Há no Brasil dois jeitos principais para o jornalismo mau-caráter: o Veja e o Folha (de São Paulo). Vamos demonstrar empiricamente os dois estilos, primeiro o Veja.
Suponhamos que José é petista, logo, desafeto da Veja. A revista é curta e grossa e coloca logo em sua capa: José é ladrão. Toda estrutura de texto é de alguém “superior” que dita a verdade aos simples mortais. Portanto, basta a versão da Veja sobre o fato, provas são desnecessárias.
O grande problema do estilo direto da Veja são os processos. Diogo Mainardi, a caneta pitbull da editora Abril contra a esquerda, já fugiu do país com medo de ser preso. O recente episódio do direito de resposta do PT na revista é histórico (leia o direito de resposta na íntegra).
Vamos para o segundo estilo, o Folha. Trata-se de algo mais sutil e nefasto. Explico com o mesmo exemplo do nosso companheiro José. A Folha jamais seria direta, ao contrário, construiria o texto de outra forma: José é amigo de Carlos. Carlos é um conhecido criminoso e foi condenado pela justiça. Carlos escondia o fruto de seu roubo no próprio apartamento. José é amigo íntimo de Carlos. José costumava visitar Carlos. O estilo Folha de mau jornalismo é muito pior e nefasto, pois não argumenta claramente como a Veja, apenas “lança no ar certas dúvidas”. Ao ler sobre o ladrão Carlos e a relação com José, o leitor da Folha rapidamente deduz: então José também é ladrão. Nenhuma prova foi apresentada contra José.Trata-se de um processo hipócrita, porque o leitor acredita que chegou a esta dedução (que José é ladrão) por si mesmo, mas foi induzido o tempo todo pelo jornal.
A revista Época desta semana tentou usar o melhor das duas fórmulas. Na capa, algo que soa como a revelação de um segredo monstruoso: O Passado de Dilma. O sub-texto: Documentos inéditos revelam uma história que ela não gosta de lembrar: seu papel na luta armada contra o regime militar.
Vamos passo-a-passo:
A revista inteira
Não dá para analisar as induções de Época ao leitor sem levarmos em conta toda a revista. Logo na carta do editor (pg. 8), Helio Gurovitz (Diretor de redação) começa o texto citando Tony Judt: “estudar a história evita a cometer os mesmos erros”. O editor diz que nesta edição serão apresentados “dados cruciais para o brasileiro que começa, nesta semana, a ser apresentado aos candidatos no horário eleitoral gratuito…”. Gurovitz garante que, por aquelas páginas, o leitor saberá tudo sobre o modo de pensar, agir e sentir da candidata do PT. Sobre Serra, a revista limita-se a dizer que ele se exilou, como se, sobre o tucano, não houvesse história alguma a ser contada. Mas sobre Dilma, há um passado inteiro de segredos a ser revelado.
Logo na página 13 há uma matéria sobre Leandro de Paula, o menino carioca que virou celebridade instantânea na internet ao fazer cobranças (e gravá-las) ao Presidente Lula e ao Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A revista fala que o garoto colocou Lula, Cabral e Benedita da Silva em maus lençóis, mas não explica como o vídeo do garoto foi parar no blog de Ricardo Gama, amigo da família Bolsonaro, arqui-rival do PT e da esquerda. A Época avisa que em breve haverá um vídeo do garoto com Dilma. Se Leandro de Paula vendeu o vídeo para Gama, os jornalistas não apuraram.
Há uma menção a Serra, é na página 28. Nada de críticas ou revelações bombásticas, o pequeno texto fala apenas que o tucano não vai realizar mudanças bruscas na economia e tenta explicar isso ao empresariado.
Os principais marqueteiros de Dilma, Serra e Marina são apresentados na página 30.
As revelações sobre o passado de Dilma foram divididas em duas matérias. A primeira (pg. 34) tem o título DILMA NA LUTA ARMADA.
A análise de DILMA NA LUTA ARMADA, matéria da Época
A revista das organizações Globo reconstrói a trajetória de Dilma durante a ditadura:
- fala da família de origem búlgara da candidata;
- comenta que Dilma começou a se engajar na militância quando era estudante de Economia em Minas;
- cita as organizações clandestinas da qual Dilma fez parte: a Polop, a Organização, a Colina e a VAR- Palmares;
- a revista fala do Congresso das organizações clandestinas em Mongaguá, litoral de São Paulo;
Até aí não há nada de novo e bombástico. O que a revista prometeu na capa não foi entregue ao leitor, pois esta parte do passado de Dilma todos conhecemos, revelado em diversas oportunidades pela própria candidata.
Como eu disse no começo, a Época usou o melhor dos estilos Veja e Folha. O estilo Veja de ditar a verdade de um pedestal foi aplicado todo na capa da revista. O estilo Folha começa no exato momento que a Época vai explicar ao leitor a participação real de Dilma contra a Ditadura.
Lembram-se do Carlos é ladrão e amigo íntimo de José, portanto, José também é ladrão? É assim que a Época age. Em nenhum momento desta primeira reportagem Dilma é acusada diretamente de ter pego em armas, atirado em alguém ou ter participado diretamente de assaltos a bancos. Bem ao jeito Folha, a Época narra o seguinte: Dilma foi da Colina. A Colina, segundo o historiador Jacob Gorender, fazia “a pregação explícita ao terrorismo” (sic). Entre as atividades da Colina, estavam a expropriação (assalto), sabotagem e inteligência. A Colina foi responsável pela morte do oficial alemão Maximilian Von Westernhagem. Como o mesmo raciocínio de “José e Carlos”, o leitor da Época é induzido a: A Colina fazia terrorismo, roubava e matava. Dilma fazia parte da Colina, logo ela também matava, roubava e fazia terrorismo. Notem que em nenhum momento da matéria Dilma é acusada diretamente de tais fatos. A Época baliza o texto nos “processos da Justiça Militar contra Dilma”. Ora, se houvesse qualquer acusação direta de roubo, assalto ou terrorismo nos processos, seria obrigação da revista citá-los no ato e na íntegra.
A matéria continua no estilo Folha. A Colina assaltou bancos, roubou carros e matou policiais em Minas e no Rio. Dilma foi presa e entregou, sob tortura, pontos e nomes de colegas para a repressão (além de ladra e assassina, a Época diz ainda que Dilma é dedo-duro).
O roubo ao cofre do Adhemar
Na lista de “atividades” de Dilma, a Época relembra o roubo ao cofre da viúva do Adhemar. Vamos aos fatos:
- Adhemar de Barros foi governador de São Paulo e notoriamente sempre esteve envolvido em corrupção. É para ele que foi cunhada a expressão “rouba, mas faz”, conforme o tema desta Dissertação de Mestrado da USP (aqui);
- Após sua morte, parte do dinheiro, fruto da corrupção de anos, ficou guardado em um cofre na casa da amante no Rio de Janeiro (matéria na íntegra matéria na íntegra);
- O roubo foi organizado por duas organizações clandestinas: A Colina (de Dilma) e a VPR, do Capitão Carlos Lamarca. Dilma era importante demais para participar diretamente de qualquer operação. Ela sabia demais. A própria matéria da Época menciona o fato várias vezes. Antes disso, bem antes de Dilma pensar em ser candidata, uma matéria de 2003 da revista Veja fala a mesma coisa, que Dilma nunca participou diretamente de qualquer operação (aqui);
- O dinheiro do cofre do Adhemar trouxe uma situação financeira estável para a Colina e a VPR, que puderam financiar suas atividades. Nenhum integrante usou este dinheiro para si próprio ou ficou com parte dele, como fala esta reportagem do O Estado de S. Paulo (aqui).
As dúvidas sobre o passado de Dilma
Questionada pela Época, a assessoria de imprensa de Dilma fez o seu trabalho: informou que a candidata de Lula “nunca participou de qualquer ação armada, não foi interrogada sobre o assunto e sequer denunciada por qualquer ação armada, não sendo julgada nem condenada por isso”.
Se as informações da assessoria de imprensa de Dilma fossem mentirosas, os inquéritos militares nas mãos da Época facilmente provariam o contrário. Não provaram.
Ainda sim, a revista explicitou em um Box uma série de perguntas que acredita ser pertinente de resposta da candidata. Vamos a elas:
1 – Dilma estava armada no momento em que foi presa?
Eu me pergunto, isto é relevante jornalisticamente? Acho que não. Mas vamos supor que seja. A prisão de Dilma foi feita pelo delegado Fábio Lessa de Souza Camargo em 26 de fevereiro de 1970. Não foi registrada nenhuma arma em poder de Dilma. Mais uma vez a Época usa o estilo Folha: “ mas fulano de tal disse em entrevista que ela estava armada no dia”. Certo. Na dúvida, telefonei para um policial amigo meu, que rapidamente esclareceu: “Se Dilma estivesse armada, ela (a arma) seria citada no inquérito e seria usada como prova contra a própria Dilma, uma vez que porte ilegal de arma sempre foi crime no Brasil”. Por que um delegado do Dops iria omitir este fato do inquérito para ajudar uma suposta criminosa?
2 – Que tipo de treinamento com armas ela fez?
Informação completamente irrelevante. Seria irrelevante também perguntar uma coisa dessas para o Serra. Que diferença faz?
3 – Que papel Dilma teve no cofre do Adhemar de Barros?
Um papel de planejamento, jamais participou diretamente da ação, como ficou provado acima. Ela era importante demais para isso. Lembrem-se que aquele dinheiro do cofre era fruto de corrupção.
4 -Qual foi a extensão do papel de Dilma na organização de assaltos a bancos?
Nenhum. Um dos motivos da demora na fusão da Colina com a VPR é que os membros desta última, liderados por Carlos Lamarca, acusavam veladamente Dilma e sua turma de “assembleístas estudantis”, em outras palavras, o que Dilma sempre quis foi mobilizar as massas, está no texto da revista.
5 – Como foi a participação de Dilma nos Congressos da VAR- Palmares?
Informação completamente sem importância, assim como as próximas perguntas da Época: Qual foi o envolvimento de Dilma nas greves operárias de Minas em 1968? e Dilma teve contato com outras organizações armadas de esquerda de outros países da América Latina?
A última pergunta vale a pena ser respondida:
Dilma se arrepende de alguma atitude tomada naquele período?
A candidata do PT já respondeu esta faz tempo. Lembram-se daquele programa de TV em que ela parece ao lado de Lula? Naquela ocasião, Dilma disse: “quando o Brasil mudou, eu mudei também, mas nunca mudei de lado”. Dilma pode falar isso de “boca cheia”, agora Serra, Gabeira e sua turma sentem vergonha de seu passado de esquerda.
Segunda matéria: DILMA NO CÁRCERE
Eis um texto verdadeiramente jornalístico que vale a pena ser lido. Com a ajuda de 8 ex-militantes que viveram com Dilma, a Época reconstrói os 28 meses de cárcere da candidata de Lula.
Durante a leitura do texto, são reveladas ao leitor duas informações importantes:
- o horror das prisões irregulares, da ditadura e da tortura;
- o papel digno de líder de Dilma ao ajudar a todos naquela situação tão delicada. Em alguns momentos, ex-companheiras quebram paradigmas e falam de uma Dilma alegre e brincalhona, que adorava colocar apelidos nas colegas. Uma delas ganhou o singelo nome de melé (coringa da carta de baralho) de califon (nome do sutiã no Ceará).
Dilma tinha tudo para cair em depressão e isolar-se de tudo e de todos durante o período de cárcere. Era ditadura, estavam em pleno AI 5 e não havia esperança. Dilma não pensava assim e ela mesma virou A ESPERANÇA para as colegas, hora como a Dilma brincalhona, hora como a reflexiva, que analisava livros e textos como ninguém , e hora ainda como a Dilma mulher e confidente, que falava, em altas horas da madrugada, sobre amor, família e vida dolorosa nos porões da ditadura.
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Dag Vulpi