Dez regras da grande imprensa ao
abordar movimentos sociais
Por Osvaldo da Costa, na Adital
Convenções básicas (quem não cumprir
está sujeito à demissão):
1ª) Toda ocupação de terra deve ser chamada de invasão
Ao invés de usar o
termo adotado pelos movimentos sociais, "ocupação" – manifestação de
pressão para o cumprimento da Constituição pelo Estado e denúncia da existência
de latifúndios –, é mais eficiente para o objetivo de defesa do princípio da
propriedade privada a utilização da palavra "invasão" – tomar para si
pela força algo que não lhe pertence.
Dessa maneira,
implicitamente, estamos dizendo que discordamos dessa prática e a consideramos
ilegal, e conseguimos gerar a sensação de pânico generalizado em todos os donos
de propriedade, sejam elas rurais e produtivas, ou até mesmo propriedades
urbanas.
Observação: essa regra
não é generalizável. Para os casos em que os Estados Unidos invadem países,
destroem a infra-estrutura e matam a população, deve-se utilizar o termo
"ocupação".
2ª) Regra do efeito dominó: fale só do maior para bater em todos
O acordo da grande
imprensa é manter somente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
na pauta dos noticiários, e evitar sempre que possível falar da existência de
outros movimentos sociais. Para isso, quando se tratar de movimentos do campo,
basta usar sempre a expressão genérica "movimento dos sem-terra", ou
falar dos "sem-terra", sem mais detalhes.
Se a pauta exigir o
detalhamento do movimento, recomenda-se associá-lo sempre ao alvo principal,
com expressões como "movimento dissidente do MST".
Essa regra ainda
colabora para a desunião entre os movimentos, pois os menores se incomodam pela
invisibilidade e pelo fato de terem suas ações relacionadas sempre ao MST.
3ª) Reforma Agrária deve ser tratada como questão de polícia
Movimentos sociais e
reforma agrária devem, sempre que possível, ser tratados na página policial, no
caso de jornais impressos, e no bloco do crime e dos desastres, no caso dos
telejornais.
Caso não seja possível
enquadrá-los na seção policial ou em espaço próximo, use títulos para editorias
que lembrem o belicismo, como "campo minado". Não importa o que diga
sua matéria, os títulos devem falar por ela, mesmo que não tenham relação com o
conteúdo. Use tons sensacionalistas e fatalistas.
4ª) Nunca divulgue os artigos progressistas da Constituição Federal
Os artigos da
Constituição Federal que tratam da função social da terra, que integram o
código agrário – 184 a 191 – nunca devem ser mencionados em reportagens sobre
os movimentos sociais, para evitar a compreensão de que a ação de invasão de
terras pode ter algum respaldo legal.
É sempre recomendável
lembrar da lei de Segurança Nacional e da necessidade de uma legislação contra
o terrorismo no Brasil. O termo "Estado de Direito" é ideal para
isso. Considere qualquer manifestação uma afronta ao Estado de Direito, mesmo que
ele seja apenas o Direito do Estado.
Se falar do Estado de
Direito e suprimir os artigos progressistas da Constituição não for suficiente,
convém colocar as reportagens próximas à cobertura de ações terroristas ou,
levantar a suspeita de que há relação do movimento social com uma organização
terrorista ou guerrilheira estrangeira.
Conjunto de regras
para serem selecionadas e aplicadas conforme a conjuntura exigir:
5ª) Levante a bola para o oportunista de plantão
Não é verdade que o
papel da imprensa é apurar a verdade dos fatos. Todo aspirante deve saber que a
imprensa tem poder para gerar os fatos.
Além disso, apurar
fatos implica em sair da sua cadeira e nem todos eles podem ser apurados por
telefone. Basta fazer uma reportagem suspeitando de algo, e procurar um
oportunista que queira protagonizar a indignação pública para a suspeita ganhar
dimensão de notícia.
Sempre há alguém à
disposição esperando para se deslumbrar com as luzes dos holofotes. O exemplo
bem sucedido mais recente foi o caso da requentada pauta da suspeita da
legalidade do financiamento público para cooperativas da reforma agrária, em
que o presidente do Superior Tribunal Federal (STF) desempenhou o papel de
porta-voz da bancada ruralista, dando respaldo para a suspeita, e de quebra,
aproveitando para atacar o governo federal.
Se não houver ninguém
do Judiciário ou algum deputado, não importa, qualquer um, sem nunca ter ido a
um assentamento ou acampamento pode ser transformado em
"especialista" em questão agrária: sociólogos, filósofos e até
jornalistas.
6ª) Nem sempre devemos apurar os dois lados da notícia
Quando já conseguimos
incutir um pré-julgamento na opinião pública sobre o caráter marginal das ações
dos movimentos sociais, podemos reforçar essa opinião entrevistando somente o
lado agredido pelas ações, as vítimas dos movimentos. Fica implícita a
informação de que, como os integrantes dos movimentos são foras da lei, quem
deve escutá-los é a polícia e o poder judiciário. Se ainda assim tiver que
ouvi-los, seja breve e descontextualize a frase.
7º) Não deve existir noção de historicidade, nem de causa e conseqüência
em nossas reportagens
Não abordar as razões
da ação dos movimentos sociais, evitar a divulgação da nota à imprensa. Não
importa há quanto tempo às famílias estejam acampadas, quais promessas foram
feitas pelo governo, se a terra é do banqueiro que saqueou os cofres públicos
ou do coronel que vive do trabalho escravo. Se detenha nas conseqüências da
ação.
8°) Dramatização da repercussão das ações dos movimentos sociais
Retire o foco das
motivações estruturais e causas históricas e centre a abordagem nas
conseqüências para os indivíduos donos ou empregados das propriedades invadidas
ou atacadas.
– fale do prejuízo
econômico para o proprietário, e se possível faça uma entrevista com o mesmo ou
com um familiar próximo para mostrar a comoção da família diante do ataque
bárbaro. É importante mostrar o estado de choque emocional, e o ideal é que a
pessoa esteja chorando.
– surte grande efeito
a entrevista com trabalhadores da fazenda ou da empresa. O maior exemplo é o
caso da ação no horto da multinacional Aracruz no Rio Grande do Sul, em que uma
técnica de laboratório se fez passar por pesquisadora e, em prantos (!),
afirmou que a destruição das mudas de eucalipto acabou com mais de vinte anos
pesquisa.
Nesse caso, as
reportagens conseguiram colocar os movimentos sociais como contrários à ciência
e ao desenvolvimento tecnológico, evitando a pauta concreta da ação, que
se centrava na expansão ilegal das terras da empresa e na depredação da
natureza com o mono cultivo de eucalipto.
9ª) Campanha de desmoralização permanente dos movimentos
sociais
É sempre bom manter
semanalmente pautas de desgaste aos movimentos sociais, mesmo que não haja uma
ação que renda manchete. Nesses casos, a regra é trabalhar com associação,
encaixando uma reportagem que fale sobre um movimento após ou entre matérias
que falem, por exemplo, de casos de corrupção no Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), venda de terra e desmatamento em
assentamentos da Amazônia Legal, etc.
Bata nas mesmas
teclas, insista nas mesmas teses permanentemente, mesmo que elas já tenham sido
usadas antes. Insista, por exemplo, que o MST irá romper com o Governo Lula
desta vez, mesmo que o movimento afirme e demonstre desde o primeiro dia de
governo que nunca esteve atrelado.
E quando não for
possível tomar como alvo os movimentos sociais, vale mirar nas bandeiras de
luta deles, alegando estarem ultrapassadas, deslegitimando-as como parte da
solução atual para os problemas do país. Nesse caso, pode-se até reconhecer o
valor histórico que bandeiras como reforma agrária cumpriram no Brasil e em
outros países, mas deve-se usar essa manobra apenas para recusar essas
propostas no presente.
10ª) É fundamental saber manipular a dimensão subjetiva do
telespectador ou do leitor
Não é apenas com a
manipulação dos fatos e com a edição das entrevistas que podemos influenciar na
interpretação que os nossos consumidores farão. Na TV, a expressão facial e o
tom de voz dos repórteres, dos comentaristas e, sobretudo, dos âncoras, é
determinante. A adoção do semblante sério e do tom de voz grave deve indicar a
importância do tema.
Além da performance
dos jornalistas como atores, é recomendável que o pano de fundo do cenário
também traga imagens que gerem medo e desconfiança. O exemplo do Jornal
Nacional é o mais ilustrativo: para falar da reforma agrária e dos movimentos
que lutam por ela: aparece uma cerca rompida e três vultos disformes –
"afinal não são pessoas, são sombras" –, empunhando ferramentas de
trabalho como se fossem armas, numa ação de invasão da propriedade (e da casa
do espectador).
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