Editorial Jornal Opção
O
jurista Ives Gandra diz que, dada a corrupção sistêmica na Petrobrás, há
condições técnicas para se pedir o impedimento da petista-chefe. Três mestres
universitários sugerem que a argumentação do professor da Universidade
Mackenzie é mais ideológica do que técnica
Há
justificativas plausíveis para o impeachment da presidente da República, Dilma
Rousseff, do PT? Há divergências entre juristas. Uns, como Ives Gandra da Silva
Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, avaliam que sim. Chegou a
produzir, sob encomenda, um parecer a respeito. Outros sugerem que não. A
petista-chefe é corrupta? Está de fato comprovado que seu governo, o todo, é
venal? Até agora, não há indícios de que a presidente está envolvida em algum
ilícito. Não há provas também de que seu governo é inteiramente corrupto.
Porém, mesmo não estando envolvida, pode ser apontada como “culpada” por ser a
gestora? Pode um governo ser corrupto, mas não a presidente? É um paradoxo que
nem juristas gabaritados estão dando conta de explicar.
Num
artigo publicado na “Folha de S. Paulo”, Ives Gandra garante que, “à luz de um
raciocínio exclusivamente jurídico, há fundamentação para o pedido de
impeachment da presidente Dilma Rousseff”.
Ao
examinar a Constituição Federal — o artigo 85, inciso 5º, o artigo 37,
parágrafo 6º, e o parágrafo 4º do artigo 37 —, o artigo 9º, inciso 3º, da Lei
do Impeachment, e os artigos 138, 139 e 142 das Lei das SAs, Ives Gandra
concluiu que a possibilidade de se pedir o impeachment, com base legal, não é
ilegítima.
O
parágrafo 5º do artigo 37 da CF menciona a “imprescritibilidade das ações de
ressarcimento que o Estado tem contra o agente público que gerou a lesão por
culpa — imprudência, negligência, imperícia e omissão — ou dolo”, anota Ives
Gandra. A Lei do Impeachment define: “São crimes de responsabilidade contra a
probidade de administração: não tornar efetiva a responsabilidade de seus
subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos
contrários à Constituição”. O parágrafo 4º declara: “Constitui ato de
improbidade administrativa que atente contra os princípios da administração
pública ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade,
legalidade e lealdade às instituições”.
Ao
interpretar o que aponta no parágrafo anterior, Ives Gandra firma que “a culpa
é hipótese de improbidade administrativa”. No seu parecer, o jurista refere-se
“à destruição da Petrobrás, reduzida a sua expressão nenhuma, nos anos de
gestão” de “Dilma Rousseff como presidente do Conselho de Administração e como
presidente da República, por corrupção ou concussão, durante oito anos, com
desfalque de bilhões de reais, por dinheiro ilicitamente desviado e por
operações administrativas desastrosas, que levaram ao seu balanço não poder
sequer ser auditado”.
Dilma
Rousseff sublinhou que, se tivesse informações mais amplas, não teria aprovado
a aquisição da refinaria de Pesadena pela Petrobrás. Para Ives Gandra,
“restou”, de parte da presidente, “demonstrada omissão, ou imperícia ou
imprudência ou negligência”.
O
fato de Dilma Rousseff manter a mesma diretoria (só saiu agora), mesmo com
informações indicando seus vários e graves erros, demonstra, na análise de Ives
Gandra, “que a improbidade por culpa fica caracterizada, continuando de um
mandato ao outro”.
Ives Gandra conclui o parecer apontando que há, “independentemente das
apurações dos desvios que estão sendo realizadas pela Polícia Federal e pelo
Ministério Público (hipótese de dolo), fundamentação jurídica para o pedido de
impeachment (hipótese de culpa)”. O jurista ressalva que “o julgamento do
impeachment pelo Congresso é mais político que jurídico”.
Os
juristas Lenio Streck, ex-procurador de Justiça, professor e advogado; Marcelo
Cattoni, doutor em Direito e professor da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, doutor em Direito e professor da
Unifor-CE, contestam, em artigo publicado no portal Consultor Jurídico, a tese
de Ives Gandra, chegando a notar um componente ideológico na argumentação. Eles
não dizem, mas o jurista é de direita.
Os
três juristas assinalam que, ao se discutir o impeachment de um presidente da
República, “ou se faz um parecer técnico, suspendendo os seus pré-juízos, ou se
elabora uma opinião comprometida ideologicamente. Mas daí tem de assumir que
não é técnico. O que não dá para fazer é misturar as duas coisas: sob a
aparência da tecnicidade, um parecer comprometido”.
Ao sugerir “que há argumentos jurídicos para sustentar uma tese política”, o
jurista Ives Gandra está usando, segundo os professores, “a política como
elemento predador do Direito.
(…)
O Direito não pode ser reduzido, sem as devidas mediações institucionais, a um
mero instrumento à disposição da política. Além disso, há um sério problema de
teoria da constituição no argumento do parecerista. Ele talvez compreenda mal o
papel da Constituição democrática. Pois se de um ponto de vista sistêmico a
Constituição é um acoplamento estrutural entre Direito e política, isso
pressupõe, por um lado, uma diferenciação funcional entre Direito e política e,
por outro, prestações entre ambos os sistemas, de tal forma que o Direito
legitime a política e esta garanta efetividade ao Direito. Assim, a
Constituição é parâmetro de validade para o Direito e de legitimidade para a
política”.
Para
os críticos de Ives Gandra, “a Constituição é uma mediação entre Direito e
política. Falar em elementos jurídicos que justificam uma decisão política, nos
termos do argumento de Gandra, pressupõe o argumento autoritário de um Direito
como instrumento da política. Esse é o busílis do equívoco do professor. Assim,
ao invés de mediação, o que ocorre é um curto-circuito entre Direito e política
no plano constitucional, chame-se isso de colonização do Direito pela política,
corrupção do código do Direito pela política, ação predatória da política no
Direito, ilegitimidade política ou, simplesmente, defesa de uma tese
inconstitucional!”
Os
mestres apontam que um leitor da Consultor Jurídico, com formação jurídica,
escreveu, na opinião deles com correção: “O professos [Ives Gandra] mistura lei
de improbidade com lei de crimes de responsabilidade. Lança mão do vago artigo
9º, 3, da Lei 1079/50 para justificar seu parecer de que se admite crime de
responsabilidade culposo, e, pior, chega a afirmar que o artigo 85, V da CF,
seria auto-aplicável! Só que o parágrafo único do mesmo artigo é expresso ao
prescrever que ‘esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá
as normas de processo e julgamento’. A parte final do parecer é assustadora.
Quando o professor vai ‘aos fatos’, não consegue disfarçar sua parcialidade, concluindo
que está caracterizado crime de responsabilidade culposo, e fundamenta no
artigo 11 da Lei de Improbidade! Cria um tertium genus [terceiro elemento ou
tipo] com o uso indiscriminado da Lei 1.079 com a Lei 8.429, sem sequer
mencionar os entendimentos do STF e do STJ sobre o tema”.
Os
três professores usam outro comentário, de outro leitor da Consultor Jurídico,
para rebater Ives Gandra: “Os crimes de responsabilidade, de nítida natureza
penal, não se presumem culposos, como qualquer outro (artigo 18, parágrafo
único do CP), não se podendo inferir negligência, imprudência ou imperícia como
pressupostos da improbidade prevista no artigo 4 V da Lei 1.079/50, sob pena de
grave afronta a toda teoria geral de direito penal elementar. (…) Não dá para
querer interpretar o artigo 85 da CF a partir da Lei 8.429/92, que é lei
derivada da Constituição, mas apenas o contrário, o que não leva a conclusão
alguma a respeito do cometimento do crime. Concluo que há no douto parecer
forte carga ideológica que acaba por sacrificar a técnica jurídica”.
Outro
comentarista, que se apresenta como Hélder Braulino, citando jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, indica que “somente os tipos do artigo 10 admitem
civilmente a forma culposa. O crime culposo exige previsão na lei e não pode
ser implícito. A omissão da Lei 1.079/50 vem seguida do advérbio ‘dolosamente’
e a não responsabilização dos subordinados se dá ‘de forma manifesta’ (artigo
9º, incisos 1 e 3). O que se diz por ‘manifesto’ é incompatível com qualquer
das modalidades da culpa (imperícia, negligência ou imprudência). A governanta
não os pune mesmo quando atuam de forma ‘manifesta’. O que vem a significar
‘forma manifesta’ afasta a figura culposa”. Portanto, a omissão citada na Lei
de improbidade “é, mesmo, dolosa”.
José
Carlos Moreira Alves disse que “um processo de impeachment não é o espaço onde
tudo é possível”. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal é citado
pelos três críticos de Ives Gandra.
Postas
as posições de Ives Gandra e de seus críticos, pergunta-se: por que a
presidente Dilma Rousseff moveu morros, serras e montanhas para tentar impedir
a vitória de Eduardo Cunha (PMDB) na disputa pela presidência da Câmara dos
Deputados? Porque, como sugere Ives Gandra, o impeachment, por ser uma decisão
política, começa no Congresso. E, como sabem todos, o vice da petista-chefe é o
jurista Michel Temer, filiado ao PMDB. A história de que o PT arrancou 200
milhões da Petrobrás, e com o ex-tesoureiro do partido sendo conduzido
coercitivamente pela Polícia Federal para depor, pode levar a desdobramentos
graves, como um pedido de impeachment. Por mais que possam existir problemas no
parecer do jurista, a possibilidade de impeachment, por enquanto não cogitada
pela maioria dos congressistas, pode vir a ser discutida de maneira ampla —
dependendo dos próximos fatos. A se aceitar a tese do eterno retorno, a
história às vezes se repete. Fernando Collor caiu, o vice, Itamar Franco,
assumiu e não houve crise institucional de nenhuma natureza.
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