A
vitória de Trump abala projeto neoliberal, mas leva ao poder direita
autoritária.
Quem
lutará, agora, por justiça, igualdade e soberania popular?
O artigo é de Christophe Ventura, cientista político e integrante da
rede internacional Memoir des Luttes (Medelu), publicado por Outras
Palavras, 21-11-2016. A tradução é de Inês Castilho.
Confira também:
Eis o artigo.
A eleição de Donald Trump – cuja primeira explicação é a rejeição, no
seio das classes populares, de Hillary Clinton, a encarnação do pior
conluio entre dinheiro e política – confirma o “momento populista” mundial.
O que se percebe por trás desse “momento” intensamente político?
O deslocamento de nossas democracias. Em direção a quê? A regimes tipo
“autoritários identitários”, se a esquerda não trabalhar, pelo menos nas lutas
que a caracterizam, em favor de uma “radicalização da democracia”, que esteja a
serviço de três ideias: soberania, igualdade e justiça. Três marcadores
progressivamente abandonados pela esquerda realmente existente, em especial
nos Estados Unidos e na Europa.
Populismo
de direita: “entre nós, e todos contra nós”
Não
há esperança, mas uma nova gestão social e política do desespero. Esta é, no
fundo, a magia obscura proposta pelo populismo de direita. Compreendamos
que o sujeito político chamado Donald Trump cristaliza e condensa a
energia incandescente e negativa de numerosas cóleras populares – especialmente
a das categorias socioeconômicas devastadas pelos efeitos do livre mercado e da
desregulação financeira durante o ciclo Reagean-Bush-Clinton-Obama/Hillary.
Bruto, revoltado e violento, o levante Trump ocorre quando as
populações dominadas e abandonadas à tirania dos donos do mundo não veem
alternativas a sua condição.
Elas
assumem, em resposta, uma relação de desconfiança legítima, não somente diante
da representação política, mas do próprio sistema político. Donald Trump é
o produto negativo de suas exigências democráticas e sociais desprezadas e
massacradas por muito tempo, especialmente pelos partidos – os democratas,
neste caso – que supostamente as representariam. Essas populações encontraram,
na falta de uma esperança, o meio passageiro de assustar o sistema
introduzindo, no coração de seu quartel-general, uma granada de mão pronta para
ser detonada. E isso, por meio dos próprios mecanismos eleitorais desse sistema
que permite que se possa tornar presidente sem haver ganho a maioria dos votos.
Donald Trump é um objeto político sofisticado e bem sucedido. Ele conseguiu
incendiar as paixões populares, construir um “povo” no meio da população, isto
é, uma nova aliança sociopolítica formada além das filiações partidárias
tradicionais, que funcionavam até então em favor do equilíbrio de uma ordem
política e social com a qual a maioria da sociedade ainda consentia.
A vitória de Donald Trump indica a ruptura desses equilíbrios e uma
recomposição. O populismo – ainda que de direita – indica e encarna uma
transição entre um desequilíbrio e um novo equilíbrio, uma nova ordem da
sociedade. O alcance e a natureza do que se desenhará no decorrer desse
processo depende das orientações desse populismo, de sua capacidade de mudar a
economia, manter a coesão de seus apoiadores, produzir instituições que
acabarão por superar e mudar as relações de força na sociedade.
No caso de Donald Trump, a aliança forjada encontrou seu cimento
eleitoral no ressentimento contra todas as elites – especialmente a esquerda
intelectual empoleirada em seu conforto universitário e midiático – e uma
classe política “Coca-Cola – Pepsi-Cola” que pratica as mesmas políticas e
defende os mesmos interesses. Uma classe política incapaz de resolver os
problemas concretos das pessoas, pela simples e boa razão de que esses
problemas não podem ser solucionados aceitando o quadro e as estruturas
da globalização econômica e financeira – especialmente o livre mercado,
que desindustrializa os países do Norte, proletariza os do Sul, devasta o
ambiente e oferece liberdade sem restrições ao capital e às finanças. Tudo isso
impossibilita qualquer controle democrático do poder econômico e mina toda
possibilidade de políticas de redistribuição social.
Brexit, fracasso dos acordos comerciais, vitória de Trump: as revoltas
cegas [orig. “jacqueries”] contra a globalização e seus poderes mundiais e
nacionais propagam-se e se sistematizam. As sociedades gritam, de modo cada vez
mais violento, “não” à globalização, território econômico e financeiro sem
equivalente político e democrático possível.
Donald Trump foi quem – cúmulo da ironia – colocou no coração da campanha
(assim como Bernie Sanders) as questões econômicas e sociais e
conseguiu encarnar a vontade de um poder público que volte a controlar a
economia – posição oposta ao consenso entre os dois partidos de governo.
Trump venceu
sobre as cinzas do “establishment” de seus próprio campo e dos anos Obama,
que desembocaram em promessas não mantidas – especialmente junto às classes
populares –, guerras intermináveis, agravamento das desigualdades sociais e
pauperização crescente de dezenas de milhões de pessoas nos Estados
Unidos.
Trump não
é, ele próprio, um ganhador da mundialização? Sem dúvida alguma. Mas ganhou as
eleições afirmando que, no seio do reino em perigo, desafiava a política do rei
e de seus principais vassalos. Afirma que é preciso ajustar as leis
fundamentais da globalização aos interesses de seu país – separado aqui do
“business” americano – mal conduzidos desde 2008 (e desde o início dos anos
2000, com o crescente poder da China e de outros novos atores
mundiais). Como?
Refreando
o ritmo e o avanço da globalização financeira e econômica – para não mais
sofrer suas consequências e desordens. Posicionando os Estados Unidos, a
tempo, no coração da competitividade fiscal mundial (reduzir os impostos das
empresas para atrai-las e fixá-las no país). Criando as condições para um novo
ciclo geopolítico de retirada e reequilíbrio estratégico.
Deste
ponto de vista, há forte ressonância com as orientações lançadas pelos
discursos da nova primeira ministra britânica Theresa May. Trinta e
cinco anos depois de RonaldReagan e Margaret Thatcher, um
novo pulso anglo-saxão de dimensão mundial parece estar sendo preparado. Desta
vez, visa conduzir a globalização a um rumo cujos marcos são perceptíveis.
Maior controle estatal sobre o poder financeiro e bancário. Criação de
mastodontes capitalistas em todos os setores estratégicos da economia e das
indústrias por meio da multiplicação de processos de fusão/aquisição.
Protecionismo (em plano nacional mas igualmente no quadro dos clubes de
afinidades do país diante dos outros). Fechamento das fronteiras nacionais para
gerir os fluxos migratórios mundiais. Em outras palavras, uma
reorganização da sociedade – não um recuo, mas uma reorganização – para
reposicionar os Estados Unidos (e o aliado britânico) aos postos
avançados da concorrência capitalista mundial… que coloca o mundo inteiro
contra a parede.
Se
confirmado, esse projeto beneficiaria os eleitores de Trump? Ou os que,
na França e em outros países europeus, votam ou são tentados a votar
nos candidatos populistas de direita? Não, porque o novo presidente americano –
ou Marine Le Pen na França – não têm como projeto a emancipação do “povo”
que eles criam e mobilizam. O que pretendem é estabelecer controles e promessas
de um alívio cosmético, obtido graças à repressão interna de outras partes da
população (especialmente os imigrantes).
Seu
projeto é, ao fim das contas, a radicalização do sistema que eles pretendem
desafiar. As forças “populistas” de direita – a Frente Nacional
francesa, de Marine Le Pen, oferece a matriz mais avançada da Europa –
conseguiram reconstruir um povo mobilizando um discurso do tipo “eles querem o
pouco que temos; eles não vão ficar”. Esse discurso procura, com sucesso,
mobilizar alguns setores da sociedade contra outros (notadamente os imigrantes
e os pobres) em período de escassez de trabalho e de recursos do Estado para financiar
o sistema social — porque esses Estados tornaram-se prisioneiros de seu
endividamento nos mercados financeiros, de suas escolhas fiscais e de suas
políticas de austeridade.
Redistribuir
a riqueza e conceder benefícios sociais, sim, mas em pequenas quantidades e
para os nacionais. Como? Reposicionando o país a seu favor na competição
internacional. Mantendo a exploração econômica dos trabalhadores que vivem ali
(mas praticada por um patronato nacional revitalizado). Reduzindo os direitos
dos grupos mais desprotegidos da população (estrangeiros, pobres, mulheres
etc). Eis, em resumo, o projeto de sociedade proposto por cada um dos “populismos”
de direita.
De
qualquer modo, cada um entre si todos contra todos. Agindo assim, o populismo
de direita elabora um discurso mobilizador da defesa das identidades
tradicionais (a cristandade, a região, a comunidade étnica etc.) — que ele
ajuda a manter – para unificar os setores aos quais ele se dirige contra a
“elitocracia”.
Esse projeto é vão, pois não modifica as causas das dificuldades das populações
e contribui com a sobrevivência de um sistema em perigo que, in fine, recorre
aos populistas de direita para que sejam mais um dos tantos
corta-fogos que o defendem – especialmente diante dos riscos de desordem social.
Hoje os migrantes, os estrangeiros instalados. Amanhã as mulheres, os
sindicatos, as associações. Cada um de nós monitorado por sua tela, seu
telefone, seu computador.
De
qualquer forma, o triunfo de Donald Trump nos Estados Unidos não
deixa de ser um novo golpe contra a esquerda em todo o mundo. Tragicamente, o
magnata novaiorquino toca exatamente em seu oposto: justiça, igualdade e
soberania não são possíveis nos limites da globalização financeira e
econômica. Todos os meios que permitiram à esquerda, antes da globalização,
lutar por seus objetivos no quadro de um capitalismo industrial submetido a
controle nacional estão ultrapassados, no cenário de um capitalismo altamente
financeirizado e pós-industrial.
Populismo
de esquerda: (re)construir um “povo pela emancipação”
Que
políticas a esquerda atual propõe para enfrentar a despossessão
global das sociedades? Por meio de que estratégias e mediações ela concebe
reconstruir seu “povo” – ou seja, uma nova aliança formada a partir de sujeitos
políticos e sociais heterogêneos e com múltiplas aspirações? Estas questões
constituem desafios e concentram diversas dificuldades.
Mas
é preciso ter em mente que a energia da cólera captada pelos populista de
direita é líquida. Ela pode produzir outros efeitos. Outro “populismo” e outras
identidades coletivas são possíveis Abandonar o medo imposto por aqueles que
determinam as regras do jogo e ditam os termos da batalha intelectual permite
enxergar que a noção de “populismo” é, antes de tudo, expressão de uma nova
disponibilidade para a política. O “populismo” não é, em si, nem de esquerda,
nem de direita; nem reacionário, nem progressista. Ele torna-se uma coisa ou
outra, ao redefinir e reorganizar as fronteiras e as clivagens políticas
anteriores, apagadas (élimés) e desviadas (dévoyés) pelo consenso e a prática
dos partidos instalados no centro do dispositivo de poder.
Para
citar a frase famosa do geógrafo anarquista Elisée Reclus (1830-1905)
– “o homem é a natureza que toma consciência de si mesma” –, poderíamos afirmar
que “o populismo é a política (re)tomando consciência de si mesma”. O
“populismo” traduz um estado de tensão na organização da sociedade. É expressão
dos “murmúrios” das populações subalternas. Revela uma situação de difusão
(diffusion”) em toda a extensão da sociedade, de descontentamento diante do
bloqueio dos canais tradicionais por onde transitavam normalmente das demandas
e exigências lançadas às instituições (partidos, imprensa, sindicatos, empresas
etc).
O
“populismo” não é um projeto político em si e não pode sê-lo. É um processo de
mobilização por meio do qual se reconstroem, na ordem política, uma cidadania
de intervenção refratária ao mundo como ele é e uma estratégia de conquista do
poder.
É
por esta razão que cabe à “esquerda” a responsabilidade de não renunciar à
construção de um povo pela emancipação, e de fecundar com suas melhores
tradições o “populismo” que está em formação.
Nesse
processo, a defesa e promoção da soberania popular será o núcleo de uma batalha
singular. Tal ideia de soberania foi literalmente desvertebrada devido ao fato
de que a maior parte das questões econômicas e monetárias que determinam a vida
concreta e quotidiana dos indivíduos é tratada for a do campo da deliberação
coletiva.
No
quadro da economia globalizada, defender a soberania popular pode
servir a dois projetos antagônicos. A serviço das forças da ordem estabelecida
– e de seu cão de guarda de extrema direita – esta defesa constitui
uma técnica de desumanização da sociedade, para favorecer a eclosão de um
projeto autoritário que estimulará múltiplas competições no interior dos povos.
Significará dividi-los e discipliná-los, num cenário de luta global contra as
outras “unidades-países” do sistema.
Mas
esta mesma ideia de soberania popular pode tornar-se chave para a humanização
da sociedade, da economia e do mundo. Para isso, é preciso um projeto e um
discurso voltados à construção política de um país melhor – e não à mera
administração daquele em que vivemos sob as lógicas atuais. Para isso, é
preciso retomar os princípios de justiça social e de inclusão dos setores hoje
subalternos, por meio de políticas que promovam a redistribuição efetiva de
riquezas.
Relocalizar
a economia na esfera da soberania política, a serviço da justiça e da distribuição
de riquezas é o mapa do caminho para um “populismo” de esquerda. A
perspectiva de um populismo de esquerda induz a construção de um discurso capaz
de unir vários setores em torno dos paradigmas do comum, da justiça e da
redistribuição como motores de prosperidade coletiva e individual. A estes
paradigmas deve se remeter uma estratégia de ações pacientes, capaz de
articular a esquerda politica, social e intelectual em torno das demandas
múltiplas e específicas que partem da sociedade.
Trata-se
da agir a favor do desenvolvimento de solidariedades concretas com as
populações e de pensar, a partir daí, as mediações (daí o papel da liderança) e
os instrumentos que permitam aumentar os níveis de organização popular, tendo
em vista a (re)construção progressiva do povo da emancipação.
O
povo é uma aliança. Cabe a nós construí-la.