sábado, 30 de março de 2013

Gato só visita passarinho quando está mal intencionado



Por Dag Vulpi

Há momentos em nossas vidas em que manter a serenidade é necessariamente imprescindível, mesmo quando tudo conspira contra, tornando essa tarefa quase impossível. E foi num desses momentos adversos que o extrovertido e sempre de bem com a vida "beija-flor" foi pego.

Beija-flor é um cidadão de boa índole e de muitas amizades, funcionário da prefeitura de Vila Velha - ES há mais de 30 anos, e essa longevidade profissional acabou por render-lhe certos "privilégios" comuns ao setor público, dos quais, coerentemente, beija-flor não abre mão.

Entre os tais privilégios, estão a redução de sua carga horária, e as constantes faltas são sempre ignoradas, afinal, ele é um dos mais antigos funcionários daquela prefeitura.

Como manda a regra, a maioria dos seus chefes entrou para os quadros do funcionalismo apadrinhados, e à custa de favores políticos, e o conhecimento técnico da função que exerceriam, bem, esse era um detalhe esquecido. A cada mudança no executivo municipal, toda a chefia era substituída, mas beija-flor continuava seguindo sua rotina, aumentando sua longevidade na vida e no trabalho.

Boa bisca, boêmio e com seus vícios, vícios que, aliás, quase todos nós temos. Um de seus principais vícios derivava do seu próprio apelido, o de sentir prazer em possuir pássaros de gaiola. Não abria mão de ter em seu plantel um bom curió, coleirinha e trinca-ferro.

Esse vício, que ele chamava de paixão por pássaros, por vezes trazia-lhe alegrias, mas, como nem tudo é sorriso, e até o mais famoso é falso, que o diga Mona Lisa, a vida também lhe reservava momentos de desilusões.

Coisa não permitida por beija-flor era o questionamento quanto à qualidade de seus pássaros. Ai daquele que fizesse críticas aos seus canoros. Vez ou outra, um desavisado fazia comentários pejorativos sobre a qualidade de seus pupilos, que eram rechaçados e tidos como: “inadmissíveis”, “opiniões inconsequentes vindas de leigos”. Seus pássaros eram sempre os melhores, ponto.

Os momentos mais felizes de beija-flor foram quase todos atribuídos aos triunfos de seus pássaros, em especial ao seu coleirinha "Pepê".

Tornaram-se tradicionais as disputas, ou como gostava de dizer beija-flor, os "rachas". Eles eram realizados todos os sábados pela manhã. A rapaziada se reunia para colocar seus pássaros à prova, enfileirados com suas gaiolas lado a lado para determinar qual deles daria o maior número de cantos.

Outro participante das rodas de racha, e admirador da arte da criação de passeriformes, era seu Carlos, ou "Carlinho Pereá". Pereá é vizinho de beija-flor, mora na mesma rua, e sua paixão por pássaros também é grande. Porém, apesar dos gostos parecidos, os pontos de vista dos dois sempre foram divergentes.

Aquela rixa era antiga, atribuída a fatos ocorridos quando eram jovens, e o passar dos anos não contribuiu para o consenso. Difícil era saber quem estava com a razão, se é que alguém a tinha.

Papo comum e recorrente era a afirmativa de ambos em se dizerem proprietários dos melhores e mais belos pássaros da região. Nunca se entenderam quanto a isso, aliás, não se entendiam em quase nada. Tratarei especificamente disso em outra publicação; por hora, tratarei de um fato em especial que tirou beija-flor de circulação por alguns dias.

O bom e velho beija-flor acordou às quatro horas da manhã, e acordar cedo era seu costume antigo. Levantou, ligou o rádio sintonizado na AM, onde passava seu programa matinal predileto, com música caipira e locutor com sotaque de interiorano.

Ao pegar a vasilha para aquecer a água do café, beija-flor ouviu um barulho vindo do seu quintal. Imediatamente, abriu a janela e, mesmo ainda escuro, percebeu um desconhecido no seu quintal, carregando uma botija de gás. Antes que beija-flor questionasse a presença do intruso em sua propriedade, o sujeito se antecipou, indagando se ele tinha interesse em comprar a botija de gás, alegando que ela estava cheia e que precisava vendê-la para comprar remédio para o filho pequeno.

Beija-flor pensou por alguns segundos e respondeu que não tinha interesse. "Vai que seja fruto de algum roubo", pensou ele. Em seguida, pediu para o cidadão se retirar de seu quintal, e assim foi feito. O cidadão desculpou-se pelo incômodo e retirou-se levando a botija.

Beija-flor certificou-se de que o cidadão realmente havia se retirado e voltou aos seus afazeres. Ao colocar a chaleira sobre o fogão e tentar acender o fogo, teve a primeira decepção do dia: o gás havia acabado. Tentou duas, três vezes, mas nada. O fogo não acendeu. Era inevitável; teria que esperar o comércio abrir para comprar outro botijão.

Chateado, lamentou-se pela oportunidade perdida: "Eu poderia ter comprado a botija daquele infeliz, teria ajudado um filho de Deus, e agora não ficaria sem café até o comércio abrir", pensou ele. Mas não havia outro jeito, a não ser adiantar o processo da troca de botijas, soltando a válvula que ficava presa à botija.

Ao acender a lâmpada da área externa e dirigir-se ao local onde estava instalada a botija, ao chegar lá, só avistou a mangueira. Percebeu que a botija não estava mais lá. Alguém já havia adiantado o seu serviço.

Beija-flor não se conteve, jogou o boné no chão e praguejou tudo o que não devia contra o seu indesejável visitante matutino.

Como azar pouco é bobagem, Beija-flor, apesar de ser um sujeito com muitos anos de cidade e conviver diariamente no meio da galera da prefeitura, onde o que não falta é peão esperto, não poderia cometer o erro de contar o ocorrido logo para o suíno. Suíno era o apelido do dono da quitanda, e falar para o suíno era o mesmo que pagar um carro de som para divulgar o falecimento de um padre.

Antes das nove da manhã, o bairro todo já estava sabendo do ocorrido, e o pior, com exageros. Afinal, a galera não perderia uma oportunidade daquelas.

Beija-flor se encontrava naquela situação de "bola da vez" e precisou tomar uma atitude inédita. Logo ele, que se gabava aos quatro ventos de nunca ter tirado férias na vida, desta vez foi inevitável. Beija-flor, que durante toda vida foi um gozador nato, tornara-se o motivo da chacota de todo o bairro e das proximidades.

Não houve jeito; Beija-flor tirou férias forçadas e foi passar uns dias na casa de um irmão que morava no interior. Não havia escolha; era isso ou fazer uma bobagem.

Felizmente, tudo acabou bem, mas Beija-flor ficou muito chateado durante um bom tempo. Perdeu aquele status de ser o esperto da área e virou chacota.

Até hoje, seu feito é lembrado, inclusive por este que agora assina este texto.

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