçada à inclusão, em detrimento de um crescimento horizontal e sustentável a possibilitar a mobilidade como instrumento de justiça social e que está muito além do “self-made man”, posto que antes passa pela implementação de políticas como aquelas experimentadas pelo Brasil nos últimos 10 anos e que colocaram o país na rota do crescimento. 

Em uma sociedade assim constituída e que compra como sinal de opulência e distinção para assegurar um status que antes não possuía, fica nítido que o voto segue a lógica do consumo – não sendo difícil entender por que o candidato que aponta como primeiro nas pesquisas em São Paulo é o “defensor” do consumidor e tem no serviço público um bem a ser colocado à disposição da população sob a ótima consumerista desejada por uma nova classe média que clama por credenciais educacionais como símbolo de poder, não fosse o fato de que esse poder não vem do conhecimento e sim do diploma como credencial, já que para esse público ter (=consumir) é mais importante do que o conhecimento como instrumento de transformação social e formação de capital humano que gera prosperidade. É inevitável reconhecer, portanto, que essa nova classe floresce no fértil terreno da corrida armamentista do consumo, como bem destacou o economista e filósofo Eduardo Giannetti, em excelente entrevista concedida ao Caderno Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em 19 de agosto de 2012.

Essa ascensão social percebida e sentida e, principalmente, consolidada com a experiência do mercado, exprime o sentimento de indiferença com as desigualdades, fomenta o preconceito e legitima a violência, daí decorrendo que políticas excludentes como as que se tem visto e os crimes cometidos pelo Estado contra a parcela economicamente mais frágil encontram a aprovação de parcela expressiva da população que ascendeu, a mesma que não quer ver ao lado do imóvel adquirido com a facilitação do crédito e com a baixa dos juros proporcionadas pela política macroeconômica, favelas ao seu lado. Enquanto isso, Roma pega fogo...

(1) Tradução literal do inglês "gentrification" que não consta nos dicionários de português. É um conjunto de processos de transformação do espaço urbano que, com ou sem intervenção governamental, busca o aburguesamento de áreas das grandes metrópoles que são tradicionalmente ocupadas pelos pobres, com a consequente expulsão dessas populações mais carentes, resultando na valorização imobiliária desses espaços (conf. HOFFMANN, Friederike. Istanbul: Living Together Separatly. Urban Action 2007, College of Behavioral and Social Sciences, San Francisco State University, 2007)

(2) A doutrina do “self-made man” está intrinsecamente ligada ao American Way of Life ou sonho americano e refere ao homem que nasceu em condições pouco promissoras e ascendeu social e economicamente por esforço próprio, sem qualquer intervenção do Estado ou condições externas que indiquem fatores determinantes para essa ascensão.

* Ricardo Ludwig Mariasaldi Pantin - É advogado e professor universitário

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