Um menino de 13 anos picado por um
escorpião numa reserva extrativista em Altamira, no oeste do Pará, morreu após
passar ao menos sete horas sem atendimento médico. Minutos antes do acidente,
um irmão do garoto havia sido picado por uma cobra, mas foi resgatado de
helicóptero 22 horas depois e sobreviveu.
O caso ocorreu na última
quinta-feira na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, onde três Unidades
Básicas de Saúde (UBS) foram construídas nos últimos dois anos. As unidades,
porém, não estão funcionando por falta de equipamentos e profissionais.
Responsável pela operação das UBS, a
prefeitura de Altamira - município onde a hidrelétrica de Belo Monte está sendo
erguida - diz que não consegue recrutar técnicos para as unidades porque o
consórcio construtor da usina oferece salários até duas vezes maiores para os
profissionais.
Segundo a procuradora do Ministério
Público Federal (MPF) em Altamira, Thais Santi, a morte do menino e a demora
para o resgate de seu irmão ilustram ''a ausência de prestação de serviços
públicos'' às cerca de 2 mil pessoas que vivem em comunidades ribeirinhas na
Terra do Meio, região cercada por Terras Indígenas e com área equivalente a um
terço do Estado de São Paulo.
Cobrança
Santi, ONGs e pesquisadores que
atuam na região disseram à BBC Brasil que o grupo está ainda mais desassistido
que comunidades indígenas do Xingu.
Eles cobram a criação de uma
estrutura dentro do Ministério da Saúde com recursos para ações específicas
para famílias extrativistas, como visitas de agentes, criação de unidades de
saúde em áreas isoladas e planos de resgate para emergências.
Os acidentes com os irmãos ocorreram
por volta das 17h do último dia 28, quando o ribeirinho Antônio da Rocha
coletava produtos da floresta com seus filhos.
Enquanto coletava patauá, fruto de
uma palmeira com uso análogo ao do açaí, Valdeci, de 19 anos, foi picado por
uma cobra. Integrante do grupo, Lindomar, 20, diz que a serpente desapareceu
antes que pudesse ser identificada pelo irmão.
A família deu ao jovem uma dose de
Específico Pessoa, remédio popularmente utilizado na Amazônia contra picadas
venenosas. Apreensivo, o pai decidiu encerrar os trabalhos e voltar para casa.
Quando se preparavam para deixar a área, Francenildo, de 13 anos, foi picado
por um escorpião.
''Ele deu um grito'', conta
Lindomar, que diz ter matado o animal com um facão. ''Fiquei esperando por Deus
o que ia acontecer.'' Como Valdeci havia bebido todo o remédio, não sobrou nada
para o irmão mais novo.
Apesar da dor da picada, Francenildo
fez questão de carregar sozinho seu cesto até o barco. ''Quando chegou na beira
do rio, só deu um gemido'', diz o irmão. ''Já estava espumando pela boca.''
Desmaiado, o menino foi embarcado e
levado pelos parentes até sua casa. Chovia forte, e todos se encharcaram no
caminho.
Sem
resgate
Em casa, Lindomar afirma que o pai
(''só chorando, coitado'') tentava animar o menino, cujas condições se
agravavam. Sem rádio comunicador na residência, único meio de contato em áreas
isoladas da Amazônia, a família não podia pedir ajuda para um resgate.
O pai tentava fazer com que
Francenildo engolisse remédios caseiros, mas o menino os vomitava. À
meia-noite, ele morreu.
''Nesse desespero todo'', diz
Lindomar, seu irmão Valdeci agonizava com as dores causadas pelo veneno da
cobra.
Por sorte, um dia antes, a
procuradora do MPF Thais Santi e pesquisadores que a acompanhavam haviam
visitado a família durante incursão na Terra do Meio. Na manhã seguinte, quando
estava numa comunidade próxima, o grupo soube do caso e se mobilizou para que
Valdeci fosse resgatado por autoridades de Altamira.
Por volta das 8h30, o grupo começou
a contatar outras comunidades por rádio até que a notícia chegou ao escritório
do ISA (Instituto Socioambiental), ONG que atua na defesa de povos indígenas e
tradicionais da região.
O ISA, por fim, localizou um coronel
da Polícia Militar, que enviou um helicóptero para a área.
Enquanto isso, Valdeci foi levado em
uma lancha veloz para o posto de saúde em funcionamento mais próximo da
comunidade, na Terra Indígena Cachoeira Seca. Lá, contudo, não havia soro
antiofídico.
O helicóptero só chegou ao local às
15h. O médico que vinha a bordo tratou Valdeci, que foi levado a um hospital em
Itaituba e, na manhã seguinte, transferido para o hospital municipal de
Altamira.
O jovem passou três dias internado e
teve alta na última terça-feira. Lindomar acompanhou o irmão na viagem.
Segundo a médica Ceila Málaque,
especialista no tratamento de acidentes com animais peçonhentos do hospital
Vital Brasil, em São Paulo, o índice de crianças mortas após picadas de
escorpião no Brasil é de apenas 0,6%.
Sem
socorro
Ela diz, no entanto, que os
acidentes devem ser tratados com urgência e que Francenildo deveria ter sido
imediatamente transportado para um local onde pudesse receber, além de doses de
antiveneno, ventilação mecânica e remédios para regular suas funções cardíacas.
No entanto, a viagem de lancha entre
a reserva e o hospital em Altamira onde poderia ter recebido esse tratamento
dura cerca de dois dias nesta época do ano, quando os rios estão cheios.
Durante a seca, o mesmo trajeto pode levar até cinco dias.
De
helicóptero, a viagem dura duas horas.
Para a procuradora Thais Santi,
''foi uma morte anunciada''. Ela diz que, sem rádios de comunicação, muitas
famílias da Terra do Meio ''não têm condição nenhuma de pedir socorro''.
''Elas não estão isoladas por
distância, mas pela omissão do Estado.'' Santi afirma que, caso alguma das três
unidades de saúde da reserva estivesse funcionando, os jovens poderiam ter sido
atendidos em menos de meia hora.
As unidades foram construídas entre
2011 e 2012 pelo ISA em convênio com a prefeitura de Altamira, mas jamais
operaram.
Santi diz ainda que uma decisão da
Justiça Federal em 2011 determinou que o poder público garantisse visitas
mensais de agentes de saúde a todas as comunidades ribeirinhas da região.
A procuradora diz que a sentença
jamais foi respeitada e que há comunidades à beira do rio Iriri que nunca
tiveram contato com profissionais de saúde.
Tampouco há escolas em boa parte da
região. Na família Rocha, todos são analfabetos.
Segundo o secretário de Saúde de
Altamira, Waldeci Maia, a prefeitura está se esforçando para tornar as vagas em
unidades de saúde remotas mais atraentes para técnicos em enfermagem, apesar
dos melhores salários oferecidos pelo consórcio Norte Energia.
Ele diz, porém, que o município
''não tem condições nem recursos para resolver sozinho'' os problemas das
comunidades ribeirinhas e cobra maior atuação dos governos federal e estadual.
Nota
do Ministério
Em nota, o Ministério da Saúde disse
que há 44 equipes do programa Saúde da Família para atender a região do Xingu,
que engloba 11 municípios (incluindo a Terra do Meio) e 374,5 mil habitantes.
O ministério diz que, em 2012,
repassou ao município de Altamira R$ 9,4 milhões para custear ações em saúde.
A secretaria de Saúde do Pará, por
sua vez, afirmou em nota que ''a instalação de hospitais e Unidades Básicas de
Saúde, assim como a frequência de agentes comunitários de saúde nessas áreas, é
de responsabilidade da gestão municipal''.
Coordenador do ISA em Altamira,
Marcelo Salazar defende a criação de uma estrutura dentro do Ministério da
Saúde para as comunidades extrativistas do país, a exemplo do que ocorreu com
os indígenas. ''Enquanto de um lado do rio os índios têm atendimento, ainda que
bastante falho, do outro os ribeirinhos não têm nada'', afirma.
Após receber alta, Valdeci e o irmão
Lindomar iniciaram na quarta-feira a longa viagem de barco para regressar à
comunidade.
Na bagagem, a pedido da mãe, levaram
velas compradas na cidade para a missa de sétimo dia do irmão Francenildo,
marcada para esta sexta-feira. Eles temiam não chegar a tempo.
BBC
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