Com
licença de Hayek, podemos dizer que o Decreto 8.243 escancarou as portas para o
caminho da servidão. É preciso ir devagar na sua análise para que aqueles que
não creem em fantasmas, e só os veem quando aparecem com um porrete e um .45
nas mãos, acreditem neles.
O
decreto ampara-se na Constituição: é competência exclusiva do presidente da
República expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução, e dispor,
mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração
federal. O D8243 não é, no rigor constitucional, uma lei. Na prática
administrativa característica dos regimes totalitários, é uma “norma” que, como
toda norma da administração, deve ser cumprida. Não é isso o que acontece com
as instruções normativas que a Receita baixa?
O
problema está quando seus autores abusam dessa prerrogativa, confiantes na
passividade dos ofendidos. O D8243, a pretexto de organizar o funcionamento da
administração, avança sem se deter em quaisquer limites, dividindo o Brasil em
duas grandes massas de indivíduos, uns destinados a participar da administração
e a auxiliar a produzir políticas públicas, outros que devem reger suas
atitudes segundo as normas baixadas pelos novos órgãos da “democracia
participativa e direta”.
A
divisão da sociedade brasileira em dois grandes segmentos está clara no artigo
2.º, que define o que seja a sociedade civil: “Para os fins deste decreto,
considera-se: I – Sociedade civil – o cidadão, os coletivos, os movimentos
sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas
organizações”. Donde se segue que:
–
A administração federal está obrigada, desde o dia 23 de maio, a só permitir a
colaboração de movimentos sociais, sejam institucionalizados, sejam não
institucionalizados. Mas o que se entende por “institucionalizado” não se sabe,
nem se decretou – seguramente não serão as associações civis que têm estatutos
registrados em cartório. Na medida em que os sindicatos, os institutos, as
Ordens (OAB, por exemplo), as associações profissionais, os partidos políticos
(com o perdão de Gramsci), etc., não são organizações de movimentos sociais,
não pertencem aos grupos sociais que podem legalmente assessorar a
administração federal — não pertencem à sociedade dita civil. A menos que
estejam incluídos na palavra “coletivos” — mas ônibus são “coletivos”…
–
A referência a que o “cidadão” está entre os que compõem a “sociedade civil”,
afora ser uma estultice, pois não se compreende “sociedade” sem “indivíduo” nem
“Estado democrático” sem “cidadão”, só encontra explicação caso permita que
particulares “membros da sociedade civil”, indivíduos, possam participar
enquanto tal do “diálogo entre a sociedade civil e o governo para promover a
participação no processo decisório e na gestão de políticas públicas” —
note-se: “participação no processo decisório”. Assim, eles serão representantes
da “sociedade civil” que passam a integrar a administração federal. Há no D8243
evidente abuso da prerrogativa de “dispor, mediante decreto, sobre a organização
e funcionamento da administração federal” na medida em que alguém do governo
escolherá os “cidadãos” e os “movimentos sociais” que decidem sobre políticas
públicas. Quem? Quais? O decreto cuida disso – aliás, cuida de tudo, como se
verá.
O
D8243 reforma toda a administração federal, criando estrutura burocrática como
convém aos que pretendem eternizar-se no poder. Há os “conselhos de políticas
públicas”, que decidem sobre as políticas públicas e sua gestão. Depois, as
“comissões de políticas públicas”, em que a “sociedade civil” e o “governo”
dialogarão sobre “objetivo específico” dado pelo tema determinado para
discussão. Segue-se a “conferência nacional”, para debater, formular e avaliar
“temas específicos de interesse público”.
Note-se
que essa “conferência” não cuida apenas de políticas públicas federais: poderá
“contemplar etapas estaduais, distrital (sic), municipais ou regionais para
propor diretrizes e ações acerca do tema tratado”. Há uma “Ouvidoria”, que
cuidará também dos “elogios às políticas e aos serviços púbicos prestados sob
qualquer forma ou regime…”.
E
há, finalmente, a “mesa de diálogo, mecanismo de debate e negociação com a
participação de setores da sociedade civil (não mais “movimentos sociais”) e do
governo diretamente envolvidos no intuito de prevenir, mediar e solucionar
conflitos sociais”.
Convém
prestar atenção às finalidades das “mesas de diálogo”, que devem “prevenir,
mediar e solucionar conflitos sociais”. A Justiça do Trabalho pode dizer adeus
a uma de suas funções; os conflitos entre índios e proprietários de terra não
irão mais à Justiça, mas passarão pela “mesa” que os resolverá, da mesma
maneira que qualquer outro “conflito social”. Criou-se uma “Justiça” paralela.
Depois
da “mesa” temos o “fórum interconselhos”, que permitirá o “diálogo entre
representantes de conselhos e comissões de políticas públicas… formulando
recomendações para aprimorar sua intersetorialidade e transversalidade”
(arre!). Num arroubo de fato participativo, abre-se “consulta pública” de
“caráter consultivo” a qualquer interessado disposto a se manifestar “por
escrito”…
A
“consulta pública” é, pois, o consolo que se dá aos cidadãos que não pertencem
aos “movimentos sociais” — se souberem escrever! Ao contrário dos participantes
em debates — que são orais — nos conselhos, comissões, conferências, mesas e no
fórum, que não precisam ser alfabetizados…
Pelo
D8243, um secretário-geral se preocupará com dar aparência democrático-formal
às decisões do governo. Eis o primeiro-ministro do governo democrático-participativo.
Ninguém mais conveniente ao cargo que o secretário-geral da Presidência da
República.
*
Oliveiros S. Ferreira é Professor da USP e da PUC-SP, é membro do
gabinete e oficina de livre pensamento estratégico
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