A barbárie é
hoje. E não estou falando do massacre de Realengo ou de outros casos que têm
sido noticiados de crianças e adolescentes com armas nas escolas. Isso tudo é muito
óbvio, ainda que igualmente bárbaro. Falo da barbárie que grita em
silêncio. Ou melhor: da barbárie que grita bem alto, mas nossos ouvidos estão
tampados por mãos alheias, e ouvir o grito desesperado é difícil.
As mãos que
tapam nossos ouvidos estão nas extremidades de tentáculos múltiplos, os
tentáculos dos conglomerados de mídia, que impedem a democratização da
comunicação, a pluralidade de informações e enfoques, o direito à expressão.
Nesse silêncio imposto, pouco podemos falar e menos ainda podemos ouvir. A
sociedade está coberta por um grande tampão criado pelo domínio da comunicação
por meia dúzia de famílias. Famílias essas aliadas às elites econômicas e
políticas nacionais e internacionais, que brigam diariamente para ter apenas
para elas o direito à voz e o poder de decisão sobre o que os brasileiros
podem escutar.
Como pode ser
ouvido, então, alguém que não pode nem morar? Alguém descartado pela sociedade,
alguém para quem todos viram o rosto, alguém que os outros não querem enxergar,
quanto mais ouvir. Como um morador de rua pode se fazer ouvir? Marginalizado
pela vida, criminalizado pelo medo da morte, animalizado pela janela do carro
fechada.
Quem mora na
rua não mora, vaga. Ou mora no mundo, se o leitor preferir poesia pobre. Quem
mora na rua não existe, se o leitor preferir a versão da mídia dominante.
Imagine a si mesmo andando na rua pela madrugada, ou melhor, voltando na rua
pela madrugada, aos tropeços, depois de uma noite na mesa do teu bar preferido,
talvez com bons amigos, talvez com aquela mulher perfumada. Mesmo com o teu
hálito de cachaça ela gostou de ti, e tu voltas contente, mas cansado. Sentas
dois minutos para descansar, e alguém põe fogo em ti. Depois daquela mulher te
incendiar de forma figurada (quase que não só) agora alguém te incendiou de
verdade, e saiu correndo e rindo. Tu tens 80% do teu corpo queimado.
No outro dia,
todos os jornais põe o teu caso na capa. A repercussão é enorme, a comoção
popular também. Os dias se sucedem com enxurradas de reportagens sobre o que
aconteceu, os responsáveis são severamente punidos, a população, em polvorosa,
tenta o linchamento. A mídia pergunta o que falta acontecer nesse país de
merda, clama por mais policiais nas ruas, mais armas, mais tudo. A classe média
foi atingida, está acuada, é o caos, é a barbárie.
Mas e se o
incendiado foi um morador de rua? A Agência Estado escreve uma nota com dois
parágrafos sobre o assunto, alguns portais reproduzem a nota, com uma ou outra
variação vocabular. Sidmar Xavier Miranda, de 35 anos, morador do mundo,
desmorador, foi incendiado na madrugada desta quinta-feira em Uberlândia, Minas
Gerais. Teve 80% do corpo queimado. E o silêncio de dois parágrafos tenta tapar
nossos ouvidos, que queimam. Alguém está falando de nós, mesmo que sejam apenas
dois parágrafos e mesmo que não percebamos que é de nós que eles falam.
Titulo
original: Todos os fogos o fogo – queimam nossos ouvidos | Origem
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Dag Vulpi