segunda-feira, 9 de março de 2015

Curió e a indústria que impede sua extinção

O comércio de aves silvestres movimenta R$ 2,7 bilhões por ano no Brasil. Nessa fauna, as celebridades são os pássaros cantores. Os melhores intérpretes custam R$ 200 mil 

Por Carlos Rydlewski

Ilustração: Meire de Oliveira 
 
Chegou a vez do Universo. Embora jovem e um tanto imaturo, ele não demonstra medo ou timidez. Ao contrário. Estufa o peito e preenche o ar com uma voz cristalina e melodiosa. À medida que a apresentação avança, aumenta o silêncio em torno do palco. A plateia aguça os sentidos e experimenta um transe momentâneo. Ela identifica na execução do canto um tipo raro de esmero, também chamado de talento. Ao final da última nota, segue-se o estrondo. O público irrompe em aplausos e alguns urros (houve até lágrimas). Ninguém duvida. Surgiu o campeão.

Universo é um Pavarotti de penas. Um passarinho cujos dotes musicais superam as qualidades artísticas observadas em seus pares. Cientificamente, pertence ao grupo dos Oryzoborus angolensis, conhecidos como curiós (ou avinhados, em algumas regiões do Brasil). Trata-se de uma ave típica da América do Sul. A espécie, com aparência frágil e pouco mais de 10 centímetros de comprimento, canta. Não só o que a genética manda. Ela aprende a cantar melodias complexas.

Os curiós reproduzem uma sequência com 28 notas. Elas são divididas em uma introdução (12 notas) e um módulo de repetição (as 16 restantes). As frases desse trecho final podem ser reproduzidas dezenas e dezenas de vezes. O limite está no fôlego ou na disposição do artista. O mais surpreendente: a partitura que os pássaros executam não é obra da natureza. Ela foi criada pelo homem. Os bichinhos a interpretam. E essa habilidade de executar uma música, idealizada por um ser estranho ao ninho, enlouquece multidões.

Centenas de concursos de curiós cantores ocorrem em todo o país entre os meses de agosto e dezembro. Nesse período, uma primavera estendida, dá-se o auge da temporada lírica dos pássaros. É a época do acasalamento, quando dispara o nível de testosterona (o hormônio sexual) nos machos. Eles soltam o gogó para seduzir as fêmeas e demarcar território perante os rivais. Universo foi o vencedor de um torneio desse tipo, em setembro, na cidade de Bauru, no interior paulista.

As entidades que organizam as competições estimam que a criação de aves nativas (de papagaio a tico-tico) movimente R$ 2,7 bilhões por ano no Brasil. Pelo menos 70% desse montante tem como origem o negócio dos pássaros cantores (veja quadro à pág. 118). Os curiós são os bichinhos mais populares dessa engrenagem, movida pela paixão (quase vício) e pelo desafio de criar um campeão. Por ser rara, essa façanha se torna valiosa. Os curiós que alcançam o topo da parada de sucessos chegam a valer R$ 200 mil. Esse é o caso do Cyborg, morto em 2007, que pertencia ao ex-jogador Roberto Rivelino.

A vitória do Universo oferece um flagrante da emoção de criar um grande astro. Pouco mais que um filhote, ele enfrentou 45 concorrentes. No grupo havia competidores famosos como Chão de Estrelas, Eclipse, Cobiçado e o astuto Professor – um bicampeão nacional, que consegue longas séries de repetições. Antes do anúncio oficial do resultado do concurso, o dono do Universo, o empresário Francisco Copi Júnior, de Mogi Guaçu (SP), andava de um lado para o outro. Reclamava de dores no peito. Seus amigos tentavam acalmá-lo, em meio a recomendações de exercícios mais frequentes ou mesmo uma bateria de testes cardíacos.

O restante da família experimentava angústia similar. Eide, a mulher de Francisco, chorou no fim da apresentação do Universo. Acreditava no sucesso do bichinho, mas, por prudência, continha o otimismo. “A gente nunca sabe como funciona a cabeça dos juízes”, dizia. Sim, os torneios de curiós são avaliados por até três juízes oficiais, escalados pelas federações regionais. O filho mais novo do casal, João Vitor, de 11 anos, era o mais confiante da estirpe. Chegou a identificar certa rouquidão na voz de um dos adversários. “O troféu é nosso”, afirmava.

E era. Júlio César de Araújo, um dos três juízes da peleja, definiu como “incontestável” a vitória do pássaro. Os árbitros lhe deram nota 9,3, ante 8,5 para o Professor, o segundo colocado. “O Universo não repetiu muito, mas cantou com bom andamento, ótima melodia e notas alongadas”, disse Araújo. Para chegar a essa conclusão, ele se preparou por dez anos para ser juiz em torneios. Tudo nas horas vagas, pois trabalha no ramo de energia elétrica. “É o meu hobby”, afirma.

Como toda disputa acirrada, o torneio não poderia terminar sem uma ponta de polêmica. Os donos do Professor, os gêmeos Reinaldo e Renato Souza, argumentavam que a ave executara um número maior de cantadas (repetições). Queriam o primeiro lugar. Para participar do concurso, eles rodaram 8 mil quilômetros de carro desde Itajaí, em Santa Catarina, onde moram, até Bauru. Em uma temporada com 20 etapas, percorrem 30 mil quilômetros (quase uma volta completa em torno da Terra). “Não tiro o mérito do Universo”, disse Renato. “Mas o Professor se apresentou melhor.”

E é assim todo fim de semana.
 Marcos Camargo
Três juizes (sentados) avaliam desempenho de curió em torneio em Bauru (SP)


A criação de curiós é cheia de mimos. Os poleiros ideais para o bem-estar dos pássaros têm ranhuras longitudinais. Os lisos provocam calo nas patinhas. Ilustração: Paola Lopes
Aulas de canto
Uma peça importante da indústria dos curiós está baseada nas lições de canto ministradas para as aves. Os bichinhos tomam as primeiras aulas logo após o nascimento. E os professores não são os pais. Os filhotes escutam repetidas vezes CDs com o mote da espécie (a sequência de 26 notas). Essa audição é permanente. Mantém-se na fase adulta. No mercado, existem sete diferentes gravações do gênero e cada uma cumpre uma função.

O “Selo Vermelho” é indicado para os recém-nascidos. Traz notas curtas do canto, intercaladas com alguns pios em staccato (toques curtos) para acordar os pequeninos. Com quatro meses, o disco muda. Nessa fase é recomendado o “Selo Laranja”, pois acrescenta à versão anterior maior requinte melódico e um novo andamento. Alguns discos corrigem falhas artísticas. A solução para interpretações duras, por exemplo, é o CD “Prata Balanço”. Em conjunto, a obra fonográfica dos curiós já vendeu 810 mil cópias.
As gravações têm uma fonte em comum. É a voz do curió Ana Dias, capturado em 1955 no município homônimo, no litoral sul de São Paulo. Naquela época, essas aves não eram criadas em cativeiro. A performance do pássaro deu origem ao canto Praia Grande Clássico. Ele é considerado o tema mais nobre dos curiós. Ana Dias morreu aos 32 anos, em 1987. Forneceu o estilo, o balanço e a referência melódica para seus sucessores. Mas foi o homem (especificamente Olívio Nishiura) quem definiu a sequência de notas.

Nishiura, de 63 anos, é o maestro da passarinhada. Embora trabalhe no ramo de móveis, convive com esses pequenos tenores desde criança. “É a minha vida”, diz. “Sempre vivi cercado de passarinhos.” Ele participou do registro da primeira versão do Ana Dias, em 1969. A gravação foi feita em vinil. O curió fez várias versões, algumas em estúdio. O maestro editou o material. “Eliminamos algumas repetições e acrescentamos outras notas para aumentar a dificuldade do canto”, diz Nishiura. “Com esse modelo, essa padronização, os torneios explodiram.”

Parafernália eletrônica
Os criadores não usam qualquer sistema de som para reproduzir os CDs – e, assim, ensinar os filhotes a cantar. Esse processo exige uma parafernália especial. Os aparelhos executam o Praia Clássico em uma frequência específica: 3.550 hertz. “É nesse espectro que os passarinhos escutam”, diz Divaldo Fante, dono da Grataner, empresa de produtos eletrônicos de Dracena (SP). Em 1990, a companhia estava prestes a falir. Fante, no entanto, desenvolveu um equipamento para tocar o melô dos curiós a pedido de um criador de pássaros. “Foi quando renascemos.”

Os aparelhos dos principais fabricantes, que custam até R$ 600, contam com células fotoelétricas. Elas acionam a música ao raiar do dia e a desligam ao anoitecer. Simulam, assim, a rotina dos pássaros na natureza. Contam com temporizadores (ligam o CD em intervalos pré-programados), ajustes de velocidade da melodia e sensores de som (para não interromper a ave). Alguns sistemas usam várias caixas de som. Elas tocam em sequência para que o curió acredite estar cercado por coleguinhas e se anime a interagir – e a cantar.

Ilustrações: Meire de Oliveira e Paola Lopes


O ovoscópio é uma ferramenta importante na criação de pássaros cantores. Ele permite observar o interior do ovo por meio de uma fonte de luz. O criador acompanha o desenvolvimento do embrião    Divulgação
 
   Reprodução
Onde está Sinatra
Os donos de passarinhos também são ótimos clientes de empresas que realizam testes de DNA. Fazem 250 mil exames por ano para definir o sexo das aves logo após seu nascimento. Esse tipo de análise é importante, pois os machos são os mestres-cantores da espécie. Eles precisam ser separados das fêmeas, tanto para a venda como para o treinamento. O setor recorre anualmente a outros 5 mil exames do perfil genético dos pássaros. Nesse caso, o objetivo é confirmar o parentesco dos bichinhos. O filhotinho de um campeão pode custar dez vezes mais que um curió sem comprovado sangue de artista. “Apostamos que o mercado de testes genéticos vai dobrar nos próximos dois anos”, diz Juliana Paz, da Helixxa, companhia especializada nesse ramo com sede em Campinas. “Os criadores estão cada vez mais profissionais.”

Hoje, a seleção da espécie é feita com base na sensibilidade dos passarinheiros. Isair Alves, de 70 anos, dedica-se há meio século ao aprimoramento genético dos curiós. Ele atua no ramo imobiliário, mas sua paixão balança nos poleiros. Vive mergulhado em uma pasta catálogo onde reúne planilhas com o resultado de cruzamentos de várias gerações de pássaros. Alves considera fácil criar uma ave com características morfológicas superiores, como o porte ou a plumagem. Ele persegue, porém, atributos sutis, como a capacidade de aprendizado e o timbre da voz. “Aí a coisa fica difícil”, afirma. “Eu busco um Frank Sinatra, mas encontro muitos Waldicks Sorianos.”

Os curiós são populares porque vivem em quase todos os estados do Brasil. Mas o mundo dos pássaros cantores é maior. Inclui espécies como bicudos, coleiros, canários-da-terra e trinca-ferros. Cada um deles é comum em regiões específicas do país. Há ainda centenas de variações de canto apenas de curiós, além do Praia Clássico. Existem também outras modalidades de concurso. Nos torneios de fibra, por exemplo, as aves são dispostas em uma roda. Vence quem cantar por mais tempo, intimidando os adversários.

O problema é que boa parte desse mundo, que reúne 400 mil criadores, vive às turras com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O primeiro conjunto de normas para a criação desses pássaros foi produzido em 2001. Dez anos depois, o órgão ambiental constatou que havia inúmeros abusos no setor: 90% das apreensões de animais traficados no país eram passarinhos. O Ibama decidiu apertar o cerco.

Proibiu o uso de pequenas gaiolas acústicas, onde as aves são fechadas para escutar os CDs. “Recentemente, um criador trancou um pássaro em um carro para ouvir a música”, diz Maria Isabel Gomes, analista ambiental do Ibama. “Ele gastou três baterias nessa loucura.”

Os donos dos passarinhos, por sua vez, criticam o órgão federal. Afirmam que o instituto não concede licenças para criadores comerciais desde 2007. “Acreditamos que a proliferação de pequenos empresários diminuiria o amadorismo e ajudaria a organizar o setor”, afirma Aloísio Tostes, presidente da Confederação Brasileira dos Criadores de Pássaros Nativos. Esse grupo formou até uma bancada de “passarinheiros” no Congresso Nacional para defender sua causa.

Em um mundo com espaço para o bom-senso, cheio de passarinhos cantando, os criadores e o Ibama convergiriam para um ponto de interseção. Nesse caso, os primeiros teriam de cumprir regras, mas receberiam licenças para tocar suas empresas. O órgão público, por sua vez, usaria as técnicas de reprodução dos criadores para repovoar regiões, onde algumas espécies (caso do bicudo) foram extintas. Aparentemente, considerando as discussões em curso em Brasília, é isso que os dois lados buscam.
   Reprodução

2 comentários:

  1. sao bons gosto mais do trinca ferro

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    Respostas
    1. Eu tenho ambos (trinca ferro e curió), não sei se é pelo fato de ser o mais novo do plantel mas estou adorando meu curió. Comprei do senhor Olivio Nishiura que é um criador de SP que se tornou notoriedade na criação de curiós com canto Praia Clássico.

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