Destes
exemplos, o primeiro é talvez o mais fraco. A existência de um mundo em que
todas as pessoas com doenças terminais que são vítimas de grande sofrimento
cometam suicídio não é impossível. E também não parece haver qualquer razão
para um agente racional não poder querer que todas as pessoas se poupem a si
mesmas a uma morte atroz e sem sentido.
O
segundo exemplo é um pouco mais plausível. A instituição do cumprimento de
promessas parece depender do fato de as pessoas normalmente acreditarem nas
promessas que lhes fazem. Se as pessoas nunca tencionassem cumprir as suas
promessas, poderia a instituição perdurar? Kant diz que não. Contudo, talvez
seja possível imaginar circunstâncias complicadas em que se evita esta
conclusão. Deixo isto como um exercício para o leitor.
Talvez
haja também algo a dizer sobre o argumento de Kant acerca do nosso dever de
ajudar os outros. Todos precisamos de algum tipo de ajuda em alguma altura das
nossas vidas. Todos, portanto, desejamos evitar uma situação em que ninguém nos
dê a ajuda de que precisamos. Por isso, não podemos querer que ninguém nos
ajude nunca. Isto significa que é errado levarmos uma vida em que nos recusemos
completamente a ajudar outros. Uma vez mais, a razão pela qual é errado está em
não podermos querer que o padrão seja universal.
Qual
é o argumento de Kant, no seu terceiro exemplo, acerca do dever que temos de
desenvolver as nossas capacidades? Talvez a ideia seja semelhante à que apresenta
na discussão do dever de ajudar os outros. Quero que os outros desenvolvam
capacidades que me possam ser benéficas; por exemplo, quero que os médicos
aperfeiçoem os seus dons, uma vez que um dia irei precisar deles. Isto
significa, contudo, que não posso querer que todos negligenciem o
desenvolvimento das suas capacidades. É suposto seguir-se que tenho o dever de
desenvolver as minhas próprias capacidades.
Realcei
anteriormente que o critério de universalizabilidade não pergunta se seria uma
coisa boa que toda a gente realizasse a ação que o agente está a ponderar. A
questão de Kant é se seria possível proceder desse modo, ou se
seria possível querer que todos procedessem desse modo.
Se
tivermos isto em mente, é duvidoso que Kant possa atingir as conclusões que
pretende nos seus últimos dois exemplos sem ter em conta as conseqüências. É
obviamente possível que o mundo seja um lugar em que ninguém ajude os outros e
ninguém desenvolva as suas capacidades. Este é um estado de coisas lamentável,
mas não impossível. E que pensar da segunda opção de Kant? Poderá um agente
racional querer que as pessoas não ajudem as outras ou que não
desenvolvam as suas capacidades?
Isso
depende do que entendemos por «racional». Se racional significa
instrumentalmente racional, então parece não haver aqui qualquer
impossibilidade. Como Hume diz, posso ser totalmente claro ao raciocinar dos
meios para os fins (e assim ser instrumentalmente racional) e continuar a ter
os desejos mais bizarros que possas imaginar. Por outro lado, há um sentido de
«racional» de acordo com o qual um agente racional não quereria que o mundo
fosse um lugar no qual as pessoas não ajudassem as outras ou que não
desenvolvam as suas capacidades. Um agente racional não quereria isto por
causa das conseqüências que tais comportamentos teriam. Haveria uma grande
quantidade de sofrimento, de alienação e desespero; a vida seria sombria.
Concluo
que não é evidente como Kant pode analisar os seus dois últimos exemplos do
modo que faz sem ter em conta as conseqüências que se seguirão da
universalização das ações.
Um
problema para o critério de universalizabilidade
Há
um problema geral que diz respeito a todos os exemplos de Kant ― na realidade,
à própria ideia de critério de universalizabilidade. Recorda-te de uma ideia
simples da lição sobre o funcionalismo (Lição 22): Um espécime
exemplifica muitos tipos. Isto significa que uma dada ação particular
pode ser descrita em termos de muitas propriedades diferentes. Kant parece
presumir que há apenas uma máxima incorporada em cada ação, de modo que podemos
testar a moralidade do ato examinando a universalizabilidade desta máxima. Mas
há muitas máximas que podem levar a uma dada ação; algumas podem ser
universalizadas enquanto outras não.
Voltemos
ao exemplo de Kant do cumprimento de promessas para vermos este problema. Um
homem tem de decidir se pede dinheiro emprestado prometendo pagar, embora não
tenha qualquer intenção de cumprir a sua promessa. O que significaria todos
comportarem-se deste modo? Uma forma de descrever esta ação é dizer que ela
decorre da máxima «Faz uma promessa mesmo que tenciones quebrá-la». Kant afirma
que é impossível universalizá-la porque a proposição seguinte é uma
contradição:
Toda
a gente faz promessas, mesmo que ninguém tencione cumprir as promessas que faz.
Contudo,
podemos também descrever a ação do homem como decorrendo de uma máxima
diferente: «Não faças uma promessa a menos que tenciones cumpri-la, exceto
quando estás numa situação de vida ou de morte e a tua intenção de quebrar a
promessa não seja evidente para outros». Universalizar esta máxima não leva a
contradições, uma vez que o mundo poderia perfeitamente ser da maneira
seguinte:
Todos
fazem promessas e em geral esperam cumprir as promessas que fazem. A exceção
ocorre quando há uma enorme vantagem pessoal em fazer uma promessa sem a
intenção de a cumprir e a intenção de quebrar a promessa não é evidente para os
outros.
Longe
de ser impossível, a generalização acima parece descrever de forma bastante correta
o mundo em que na realidade vivemos.
Deves
ter em conta uma semelhança entre o problema que Kant enfrenta e um problema
que o utilitarismo das regras encontrou na lição anterior. «O que aconteceria
se toda a gente fizesse isto?» é a questão que o utilitarista das regras julga
ser importante para avaliar as propriedades morais de uma ação. A questão de
Kant é diferente; ele pergunta «Podem todos fazer isto?» ou «Posso querer que
todos façam isto?» Embora as questões sejam diferentes, o fato de haver
múltiplas formas de descrever uma ação dá origem a problemas semelhantes.
O
critério de universalizabilidade pode parecer plausível se levarmos a sério a
analogia entre leis morais e leis científicas. Ambas devem ser universais e
impessoais. Mas outra comparação destas duas idéias pode diminuir a
plausibilidade de que algo semelhante ao critério de universalizabilidade de
Kant possa vir a funcionar.
As
leis científicas devem ser universais, mas ninguém pensa que a verdadeira
explicação de um fenômeno específico possa ser derivada a priori. A
razão por si só não pode dizer-me porque a Terra se move numa órbita elíptica
em torno do Sol, mesmo que eu assuma que a explicação deste fato tem de ser
verdadeira para todos os sistemas planetários semelhantes. Por outro lado, Kant
sustenta que o que está certo fazer numa situação específica é ditado pelo
requisito racional da universalizabilidade.
Evidentemente,
um fato importante acerca da moralidade é que se é correto para mim fazer uma ação
particular, então é correto para qualquer pessoa numa situação idêntica fazê-lo
também. Esta é a ideia de que as leis morais ― os princípios gerais que ditam o
que está correto fazer ― são universais e impessoais. O problema está em que
este requisito não é suficiente para revelar quais as generalizações morais
verdadeiras. Se fosse, a analogia entre as leis científicas e as leis morais
teriam implicações diferentes das que Kant tentou desenvolver.
Kant:
As pessoas são fins em si mesmos
Kant
acreditava que uma conseqüência importante do seu teste da universalizabilidade
é que devemos tratar as pessoas como fins em si mesmos e não como meros meios.
Por esta razão, entendia que não devemos tratar as pessoas como meios para fins
que elas não poderiam aceitar racionalmente. Kant acreditava que este princípio
proíbe a escravatura. O mesmo pode ser verdade para a punição de alguém por um
crime que não cometeu, mesmo que fazê-lo apazigúe uma multidão perigosa. A
teoria kantiana parece fornecer bases mais sólidas do que o utilitarismo para a
ideia de que os indivíduos têm direitos que não podem ser anulados por
considerações de utilidade. Na teoria de Kant não é a maximização da felicidade
que importa. É suposto que a razão por si mesma estipule princípios de
equidade, imparcialidade e justiça.
Embora
Kant anteceda os utilitaristas, a sua teoria parece feita para corrigir os
defeitos do utilitarismo. A ideia de direitos é uma correção plausível da ideia
de que todos os aspectos da vida individual têm de passar o teste da
maximização da felicidade de todos. Apesar disso, há dificuldades lógicas de
monta na teoria de Kant. E o absolutismo de algumas das suas teses parece estar
em completo desacordo com convicções morais de senso comum que estão fortemente
arraigadas. Será de todo plausível pensar que as promessas devem sempre ser
cumpridas ― que nunca devemos dizer uma mentira ― sejam quais
forem as conseqüências? Para além de mostrar os defeitos nos argumentos que
pretendem justificar estas injunções, também devemos acima de tudo mostrar que
estas exigências morais não precisam de receber uma justificação incondicional.
Se
o critério de universalizabilidade é incapaz de fornecer um meio de decidir
quais as ações que são corretas e se os juízos morais de Kant acerca do
cumprimento de promessas, do suicídio, e de outras ações são implausíveis, o
que tem valor na sua teoria ética? Muitos filósofos consideram a descrição que
Kant faz do ponto de vista moral como uma das suas
contribuições supremas e duradouras. Os desejos e as preferências podem
levar-nos a agir e estas ações podem produzir diferentes misturas de prazer e
de sofrimento. Esta seqüência de acontecimentos, contudo, dá-se entre criaturas
― talvez vacas e cães ― que nenhum esforço da imaginação permite afirmar terem
uma moralidade. O que, então, distingue as ações motivadas pela moralidade das ações
com origem na inclinação, quer sejam benevolentes quer sejam malevolentes?
A
resposta de Kant é que a ação moral tem por base princípios com um tipo
especial de garantia racional. A linguagem vulgar talvez seja neste caso um
pouco enganadora, uma vez que podemos falar de desejar agir moralmente como se
isso estivesse em pé de igualdade com o desejo por prazer ou por lucro. Mas
Kant não pensava que determinar o nosso dever fosse uma inclinação entre muitas
outras. Ele via a moralidade e a inclinação como existindo em esferas
completamente diferentes. Para identificar qual é a coisa moral a fazer devemos pôr
de lado as nossas inclinações. Fixando a nossa atenção em leis
universais e impessoais podemos esperar diminuir o grau em que o interesse
próprio distorce os nossos juízos acerca do que devemos fazer.
Questões
de Revisão
1. Por que razão sustenta Hume que toda a ação tem uma causa «não racional»? E por que rejeita isto Kant?
2.
Kant acreditava em que há semelhanças importantes entre as leis científicas e
as leis morais. Quais são estas semelhanças?
3.
O que significa dizer que o utilitarismo é uma teoria consequencialista,
enquanto a teoria de Kant não?
4.
O que afirma o critério da universalizabilidade de Kant? Diz que não deves
realizar uma ação se o mundo fosse um lugar pior se toda a gente fizesse o
mesmo?
5.
Como tenta Kant mostrar que a obrigação de cumprir as promessas se segue do
critério de universalizabilidade? É bem sucedido?
6.
Estás num barco que se inclina perigosamente para um dos lados por que todos os
passageiros estão do lado direito. Ponderas se será boa ideia moveres-te para a
esquerda. Perguntas a ti mesmo, «o que aconteceria se todos fizessem isto?»
Esta questão contém uma ambigüidade. Qual é? Como é que esta ambiguidade é
relevante para avaliar o critério de universalizabilidade de Kant?
Problemas
para Promover a Reflexão
1.
Kant acredita que o dever de tratar os outros como fins em si mesmos, não como
meios, se segue do critério de universalizabilidade. Tenta construir um
argumento que mostre como isto pode ser verdade. Kant tem razão ao pensar que
estes dois princípios estão estreitamente relacionados?
2.
Kant pensava que a lei moral constrange a forma como as pessoas vivem, mas que
não determina cada um e todos os seus detalhes. Isto é, para Kant, uma pessoa é
livre de procurar os seus objetivos e projetos privados desde que estes não
violem qualquer imperativo categórico. Estes projetos particulares são
moralmente permissíveis, não moralmente obrigatórios.
O
utilitarismo, por oposição, entende que a moralidade determina cada e todos os
aspectos da vida de uma pessoa. Cada ação que uma pessoa realize tem de ser
avaliada em termos do Princípio da Maior Felicidade. Um projeto privado é
permissível apenas se promove o maior bem para o maior número de pessoas. Estes
atos não são meramente permissíveis, mas obrigatórios.
Constrói
um exemplo concreto em que estas características das duas teorias as levem a
fazer juízos opostos sobre se um ato é moralmente permissível. Aos teus olhos,
qual é a teoria mais plausível naquilo que diz sobre o teu exemplo?
3.
A ética de Kant teve uma influência poderosa na filosofia política de John
Rawls. Em Uma Teoria da Justiça (Lisboa: Editorial Presença,
2001), Rawls defende que as regras de justiça corretas para uma sociedade são
as que todas as pessoas escolheriam se 1) tivessem interesse próprio, e 2) não
conhecessem vários detalhes (como as suas capacidades, sexo, raça e os projetos
que desejam levar a cabo). Os únicos fotos que as pessoas conhecem nesta
situação hipotética são fotos gerais acerca da psicologia e da vida humanas. A
ideia de Rawls é em parte uma tentativa de captar a ideia de Kant de que as
inclinações pessoais devem ser postas de lado se queremos ver o que são as
nossas obrigações. Que princípios de conduta pensas que as pessoas escolheriam
nesta situação hipotética?
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Abração
Dag Vulpi