Por Dag Vulpi
Há momentos em nossas vidas em que manter a serenidade é
necessariamente imprescindível, mesmo quando tudo conspira contra,
tornando essa tarefa quase impossível. E foi num desses momentos
adversos que o extrovertido e sempre de bem com a vida "beija-flor"
foi pego.
Beija-flor
é um cidadão de boa índole e de muitas amizades, funcionário da
prefeitura de Vila Velha - ES há mais de 30 anos, e essa longevidade
profissional acabou por render-lhe certos "privilégios"
comuns ao setor público, dos quais, coerentemente, beija-flor
não abre mão.
Entre
os tais privilégios, estão a redução de sua carga horária, e as
constantes faltas são sempre ignoradas, afinal, ele é um dos mais
antigos funcionários daquela prefeitura.
Como
manda a regra, a maioria dos seus chefes entrou para os quadros do
funcionalismo apadrinhados, e à custa de favores políticos, e o
conhecimento técnico da função que exerceriam, bem, esse era um
detalhe esquecido. A cada mudança no executivo municipal, toda a
chefia era substituída, mas beija-flor continuava seguindo sua
rotina, aumentando sua longevidade na vida e no trabalho.
Boa
bisca, boêmio e com seus vícios, vícios que, aliás, quase todos
nós temos. Um de seus principais vícios derivava do seu próprio
apelido, o de sentir prazer em possuir pássaros de gaiola. Não
abria mão de ter em seu plantel um bom curió, coleirinha e
trinca-ferro.
Esse
vício, que ele chamava de paixão por pássaros, por vezes
trazia-lhe alegrias, mas, como nem tudo é sorriso, e até o mais
famoso é falso, que o diga Mona Lisa, a vida também lhe reservava
momentos de desilusões.
Coisa
não permitida por beija-flor era o questionamento quanto à
qualidade de seus pássaros. Ai daquele que fizesse críticas aos
seus canoros. Vez ou outra, um desavisado fazia comentários
pejorativos sobre a qualidade de seus pupilos, que eram rechaçados e
tidos como: “inadmissíveis”, “opiniões inconsequentes vindas
de leigos”. Seus pássaros eram sempre os melhores, ponto.
Os
momentos mais felizes de beija-flor foram quase todos atribuídos aos
triunfos de seus pássaros, em especial ao seu coleirinha "Pepê".
Tornaram-se
tradicionais as disputas, ou como gostava de dizer beija-flor, os
"rachas". Eles eram realizados todos os sábados pela
manhã. A rapaziada se reunia para colocar seus pássaros à prova,
enfileirados com suas gaiolas lado a lado para determinar qual deles
daria o maior número de cantos.
Outro
participante das rodas de racha, e admirador da arte da criação de
passeriformes, era seu Carlos, ou "Carlinho Pereá". Pereá
é vizinho de beija-flor, mora na mesma rua, e sua paixão por
pássaros também é grande. Porém, apesar dos gostos parecidos, os
pontos de vista dos dois sempre foram divergentes.
Aquela
rixa era antiga, atribuída a fatos ocorridos quando eram jovens, e o
passar dos anos não contribuiu para o consenso. Difícil era saber
quem estava com a razão, se é que alguém a tinha.
Papo
comum e recorrente era a afirmativa de ambos em se dizerem
proprietários dos melhores e mais belos pássaros da região. Nunca
se entenderam quanto a isso, aliás, não se entendiam em quase nada.
Tratarei especificamente disso em outra publicação; por hora,
tratarei de um fato em especial que tirou beija-flor de circulação
por alguns dias.
O
bom e velho beija-flor acordou às quatro horas da manhã, e acordar
cedo era seu costume antigo. Levantou, ligou o rádio sintonizado na
AM, onde passava seu programa matinal predileto, com música caipira
e locutor com sotaque de interiorano.
Ao
pegar a vasilha para aquecer a água do café, beija-flor ouviu um
barulho vindo do seu quintal. Imediatamente, abriu a janela e, mesmo
ainda escuro, percebeu um desconhecido no seu quintal, carregando uma
botija de gás. Antes que beija-flor questionasse a presença do
intruso em sua propriedade, o sujeito se antecipou, indagando se ele
tinha interesse em comprar a botija de gás, alegando que ela estava
cheia e que precisava vendê-la para comprar remédio para o filho
pequeno.
Beija-flor
pensou por alguns segundos e respondeu que não tinha interesse. "Vai
que seja fruto de algum roubo", pensou ele. Em seguida, pediu
para o cidadão se retirar de seu quintal, e assim foi feito. O
cidadão desculpou-se pelo incômodo e retirou-se levando a botija.
Beija-flor
certificou-se de que o cidadão realmente havia se retirado e voltou
aos seus afazeres. Ao colocar a chaleira sobre o fogão e tentar
acender o fogo, teve a primeira decepção do dia: o gás havia
acabado. Tentou duas, três vezes, mas nada. O fogo não acendeu. Era
inevitável; teria que esperar o comércio abrir para comprar outro
botijão.
Chateado,
lamentou-se pela oportunidade perdida: "Eu poderia ter comprado
a botija daquele infeliz, teria ajudado um filho de Deus, e agora não
ficaria sem café até o comércio abrir", pensou ele. Mas não
havia outro jeito, a não ser adiantar o processo da troca de
botijas, soltando a válvula que ficava presa à botija.
Ao
acender a lâmpada da área externa e dirigir-se ao local onde estava
instalada a botija, ao chegar lá, só avistou a mangueira. Percebeu
que a botija não estava mais lá. Alguém já havia adiantado o seu
serviço.
Beija-flor
não se conteve, jogou o boné no chão e praguejou tudo o que não
devia contra o seu indesejável visitante matutino.
Como
azar pouco é bobagem, Beija-flor, apesar de ser um sujeito com
muitos anos de cidade e conviver diariamente no meio da galera da
prefeitura, onde o que não falta é peão esperto, não poderia
cometer o erro de contar o ocorrido logo para o suíno. Suíno era o
apelido do dono da quitanda, e falar para o suíno era o mesmo que
pagar um carro de som para divulgar o falecimento de um padre.
Antes
das nove da manhã, o bairro todo já estava sabendo do ocorrido, e o
pior, com exageros. Afinal, a galera não perderia uma oportunidade
daquelas.
Beija-flor
se encontrava naquela situação de "bola da vez" e
precisou tomar uma atitude inédita. Logo ele, que se gabava aos
quatro ventos de nunca ter tirado férias na vida, desta vez foi
inevitável. Beija-flor, que durante toda vida foi um gozador nato,
tornara-se o motivo da chacota de todo o bairro e das proximidades.
Não
houve jeito; Beija-flor tirou férias forçadas e foi passar uns dias
na casa de um irmão que morava no interior. Não havia escolha; era
isso ou fazer uma bobagem.
Felizmente,
tudo acabou bem, mas Beija-flor ficou muito chateado durante um bom
tempo. Perdeu aquele status de ser o esperto da área e virou
chacota.
Até
hoje, seu feito é lembrado, inclusive por este que agora assina este texto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi