Não é a primeira nem será a última
vez que o jornal Globo ataca frontalmente a blogosfera. Tanto é que já estamos
com casco duro e nem damos bola. Vale a pena analisar, porém, detidamente o
editorial desta terça-feira do jornal O Globo, onde os platinados tentam
matar dois coelhos de uma vez: blindar a revista Veja e desqualificar o
pensamento que diverge da mídia corporativa em geral.
Usemos aquele método de fazer
comentários intercalados. O editorial está em negrito, meus comentários em
fonte normal:
O Globo – 08/05/2012
Comecemos pelo título.
Evidentemente, Civita não é Murdoch. É pior. Murdoch queria só ganhar mais
dinheiro. Civita queria ganhar mais dinheiro e derrubar governos. Murdoch
espezinhava celebridades, divulgando fofocas e intimidades. Civita aliou-se a
um mafioso para espionar autoridades com objetivo de chantageá-las e obter
vantagens financeiras e políticas. É como se descobrissem que a Fox aliou-se a
Bin Laden para tentar derrubar Obama, ou que o Times aliou-se à máfia chinesa,
que lhe fornecia vídeos oriundos de grampos ilegais, com objetivo de derrubar o
primeiro-ministro inglês.
Blogs
e veículos de imprensa chapa-branca que atuam como linha auxiliar de setores
radicais do PT desfecharam uma campanha organizada contra a revista “Veja”, na
esteira do escândalo Cachoeira/Demóstenes/Delta.
Globo inicia o texto através de uma
desqualificação grosseira. Baixou o nível. Blogs não tem obrigação de ser
neutros, nem de apoiar, nem de ser críticos. Blogs políticos nascem do desejo
pessoal de cidadãos brasileiros de expressarem sua opinião. Chamá-los de chapa
branca é aplicar-lhes um conceito já meio anacrônico do jornalismo comercial. É
ofensivo e equivocado. O Globo jamais chamou o blog da Veja, ou a própria
Veja, que são notoriamente pró-tucanos, de chapa-brancas em relação ao governo
de São Paulo. Na verdade, com o aumento do poder da mídia, somado às
circunstâncias políticas e históricas da democracia brasileira, de repente
ficou muito conveniente para a imprensa corporativa alardear sua ideologia de
que “jornalismo é oposição”. Pena que não fez isso durante a ditadura
brasileira, quando serviu à esta com submissão voluntária.
Além disso, Globo difunde uma
inverdade ao atribuir a postura dos blogs a uma estratégia de “linha auxiliar
de setores radicais do PT”. A indignação pública contra os desmandos de Rupert
Murdoch não veio de setores esquerdistas radicais, assim como a indignação
contra a Veja também funciona num diapasão muito acima do PT, quanto mais de
suas alas radicais. É um movimento popular autêntico. O PT é que se identifica
com ele, e não o contrário. E a campanha não é organizada, como são as
campanhas “anti-corrupção” patrocinadas pela mídia e setores do
conservadorismo. Aí sim, há dinheiro e espaço nos jornais, em ações coordenadas
que usam oportunisticamente a luta contra a corrupção para fazer proselitismo
ideológico barato.
A
operação tem todas as características de retaliação pelas várias reportagens da
revista das quais biografias de figuras estreladas do partido saíram manchadas,
e de denúncias de esquemas de corrupção urdidos em Brasília por partidos da
base aliada do governo. É indisfarçável, ainda, a tentativa de atemorização da
imprensa profissional como um todo, algo que esses mesmos setores radicais do
PT têm tentado transformar em rotina nos últimos nove anos, sem sucesso, graças
ao compromisso, antes do presidente Lula e agora da presidente Dilma Rousseff,
com a liberdade de expressão.
O que o Globo chama de retaliação,
seria mais apropriado chamar de reação natural. Reação não apenas de petistas,
mas de amplos setores da intelectualidade, e da esquerda em geral, e não só do
Brasil, mas de todas as Américas (incluindo aí os EUA), às consequências
nocivas da concentração da mídia ao processo democrático. Esta é uma crítica
que se faz desde Cidadão Kane, de Orson Welles, filmado em 1941. É uma crítica
democrática, saudável. Ou o Globo acha que devemos achar muito normal que uma
revista use, ao longo de vários anos, grampos clandestinos fornecidos por uma
máfia sinistra, fazendo matérias que beneficiam financeiramente este grupo e a
própria revista?
A mídia omite a si mesma de suas
análises políticas. Ela se trata como uma espécie de deidade intocável, a
“imprensa independente”, ou “imprensa livre”, quando na verdade sabemos que são
empresas com interesses econômicos muito específicos. A Veja, por exemplo, tem
empresas que vendem livros didáticos para o Estado, e tem faturado milhões com
esse negócio, onde há uma relação promíscua entre política, imprensa e, como
agora está claro, máfia.
A
manobra se baseia em fragmentos de grampos legais feitos pela Polícia Federal
na investigação das atividades do bicheiro Carlinhos Cachoeira, pela qual se
descobriu a verdadeira face do senador Demóstenes Torres, outrora bastião da
moralidade, e, entre outros achados, ligações espúrias de Cachoeira com a
construtora Delta. As gravações registraram vários contatos entre o diretor da
sucursal de “Veja” em Brasília, Policarpo Jr., e Cachoeira. O bicheiro municiou
a reportagem da revista com informações e material de vídeo/gravações sobre o
baixo mundo da política, de que alguns políticos petistas e aliados fazem
parte.
Exatamente, a “manobra” se baseia em
grampos legais. Quer dizer que o Globo defende que apenas ele pode “manobrar”
grampos, de preferência ilegais?
A
constatação animou alas radicais do partido a dar o troco. O presidente
petista, Rui Falcão, chegou a declarar formalmente que a CPI do Cachoeira iria
“desmascarar o mensalão”. Aos poucos, os tais blogs começaram a soltar notas
sobre uma suposta conspiração de “Veja” com o bicheiro. E, no fim de semana,
reportagens de TV e na mídia impressa chapas-brancas, devidamente replicadas na
internet, compararam Roberto Civita, da Abril, editora da revista, a Rupert
Murdoch, o australiano-americano sob cerrada pressão na Inglaterra, devido aos
crimes cometidos pelo seu jornal “News of the World”, fechado pelo próprio
Murdoch.
Comparar Civita a Murdoch é tosco exercício de má-fé, pois o jornal inglês invadiu, ele próprio, a privacidade alheia. Quer-se produzir um escândalo de imprensa sobre um contato repórter-fonte. Cada organização jornalística tem códigos, em que as regras sobre este relacionamento – sem o qual não existe notícia – têm destaque, pela sua importância. Como inexiste notícia passada de forma desinteressada, é preciso extremo cuidado principalmente no tratamento de informações vazadas por fontes no anonimato. Até aqui, nenhuma das gravações divulgadas indica que o diretor de “Veja” estivesse a serviço do bicheiro, como afirmam os blogs, ou com ele trocasse favores espúrios. Ao contrário, numa das gravações, o bicheiro se irrita com o fato de municiar o jornalista com informações e dele nada receber em troca.
A comparação é válida, e Civita leva
a pior, como já expliquei acima. Murdoch espionou a privacidade alheia. Civita
aliou-se à uma máfia política. Há várias gravações que mostram uma relação
promíscua entre a revista e o bicheiro sim. Globo quer tapar o sol com peneira.
Além disso, há muitas gravações que ainda não chegaram ao conhecimento do
público. Há sim uma indignação muito grande de amplos setores da sociedade
contra a ética jornalística da Veja. E contra o Globo também. Os platinados
tentam blindar a Veja porque tem medo que sejam atingidos por algum petardo
similar, visto que as reportagens que Civita publicava, a mando de Cachoeira,
repercutiam imediatamente no Globo, em especial no temível Jornal Nacional. Na
verdade, a Veja era apenas a porta de entrada para o noticiário televisivo,
onde, aí sim, os estragos políticos contra os inimigos do esquema Cachoeira
(honestos ou não) eram quase sempre fatais. Eu não engulo aqueles
7 a 8 minutos que o Globo deu a Rubnei Quicoli, bandidinho de terceira
categoria, ex-presidiário, no Jornal Nacional, às vésperas do primeiro turno
das eleições presidenciais, com base em matérias da… Veja.
Estabelecem
as Organizações Globo em um dos itens de seus Princípios Editoriais: “(…) é
altamente recomendável que a relação com a fonte, por mais próxima que seja,
não se transforme em relação de amizade. A lealdade do jornalista é com a
notícia.” E em busca da notícia o repórter não pode escolher fontes. Mas as
informações que vêm delas devem ser analisadas e confirmadas, antes da
publicação. E nada pode ser oferecido em troca, com a óbvia exceção do
anonimato, quando necessário.
Os princípios editoriais do Globo
são uma piada de mau gosto. O grupo Globo se transformou numa empresa que
oprime ideologicamente seus jornalistas, violentando-lhes a liberdade de se
manifestarem politicamente. O Globo é inimigo da liberdade de expressão de seus
próprios empregados. Princípios não valem nada, além disso, se não correspondem
à prática. O Globo escolhe despudoradamente suas fontes de acordo com seus
interesses políticos, e sua lealdade não é com a notícia e sim com a ideologia
dos patrões, mesmo que para isso precise sacrificar a notícia.
O
próprio braço sindical do PT, durante a CPI de PC/Collor, abasteceu a imprensa
com informações vazadas ilegalmente, a partir da quebra do sigilo bancário e
fiscal de PC e outros. O “Washington Post” só pôde elucidar a invasão de um
escritório democrata no conjunto Watergate porque um alto funcionário do FBI, o
Garganta Profunda, repassou a seus jornalistas, ilegalmente, informações
sigilosas. Só alguém de dentro do esquema do mensalão poderia denunciá-lo.
Coube a Roberto Jefferson esta tarefa.
Uma coisa é o vazamento ilegal de
grampos realizados com autorização judicial. Não é um crime tão grave, embora
também tenhamos aí uma situação muito irregular e, às vezes, perigosa, já que
se formam conluios interessados entre setores da polícia e imprensa. Outra
coisa é o vazamento de dados sigilosos bancários e fiscais. Aí temos um crime
grave contra a privacidade, que tem sido muito raro nos últimos anos. O
vazamento dos dados do caseiro Francenildo, por exemplo, derrubou um ministro
da Fazenda. O Globo sempre atacou com muita virulência esse tipo de prática,
então fica incongruente pregar o “locupletemo-nos todos” apenas para defender o
uso de grampos clandestinos pela revista Veja.
Uma terceira coisa, porém,
totalmente distinta, é usar grampos ilegais, pagos e realizados por uma máfia
política, que tem naturalmente interesses financeiros escusos em divulgá-los. É
um crime infinitamente mais grave. A comparação com o caso Watergate é
descabida também por causa disso. A fonte era um alto funcionário do FBI, ou
seja, alguém do Estado, não era um membro do esquema Cachoeira, um bandido
corrupto, com interesses partidários, como eram as fontes de Veja.
A
questão é como processar as informações obtidas da fonte, a partir do interesse
público que elas tenham. E não houve desmentidos das reportagens de “Veja” que
irritaram alas do PT. Ao contrário, a maior parte delas resultou em atitudes
firmes da presidente Dilma Rousseff, que demitiu ministros e funcionários, no
que ficou conhecido no início do governo como uma faxina ética.
Mais uma vez a mídia omite seu
próprio poder, além de mentir. Houve sim desmentidos, fortes, dos envolvidos. A
presidenta Dilma demitiu alguns ministros sem prova, por conta da instabilidade
política provocada pela própria mídia. Alguns talvez tivessem culpa no
cartório, como aliás quase todo ser humano tem, mas sua maior culpa consistia
em serem ministros de um governo trabalhista. As crises ministeriais tinham
início através de uma denúncia, mas depois nem importava que essas denúncias
não fossem verdadeiras: iniciava-se uma campanha maciça, organizada, para
derrubar aquele alvo específico, atacando membros do partido, mesmo que nada
tivessem a ver com o acusado. Foi o caso de Orlando Silva, em que a mídia
começou a atacar o PCdoB de forma generalizada, inclusive Manuela D’Ávila,
quadro importante do partido e ao mesmo tempo vulnerável por ser candidata à
prefeitura de Porto Alegre, disputando um eleitorado fortemente politizado e,
por isso, sensível a campanhas de imprensa. A mídia não perdoa nem a família.
No caso do Sarney, não escapou nem uma neta de menos de 20 anos, que cometeu o
crime terrível de ligar para o avô e pedir emprego para o namorado. Quando os
envolvidos são aliados da mídia, aí a blindagem é completa. Demóstenes Torres
ligou para Aécio para pedir emprego para a prima de Cachoeira, foi atendido, e
não se criou escândalo nenhum. Ou seja, os Princípios do Globo me parecem bem
flexíveis.
O editorial do Globo, por outro
lado, corresponde a mais um atestado de que a blogosfera vem se tornando cada
vez mais influente. É um contrapeso importante à mídia corporativa. É um
verdadeiro ombudsman coletivo e independente do trabalho da imprensa
brasileira. Em nome da liberdade de expressão, da democracia, do jornalismo, o
Globo deveria agradecer a blogosfera, que lhe presta um serviço, gratuitamente,
permitindo-lhe aprimorar-se. A imprensa, pressionada pela blogosfera, se vê
obrigada a frear um pouco o conservadorismo doentio, fanático e partidário para
o qual parece eventualmente enveredar.
Nem sempre a blogosfera está certa.
Mas ela não se pretende infalível. A blogosfera é, na maioria dos casos,
assumidamente tendenciosa, ideológica, partidária, ou seja, totalmente oposta à
neutralidade higiênica e hipócrita da imprensa corporativa. A blogosfera,
todavia, é bem mais livre das amarras que prendem jornais a uma série de
interesses econômicos. Blogueiros e comentaristas não são amordaçados pelos
“códigos de conduta” que alguns meios impõem – tiranicamente – a seus empregados.
Como blogueiro, observo às vezes até meio estupefato como as mesmas massas que
apoiavam a Dilma, de repente passam a criticá-la ferozmente no dia seguinte,
para voltar a apoiá-la posteriormente, tendo como base sempre e exclusivamente
a independência de seu juízo. As massas blogosféricas (hoje integradas em redes
sociais) são instáveis, anárquicas, imprevisíveis e livres, como jamais a
imprensa, ou a velha mídia, será. Ao detratá-la, portanto, o Globo ataca o
próprio símbolo da contemporaneidade, e dá recibo de sua insegurança perante um
novo mundo.
Via Blog do Miro
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