Por Dag Vulpi
São muitas as
estórias inusitadas que acontecem no entorno dessa "laranja". Eu
mesmo conheço um monte delas, presenciei algumas, e essa que narrarei tive o
“privilegio” de vivencia-la.
Pois bem, lá
pelos idos dos anos 80 estive em Mutum – MG, e vivi um causo bastante singular.
Estávamos lá de férias, eu e mais dois amigos, o Augusto (Gutim) que trabalhava
na antiga CESAN, e o José Rubner (Zérrubi), este ultimo trabalhava comigo no
extinto Banco Nacional e é natural daquela cidade.
Aproveitamos
ao máximo nossa estadia na pacata e prazerosa Mutum daquela época. Foram
muitas, e normais para a época nossas aventuras. Nossa solteirice e a tenra
idade nos permitiam situações inimagináveis nos dias de hoje. Entre os passeios
a cavalo, ver o trabalho dos destemidos domadores de burros chucros,
assistirmos empolgados os acasalamentos dos alazões com aquelas pobres éguas,
aprender a preparar os cigarros de palha, sim fomos pegos de surpresa, lá não
eram comercializados cigarros de maços naquela época, e para sustentar nosso
vício precisamos aprender a lidar com aquela novidade. À noite era a vez das
jogatinas de cartas, realizadas no único boteco da cidade naquela época. As
mineirinhas sabendo que havia rapazes de fora na “cidade” caprichavam no visual
e desfilavam na pracinha, nós ficávamos de olhos espichados fazendo a seleção,
mas era difícil tirar uma “casquinha”, os rapazes, ao contrário das moças, não
estavam muito satisfeito com a nossa presença.
Mas vamos ao
que realmente interessa. Era um sábado e o Zérrubi sugeriu uma pescaria, eu
topei de pronto e o Gutin também acabou considerando uma boa ideia. O Zé por
ser de lá, conhecia bem o riacho, e a pessoa certa para nos acompanhar na
aventura. Perto dali morava o senhor que iria nos orientar na pescaria,
tratava-se do maior “figura” da região, sua graça era Genésio.
Ele era
baixote, da pele curada pelo sol, como a maioria dos moradores de lá, mas tinha
um diferencial, era um desses matutos de personalidade original, sem esforços,
e com muita naturalidade não havia um único evento com sua participação que
algo peculiar e digno de ser registrado não ocorresse. De saída já tínhamos uma
certeza: nossa aventura renderia, talvez nem tantos peixes, mas estória pra
contar, e estávamos certos, rendeu.
Genésio foi
logo dando as coordenadas, de fala pausada e quase inaudível ele foi logo
dizendo que, por ser sábado, mandava a regra que a pescaria daquele dia deveria
ser de peneira. O Gutin e o Zérrubi aprovaram a ideia de pronto, eu
tentei argumentar que uma pesca com anzóis seria mais emocionante, mas logo
mudei de ideia, bastou o Genésio me inquirir: Cêjá pescoqui gumavez? Ele falou
tão baixo e tão rápido que mudei de opinião no ato, e fui logo pegando uma
peneira, e ele já sapecou outra: pégoutra quesseminha! Não tive dúvidas,
aquele era ‘o cara’.
Ficamos
parados olhando para baixo (ele era baixo lembram?) quase ouvindo, e não
entendendo nada de suas instruções murmuradas. Felizmente o Zé por também ser
mineiro, entendia tudo que o mestre Genésio falava, e ia traduzindo para que eu
e o Gutin não cometêssemos mais erros, eu então era o menos ousado, pensei até
em inventar alguma desculpa para ficar do lado de fora, carregando o bornal com
os pescados. Mas o senhor Genésio já havia pensado em tudo, e uma das suas
regras era: “Quem sai para pescar tem que se molhar” (O Zérrubi traduziu a
frase pra mim!).
Entramos todos
os quatro no rio, a água estava gelada, Genésio olhou pra cima e nos fitando,
deixou à mostra seus dentes, nunca me esqueci daquele sorriso, eram no máximo
quatro dentes, distribuídos de forma irregular entre a parte superior e
inferior, aqueles quatro nunca se encontrariam. Quase soltei uma gargalhada,
mas felizmente segurei mordendo a língua, Gutim não teve a mesma “sorte” e
disparou a risota. Genésio já sem o sorriso no rosto, e não entendendo o motivo
da galhofa falou: Guafriané? É simmes Gunsmija gunsrri, Que segundo o nosso
tradutor Zérrubi, o Genésio falou: Água fria né? É assim mesmo, Alguns mijam e
alguns riem.
Depois dessa
iniciamos a pescaria, Genésio sabiamente levava amarrado ao pescoço uma sacola
plástica e em seu interior tinha um punhado de palha de milho previamente
selecionadas e cortadas, um isqueiro daqueles com pavio e um punhado de
fumo de rolo desfiado, o matuto era prevenido, e sabia que caso molhasse o
isqueiro e o fumo, ficaria privado de um dos seus maiores prazeres, o de fumar
um belo picão de paia.
Seguíamos
riacho abaixo com as águas até os joelhos, e a cada vez que levantávamos as
peneiras aumentava a nossa decepção, nada de peixes. Num certo momento chegamos
num ponto onde o rio avolumava-se, tanto na sua largura quanto na profundidade,
e foi onde pegamos nossos dois primeiros pescados. Genésio falou algo
indecifrável para dois capixabas como eu e o Gutim, mas o Zérrubi entendeu e
traduziu para nós a seguinte: O Genésio sempre soube que só nesse ponto do rio
é possível pegar peixe com peneiras, de lá onde entramos há meia hora até aqui,
foi para praticarmos. Olhamos na direção dele que já estava fora do rio,
preparando o quarto cigarro, era incrível, ele fumava o tempo todo, e mesmo
dentro do rio com a água na altura do umbigo ele preparava seus cigarros de
palha com a maior desenvoltura. Sinceramente fiquei um pouco chateado, em ter
que sair d’água justo onde os peixes começaram a dar o ar graça, mas pensei
melhor, e percebi que não havia maldade no ocorrido, afinal ele também penou
rio abaixo, e com uma proporção do corpo bem maior que a nossa submersa na
água.
Saímos d’água
conforme as instruções do matuto, e logo na margem do rio havia um enorme pé de
manga, com frutos maduros. Degustamos alguns, dividimos entre nós três um
cigarro que o matuto havia gentilmente preparado e nos presenteado, e entre
tossidos e risos “matamos” o cigarro e aguardamos as ordens para voltar à
pescaria, que, aliás, era nosso objetivo maior, e até então só havíamos pescado
dois peixes.
Finalmente ele
deu a ordem e nós não hesitamos, pulamos na água e começamos a passar as
peneiras, e os peixes vinham aos montes, em algumas oportunidades pegávamos até
quatro de uma única vez. Nossa empolgação fez passar despercebido o fato de
estarmos com água na altura dos ombros, e sendo o Genésio um quase anão,
certamente ali não seria lugar pra ele. Tarde demais, o que vimos foi uma
peneira boiando na correnteza do rio, e algo parecido com uma mão segurando algo
sobre a superfície da água. Largamos as peneiras, felizmente os peixes estavam
dentro do bornal preso ao meu corpo, senão seria perda total. O Zé alcançou a
mão e puxou o restante do corpo já quase sem vida do matuto. Levamo-lo para a
margem do rio, e entramos em desespero, pois parecia ter sido aquela a ultima
aventura do ícone local. Como haveríamos de levar a noticia, afinal, todos da
cidade tinham enorme afeição e consideração por ele. Posto de ponta a cabeça
parecia que a água do rio estava toda dentro dele, tamanha era a quantidade de
água que ele havia ingerido e agora escoava para fora de sua boca, em alguns
momentos eu enxerguei até peixes escoando junto à água. Quando parou de sair
água do seu bucho, nós o deitamos, de repente ele levantou a cabeça, balbuciou
alguma coisa, abriu a tal mão que servira de referencia para que nós o
localizássemos dentro d’água, e sorriu. Ali, na palma de sua mão estava o
motivo de sua quase morte por afogamento, olhamos de perto e vimos o isqueiro,
algumas lasquinhas de fumo e um corte de palha de espiga de milho, que seria o
ultimo cigarro antes de voltarmos da pescaria. Ele contou, e o Zé interpretou
para que pudéssemos entender que ele sabia nadar muito bem, era o melhor
nadador da região, atravessava o rio doce, que é o maior do estado com uma
única mão, na outra ele levava, quando não uma melancia, uma jaca, mas ele
jamais largaria aquilo que mais te fazia feliz.
Ainda
preocupados ficamos mais um tempo ali sentados, não demorou e, calmamente ele
pegou a palha de milho, jogou as lascas de fumo uma a uma lá dentro, enrolou
pacientemente o cigarro, passou a língua de um lado para o outro, prendeu o
cigarro entre os lábios, pegou o isqueiro e, antes de tentar acende-lo olhou
para o alto, como se pedisse algo, e então passou as digitais do dedão sobre o
isqueiro e a chama brotou do pavio, ele deu outro sorriso, olhou para nós três,
acendeu o cigarro, e deu uma bela baforada deliciando-se com a fumaça que saia
de suas entranhas. Piscou um dos amarelados olhos e com a ajuda do nosso
interprete em mineres falou. Se existir alguma coisa, qualquer coisa em suas
vidas que os façam felizes, lutem para não perde-la, eu já tive muitas coisas
nessa longa vida que trazia felicidade, e fui perdendo-as uma a uma sem
dar-lhes o devido merecimento, e hoje como vocês perceberam eu quase dei minha
vida para salvar não a palha de milho ou o fumo, pois esses são fáceis de
conseguir, mas para não perder o único presente que o meu querido pai pode me
dar, esse isqueiro, que pode parecer um insignificante objeto para
muitos, mas que para mim é o único bem de real valor que ainda tenho
nessa vida.