sábado, 6 de outubro de 2012

Avaliação dos exemplos de Kant



Destes exemplos, o primeiro é talvez o mais fraco. A existência de um mundo em que todas as pessoas com doenças terminais que são vítimas de grande sofrimento cometam suicídio não é impossível. E também não parece haver qualquer razão para um agente racional não poder querer que todas as pessoas se poupem a si mesmas a uma morte atroz e sem sentido.

O segundo exemplo é um pouco mais plausível. A instituição do cumprimento de promessas parece depender do fato de as pessoas normalmente acreditarem nas promessas que lhes fazem. Se as pessoas nunca tencionassem cumprir as suas promessas, poderia a instituição perdurar? Kant diz que não. Contudo, talvez seja possível imaginar circunstâncias complicadas em que se evita esta conclusão. Deixo isto como um exercício para o leitor.

Talvez haja também algo a dizer sobre o argumento de Kant acerca do nosso dever de ajudar os outros. Todos precisamos de algum tipo de ajuda em alguma altura das nossas vidas. Todos, portanto, desejamos evitar uma situação em que ninguém nos dê a ajuda de que precisamos. Por isso, não podemos querer que ninguém nos ajude nunca. Isto significa que é errado levarmos uma vida em que nos recusemos completamente a ajudar outros. Uma vez mais, a razão pela qual é errado está em não podermos querer que o padrão seja universal.

Qual é o argumento de Kant, no seu terceiro exemplo, acerca do dever que temos de desenvolver as nossas capacidades? Talvez a ideia seja semelhante à que apresenta na discussão do dever de ajudar os outros. Quero que os outros desenvolvam capacidades que me possam ser benéficas; por exemplo, quero que os médicos aperfeiçoem os seus dons, uma vez que um dia irei precisar deles. Isto significa, contudo, que não posso querer que todos negligenciem o desenvolvimento das suas capacidades. É suposto seguir-se que tenho o dever de desenvolver as minhas próprias capacidades.

Realcei anteriormente que o critério de universalizabilidade não pergunta se seria uma coisa boa que toda a gente realizasse a ação que o agente está a ponderar. A questão de Kant é se seria possível proceder desse modo, ou se seria possível querer que todos procedessem desse modo.

Se tivermos isto em mente, é duvidoso que Kant possa atingir as conclusões que pretende nos seus últimos dois exemplos sem ter em conta as conseqüências. É obviamente possível que o mundo seja um lugar em que ninguém ajude os outros e ninguém desenvolva as suas capacidades. Este é um estado de coisas lamentável, mas não impossível. E que pensar da segunda opção de Kant? Poderá um agente racional querer que as pessoas não ajudem as outras ou que não desenvolvam as suas capacidades?

Isso depende do que entendemos por «racional». Se racional significa instrumentalmente racional, então parece não haver aqui qualquer impossibilidade. Como Hume diz, posso ser totalmente claro ao raciocinar dos meios para os fins (e assim ser instrumentalmente racional) e continuar a ter os desejos mais bizarros que possas imaginar. Por outro lado, há um sentido de «racional» de acordo com o qual um agente racional não quereria que o mundo fosse um lugar no qual as pessoas não ajudassem as outras ou que não desenvolvam as suas capacidades. Um agente racional não quereria isto por causa das conseqüências que tais comportamentos teriam. Haveria uma grande quantidade de sofrimento, de alienação e desespero; a vida seria sombria.

Concluo que não é evidente como Kant pode analisar os seus dois últimos exemplos do modo que faz sem ter em conta as conseqüências que se seguirão da universalização das ações.

Um problema para o critério de universalizabilidade

Há um problema geral que diz respeito a todos os exemplos de Kant ― na realidade, à própria ideia de critério de universalizabilidade. Recorda-te de uma ideia simples da lição sobre o funcionalismo (Lição 22): Um espécime exemplifica muitos tipos. Isto significa que uma dada ação particular pode ser descrita em termos de muitas propriedades diferentes. Kant parece presumir que há apenas uma máxima incorporada em cada ação, de modo que podemos testar a moralidade do ato examinando a universalizabilidade desta máxima. Mas há muitas máximas que podem levar a uma dada ação; algumas podem ser universalizadas enquanto outras não.
Voltemos ao exemplo de Kant do cumprimento de promessas para vermos este problema. Um homem tem de decidir se pede dinheiro emprestado prometendo pagar, embora não tenha qualquer intenção de cumprir a sua promessa. O que significaria todos comportarem-se deste modo? Uma forma de descrever esta ação é dizer que ela decorre da máxima «Faz uma promessa mesmo que tenciones quebrá-la». Kant afirma que é impossível universalizá-la porque a proposição seguinte é uma contradição:

Toda a gente faz promessas, mesmo que ninguém tencione cumprir as promessas que faz.

Contudo, podemos também descrever a ação do homem como decorrendo de uma máxima diferente: «Não faças uma promessa a menos que tenciones cumpri-la, exceto quando estás numa situação de vida ou de morte e a tua intenção de quebrar a promessa não seja evidente para outros». Universalizar esta máxima não leva a contradições, uma vez que o mundo poderia perfeitamente ser da maneira seguinte:
Todos fazem promessas e em geral esperam cumprir as promessas que fazem. A exceção ocorre quando há uma enorme vantagem pessoal em fazer uma promessa sem a intenção de a cumprir e a intenção de quebrar a promessa não é evidente para os outros.

Longe de ser impossível, a generalização acima parece descrever de forma bastante correta o mundo em que na realidade vivemos.

Deves ter em conta uma semelhança entre o problema que Kant enfrenta e um problema que o utilitarismo das regras encontrou na lição anterior. «O que aconteceria se toda a gente fizesse isto?» é a questão que o utilitarista das regras julga ser importante para avaliar as propriedades morais de uma ação. A questão de Kant é diferente; ele pergunta «Podem todos fazer isto?» ou «Posso querer que todos façam isto?» Embora as questões sejam diferentes, o fato de haver múltiplas formas de descrever uma ação dá origem a problemas semelhantes.

O critério de universalizabilidade pode parecer plausível se levarmos a sério a analogia entre leis morais e leis científicas. Ambas devem ser universais e impessoais. Mas outra comparação destas duas idéias pode diminuir a plausibilidade de que algo semelhante ao critério de universalizabilidade de Kant possa vir a funcionar.

As leis científicas devem ser universais, mas ninguém pensa que a verdadeira explicação de um fenômeno específico possa ser derivada a priori. A razão por si só não pode dizer-me porque a Terra se move numa órbita elíptica em torno do Sol, mesmo que eu assuma que a explicação deste fato tem de ser verdadeira para todos os sistemas planetários semelhantes. Por outro lado, Kant sustenta que o que está certo fazer numa situação específica é ditado pelo requisito racional da universalizabilidade.

Evidentemente, um fato importante acerca da moralidade é que se é correto para mim fazer uma ação particular, então é correto para qualquer pessoa numa situação idêntica fazê-lo também. Esta é a ideia de que as leis morais ― os princípios gerais que ditam o que está correto fazer ― são universais e impessoais. O problema está em que este requisito não é suficiente para revelar quais as generalizações morais verdadeiras. Se fosse, a analogia entre as leis científicas e as leis morais teriam implicações diferentes das que Kant tentou desenvolver.

Kant: As pessoas são fins em si mesmos

Kant acreditava que uma conseqüência importante do seu teste da universalizabilidade é que devemos tratar as pessoas como fins em si mesmos e não como meros meios. Por esta razão, entendia que não devemos tratar as pessoas como meios para fins que elas não poderiam aceitar racionalmente. Kant acreditava que este princípio proíbe a escravatura. O mesmo pode ser verdade para a punição de alguém por um crime que não cometeu, mesmo que fazê-lo apazigúe uma multidão perigosa. A teoria kantiana parece fornecer bases mais sólidas do que o utilitarismo para a ideia de que os indivíduos têm direitos que não podem ser anulados por considerações de utilidade. Na teoria de Kant não é a maximização da felicidade que importa. É suposto que a razão por si mesma estipule princípios de equidade, imparcialidade e justiça.

Embora Kant anteceda os utilitaristas, a sua teoria parece feita para corrigir os defeitos do utilitarismo. A ideia de direitos é uma correção plausível da ideia de que todos os aspectos da vida individual têm de passar o teste da maximização da felicidade de todos. Apesar disso, há dificuldades lógicas de monta na teoria de Kant. E o absolutismo de algumas das suas teses parece estar em completo desacordo com convicções morais de senso comum que estão fortemente arraigadas. Será de todo plausível pensar que as promessas devem sempre ser cumpridas ― que nunca devemos dizer uma mentira ― sejam quais forem as conseqüências? Para além de mostrar os defeitos nos argumentos que pretendem justificar estas injunções, também devemos acima de tudo mostrar que estas exigências morais não precisam de receber uma justificação incondicional.

Se o critério de universalizabilidade é incapaz de fornecer um meio de decidir quais as ações que são corretas e se os juízos morais de Kant acerca do cumprimento de promessas, do suicídio, e de outras ações são implausíveis, o que tem valor na sua teoria ética? Muitos filósofos consideram a descrição que Kant faz do ponto de vista moral como uma das suas contribuições supremas e duradouras. Os desejos e as preferências podem levar-nos a agir e estas ações podem produzir diferentes misturas de prazer e de sofrimento. Esta seqüência de acontecimentos, contudo, dá-se entre criaturas ― talvez vacas e cães ― que nenhum esforço da imaginação permite afirmar terem uma moralidade. O que, então, distingue as ações motivadas pela moralidade das ações com origem na inclinação, quer sejam benevolentes quer sejam malevolentes?

A resposta de Kant é que a ação moral tem por base princípios com um tipo especial de garantia racional. A linguagem vulgar talvez seja neste caso um pouco enganadora, uma vez que podemos falar de desejar agir moralmente como se isso estivesse em pé de igualdade com o desejo por prazer ou por lucro. Mas Kant não pensava que determinar o nosso dever fosse uma inclinação entre muitas outras. Ele via a moralidade e a inclinação como existindo em esferas completamente diferentes. Para identificar qual é a coisa moral a fazer devemos pôr de lado as nossas inclinações. Fixando a nossa atenção em leis universais e impessoais podemos esperar diminuir o grau em que o interesse próprio distorce os nossos juízos acerca do que devemos fazer.

Questões de Revisão

1. Por que razão sustenta Hume que toda a ação tem uma causa «não racional»? E por que rejeita isto Kant?
2. Kant acreditava em que há semelhanças importantes entre as leis científicas e as leis morais. Quais são estas semelhanças?
3. O que significa dizer que o utilitarismo é uma teoria consequencialista, enquanto a teoria de Kant não?
4. O que afirma o critério da universalizabilidade de Kant? Diz que não deves realizar uma ação se o mundo fosse um lugar pior se toda a gente fizesse o mesmo?
5. Como tenta Kant mostrar que a obrigação de cumprir as promessas se segue do critério de universalizabilidade? É bem sucedido?
6. Estás num barco que se inclina perigosamente para um dos lados por que todos os passageiros estão do lado direito. Ponderas se será boa ideia moveres-te para a esquerda. Perguntas a ti mesmo, «o que aconteceria se todos fizessem isto?» Esta questão contém uma ambigüidade. Qual é? Como é que esta ambiguidade é relevante para avaliar o critério de universalizabilidade de Kant?

Problemas para Promover a Reflexão

1. Kant acredita que o dever de tratar os outros como fins em si mesmos, não como meios, se segue do critério de universalizabilidade. Tenta construir um argumento que mostre como isto pode ser verdade. Kant tem razão ao pensar que estes dois princípios estão estreitamente relacionados?

2. Kant pensava que a lei moral constrange a forma como as pessoas vivem, mas que não determina cada um e todos os seus detalhes. Isto é, para Kant, uma pessoa é livre de procurar os seus objetivos e projetos privados desde que estes não violem qualquer imperativo categórico. Estes projetos particulares são moralmente permissíveis, não moralmente obrigatórios.
O utilitarismo, por oposição, entende que a moralidade determina cada e todos os aspectos da vida de uma pessoa. Cada ação que uma pessoa realize tem de ser avaliada em termos do Princípio da Maior Felicidade. Um projeto privado é permissível apenas se promove o maior bem para o maior número de pessoas. Estes atos não são meramente permissíveis, mas obrigatórios.
Constrói um exemplo concreto em que estas características das duas teorias as levem a fazer juízos opostos sobre se um ato é moralmente permissível. Aos teus olhos, qual é a teoria mais plausível naquilo que diz sobre o teu exemplo?

3. A ética de Kant teve uma influência poderosa na filosofia política de John Rawls. Em Uma Teoria da Justiça (Lisboa: Editorial Presença, 2001), Rawls defende que as regras de justiça corretas para uma sociedade são as que todas as pessoas escolheriam se 1) tivessem interesse próprio, e 2) não conhecessem vários detalhes (como as suas capacidades, sexo, raça e os projetos que desejam levar a cabo). Os únicos fotos que as pessoas conhecem nesta situação hipotética são fotos gerais acerca da psicologia e da vida humanas. A ideia de Rawls é em parte uma tentativa de captar a ideia de Kant de que as inclinações pessoais devem ser postas de lado se queremos ver o que são as nossas obrigações. Que princípios de conduta pensas que as pessoas escolheriam nesta situação hipotética?

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