“Vigiar e punir” ou
“participar e defender”? Retrospectiva 2012
Por Márcio Thomaz Bastos
A importância da advocacia
criminal é diretamente proporcional à tendência repressiva do Estado. Nunca o
esforço do advogado criminalista foi tão importante como agora. É o que nos
revela o balanço crítico dos acontecimentos que marcaram a vida do Direito
Penal, neste ano que passou.
Desde que a democracia
suplantou o regime de exceção, em nenhum momento se exigiu tanto das pessoas
que, no cumprimento de um dever de ofício, dão voz ao nosso direito de defesa.
Mas é na firmeza da atuação profissional desses defensores públicos e privados
que a Constituição deposita a esperança de realização do ideal de uma liberdade
efetivamente igual para todos.
Se em 2012 acentuou-se a
tendência de vigiar e punir, o ano que se descortina convida a comunidade
jurídica a participar do debate público e a defender, com redobrada energia, os
fundamentos humanos do Estado de Direito. O advogado criminalista é, antes de
tudo, um cidadão. Agora é convocado a exercer ativamente a sua cidadania para
evitar uma degeneração autoritária de nossas práticas penais, para além da luta
cotidiana no processo judicial.
Não é de hoje que o
direito de defesa vem sendo arrastado pela vaga repressiva que embala a
sociedade brasileira. À sombra da legítima expectativa republicana de
responsabilização, viceja um sentimento de desprezo pelos direitos e garantias
fundamentais. O “slogan” do combate à impunidade a qualquer custo, quando
exaltado pelo clamor de uma opinião popular que não conhece nuances, chega a
agredir até mesmo o legítimo exercício da “liberdade de defender a liberdade”,
função precípua do advogado criminalista.
O papel social dos
advogados, que a Constituição julga indispensável, vem sendo esquecido. Não é
raro vê-los atacados no legítimo exercício de sua profissão. Uns têm a palavra
cassada pela intolerância à divergência inerente à dialética processual. Outros
são ameaçados injustamente de prisão, pela força que não consegue se justificar
pela inteligência das razões jurídicas. Nada disso é estranho à prática da
advocacia.
Ocorre que, em 2012, a
tendência repressiva passou dos limites. Ameaças ao exercício da advocacia
levaram ao extremo a “incompreensão” sobre o seu papel social numa sociedade
democrática. Alguns episódios dos últimos meses desafiaram os mais caros
postulados da defesa criminal. Refletir sobre as águas turbulentas que passaram
é fundamental para orientar a ação jurídica e política que tomará corpo no
caudal do ano que vem - em prol da moderação dos excessos de regulação jurídica
da vida social.
Um desses diabólicos
redemoinhos nos surpreendeu em agosto, com a pretendida supressão do habeas
corpus substitutivo. A Primeira Turma do STF considerou inadequado empregar a
mais nobre ação constitucional em lugar do recurso ordinário. O precedente
repercutiu de imediato nos tribunais inferiores, marcando um perigoso ponto de
inflexão na nossa jurisprudência mais tradicional.
Nenhum dos argumentos
apresentados mostrou-se apto a restringir o alcance desse instrumento
fundamental de proteção da liberdade. Ao contrário, revelaram uma finalidade
pragmática de limpeza de prateleiras dos tribunais. A guinada subordinou a
proteção da liberdade a critérios utilitários, como se conveniências
administrativas pudessem se sobrepor às rigorosas exigências de garantia do
direito fundamental.
O habeas corpus foi
forjado em décadas de experiência na contenção de abusos de poder. A
Constituição indicou que sua aplicação é ampla, abolindo as restrições outrora
impostas pelo regime de exceção. Abriu caminho para que a jurisprudência
reafirmasse a primazia do valor da liberdade.
O posicionamento dominante
na época do regime autocrático, todavia, ressurge nos dias de hoje. Em pleno
vigor da democracia, o retrocesso aparece sob o singelo pretexto de desafogar
tribunais.
Porém, a abolição do
habeas substitutivo dificultará a reparação do constrangimento ilegal. Hoje,
não são poucas as ordens de libertação concedidas pelo Supremo, evidenciando a
grande quantidade de ilegalidades praticadas e não corrigidas. Por isso, a sua
supressão perpetuará inúmeros abusos.
O recurso ordinário,
embora previsto constitucionalmente, não é tão eficaz como o habeas para coibir
o excesso de poder. A começar por suas formalidades, que são muito mais
burocráticas se comparadas às do remédio constitucional. Convém não esquecer
que a utilização deste como via alternativa para reparação urgente de situações
excepcionais foi fruto de uma necessidade do cidadão, ao contrário da sua pretendida
eliminação.
A recente modificação da
Lei de Lavagem de Dinheiro também abriu um novo flanco para os abusos. O texto
impreciso expõe o legítimo exercício profissional a interpretações excessivas.
Por trás da séria discussão sobre os deveres profissionais na prevenção da
lavagem de dinheiro, esconde-se muitas vezes a vontade de arranhar o direito de
defesa dos acusados.
Há quem acuse o advogado
de cometer um ilícito, quando aceita honorários de alguém que responde a
processo por suposto enriquecimento criminoso. O claro intuito desse arbítrio é
evitar que os réus escolham livremente seus advogados. Restringe-se a amplitude
da defesa atacando os profissionais que, “por presunção de culpabilidade”,
recebem “honorários maculados”, mesmo que prestem serviços públicos e efetivos.
Em afronta à própria
essência da advocacia e em violação ao sigilo profissional e à presunção de
inocência, acaba-se criando uma verdadeira sociedade de lobos, na qual todos
desconfiam de todos. Para alguns, o advogado deveria julgar e condenar seus
próprios clientes. Diante de qualquer atividade “suspeita”, deveria delatá-los,
sob pena de participar ele mesmo do crime de lavagem de dinheiro supostamente
praticado por quem procurou o seu indispensável auxílio profissional.
Convém lembrar que o
advogado atende e defende com lealdade quem lhe confia a responsabilidade de
funcionar como o porta-voz de seu legítimo interesse. Não deve emitir, ou mesmo
considerar, sua própria opinião sobre a conduta examinada, mantendo um
distanciamento crítico em relação ao relato que lhe é apresentado.
Atentos à criminalidade
que se sofistica para dar aparência de licitude a recursos obtidos de forma
criminosa, nunca fomos contrários à discussão sobre ajustes nos deveres
profissionais de algumas atividades reguladas. Contudo, a nova situação não
pode servir de desculpa para proliferação de um dever geral de delação ou para
devassar conteúdos legitimamente protegidos pelo sigilo profissional.
A advocacia criminal
pauta-se pela confiança que o cliente deposita no seu defensor, colocando em
suas mãos o bem que lhe é mais caro: sua própria liberdade.
Outro desafio
contemporâneo à advocacia é a confusão entre o advogado e seu cliente. O
preconceito é tão antigo quanto a nossa profissão. O que muda é o grau de consciência
social que uma determinada época tem a respeito do valor do devido processo
legal. No início do ano, ao defender um de meus clientes, sofri essa odiosa
discriminação.
Na ditadura, os defensores
da liberdade corríamos riscos e perigos pessoais ao questionar o valor jurídico
dos atos de exceção. Na vigência do regime democrático, o pensamento
autoritário encontrou na velha confusão entre advogado e cliente um meio de
suprimir a liberdade com a qual ainda não se acostumou a conviver. A ignorância
e a má-fé sugerem que ou o advogado defende um réu inocente ou ele é cúmplice
do suposto criminoso.
Nada mais impróprio. A
culpa só pode ser firmada depois do devido processo legal. Nunca antes. É um
retrocesso colocar em questão esse dogma do Direito conquistado pela
modernidade. Enquanto a confusão persistir, devemos repetir sem descanso que o
advogado fala ao lado e em nome do réu num processo penal, zelando para que
seja tratado como um ser humano digno de seus direitos constitucionais.
A Reforma do Código Penal
também é sintomática dessa tendência repressiva. Elaborada por notáveis
juristas e enviada em junho para o Congresso, importa conceitos do direito
estrangeiro, sem a necessária adaptação à nossa realidade jurídica. Outros
institutos essenciais, como o livramento condicional, são suprimidos. Além
disso, eleva as penas corporais para diversos delitos e deixa passar a
oportunidade de corrigir falhas técnicas já de todos conhecidas.
Outro sinal dos tempos é a
inovação da jurisprudência superior na interpretação de alguns tipos penais,
bem como a mudança de postulados do Processo Penal. Assistimos a um retrocesso
de décadas de sedimentação de um Direito Penal mais atento aos direitos e
garantias individuais. Quando se trata de protegê-los, não pode haver hesitações.
Rompidos os tradicionais diques de contenção, remanesce o problema de como
prevenir o abuso do “guarda da esquina”, como diria um velho político mineiro,
às voltas com histórico desvio de rota na direção da repressão sem freios.
Também notamos uma
tendência a tornar relativo o valor da prova necessária à condenação criminal,
neste ano “bastante atípico”. Quando juízes se deixam influenciar pela
“presunção de culpabilidade”, são tentados a aceitar apenas “indícios”, no
lugar de prova concreta produzida sob contraditório. Como se coubesse à defesa
provar a inocência do réu! A disciplina da persecução penal não pode ser
colonizada por uma lógica estranha, simplesmente para facilitar condenações,
nesse momento de reforço da autoridade estatal, sem contrapartida no
aperfeiçoamento dos mecanismos que controlam o seu abuso.
A tendência à inversão do
ônus da prova no processo penal também coloca em questão a tradicional ideia do
“in dubio pro reo”, diante da proliferação de “presunções objetivas de
autoria”. Tampouco a dosimetria da pena pode ser uma “conta de chegada”.
Quanto mais excepcionais
os meios, menos legítimos os fins alcançados pela persecução inspirada pelo
ideal jacobino da “salvação nacional”. Tempos modernos são esses em que nós
vivemos. Em vez de apontar para o futuro, retrocedem nas conquistas
civilizatórias do Estado Democrático de Direito.
Nesses momentos
tormentosos, é saudável revisitar os cânones da nossa profissão. Como ensinava
Rui Barbosa, se o réu tiver uma migalha de direito, o advogado tem o dever
profissional de buscá-la. Independentemente do seu juízo pessoal ou da opinião
publicada, e com abertura e tolerância para quem o consulta. Sobretudo nas
causas impopulares, quando o escritório de advocacia é o último recesso da
presunção de inocência.
É necessário reafirmar os
princípios que norteiam o Direito Penal e lembrar, sempre que possível, que a
liberdade do advogado é condição necessária da defesa da liberdade em geral. A
advocacia criminal, desafiada pela ânsia repressiva, deve responder com
firmeza. Alguns meios de resgatar o papel que cumpre na efetivação da justiça
estão ao alcance da sua própria mão.
O primeiro passo deve ser
investir num esforço pedagógico de esclarecimento social acerca da relevância
do papel constitucional do advogado criminalista. Ele não luta pela impunidade.
Também desejamos, enquanto membros da sociedade, a evolução das instituições
que tornam possível uma boa vida em comum. Somos defensores de direitos
fundamentais do ser humano, em uma de suas mais sensíveis dimensões
existenciais: a liberdade de dar a si mesmo a sua regra de conduta.
Cabe a nós zelar pelas
garantias dos acusados e pela observância dos princípios básicos do Direito
Penal do Estado Democrático de Direito, contra as tentações do regime
excepcional que não deve ser aplicado nem mesmo aos “inimigos na nação”.
É nosso dever de ofício
acompanhar a repercussão do julgamento que pretendeu abolir o habeas corpus
substitutivo, manifestando-nos sempre que possível para demonstrar os prejuízos
desse regresso pretoriano. A fim de restabelecer o prestígio da ação
constitucional, também se faz necessária a continuidade de seu manejo perante
todos os tribunais.
Especificamente com
relação às distorções que uma interpretação canhestra da nova lei de Lavagem de
Dinheiro pode instituir, é importante registrar que a imposição do “dever de
comunicar” não pode transformar os advogados em delatores a serviço da
ineficiência dos meios estatais de repressão. É contrário à dignidade
profissional ver no advogado um vulgar alcaguete.
É evidente que essa
condição não torna a advocacia um porto seguro para práticas de lavagem de
dinheiro, nem assegura a impunidade profissional. Apenas permite o livre
exercício de uma profissão essencial à Justiça.
Deve ser louvada a recente
decisão do Conselho Federal da OAB, segundo a qual “os advogados e as
sociedades de advocacia não têm o dever de divulgar dados sigilosos de seus
clientes que lhe foram entregues no exercício profissional”. Tais imposições
colidem com normas que protegem o sigilo profissional, quando utilizado como
instrumento legítimo indispensável à realização do direito de defesa.
Ainda assim se faz
necessário o constante aprimoramento das regras éticas de conduta profissional.
Em paralelo, sugere-se a formulação de códigos internos aos próprios
escritórios de advocacia, com orientações, ainda que provisórias, acerca dessas
boas práticas, no intuito de resguardar os advogados que se vêm diante da
indeterminada abrangência da nova lei repressiva.
Esses “manuais de boas
práticas” devem ser elaborados com vistas também a regulamentar uma nova
advocacia criminal que hoje se apresenta. A consultoria vem ganhando espaço
cada vez maior na área penal, em razão do recrudescimento das leis penais, seja
pela proliferação de regras de compliance que regulam a atividade econômica.
Para que haja segurança também na prestação desse serviço, é imprescindível uma
regulamentação específica.
“Participar e defender”,
em 2013, é a melhor maneira de responder aos desafios lançados pelo espírito
vigilante e punitivo exacerbado no ano que passou. É renovar, como projeto, a
aposta na democracia e na emancipação, contra as pretensões mal dissimuladas de
regulação autoritária da vida social.
A repressão pura e simples
não é suficiente para dar conta do problema da criminalidade. Embora a efetiva
aplicação da lei ajude a aplacar o sentimento de insegurança, o Direito Penal
não deve ser a principal política pública.
Outras linhas de atuação
política devem ser prestigiadas. Pode-se pensar no controle social sobre o
Estado, por meio do aprofundamento das políticas de transparência. Elas
ganharam novo impulso com a promulgação de uma boa Lei de Acesso à Informação,
que está longe de realizar todas as suas potencialidades de transformação
criativa.
A prestação de contas de
campanha em tempo real foi um avanço inegável. Uma medida discreta, mas eficaz,
entre outras que podem ajudar a prevenir o espetáculo do julgamento penal.
Deve-se mencionar também a
necessidade mais premente e inadiável de nossa democracia: a reforma política,
com ênfase no financiamento público das campanhas eleitorais.
Enquanto o habeas ainda
resiste, não podemos deixar de aperfeiçoar mecanismos de controle de abusos de
autoridade. A esfera da privacidade e da intimidade das pessoas também carece
de maior proteção jurídica.
Nossos servidores públicos
ainda esperam um sistema de incentivos na carreira que recompense o maior
esforço em favor dos interesses dos cidadãos.
A simplificação de
procedimentos administrativos e tributários, ao diminuir as brechas de poder
autocrático, pode desarrumar os lugares propícios à ocorrência da corrupção que
nelas se infiltra.
É legítimo travar com a
sociedade um debate aberto sobre os meios para a plena realização do pluralismo
de ideias e opiniões.
Enfim, a educação para a
cidadania, numa democracia segura dos valores da cultura republicana, é tema
que deve ocupar mais espaço na agenda política de um país que não quer viver
apenas sob a peia da lei punitiva.
Na encruzilhada em que se
encontra o Direito Penal brasileiro, os desafios lançados pelo ano que passou
só tornam mais estimulante a nobre aventura da advocacia criminal. A
participação democrática e a defesa dos direitos humanos continuam apontando a
melhor direção a seguir. As dificuldades de 2012 só enaltecem a
responsabilidade do advogado, renovando suas energias para enfrentar as lutas
que estão por vir.
Como anotou um prisioneiro
ilustre, a inteligência até pode ser pessimista, mas continuamos otimistas na
vontade de viver um ano mais compassivo.
Revista Consultor
Jurídico
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