Visão do mundo
Ministro Gilmar Mendes: “Ninguém é soberano”
Por Rui Nogueira
Gilmar Mendes, o mais jovem ministro do Supremo Tribunal Federal, é fluente em alemão, aquela língua hábil em fundir palavras para não confundi-las. No país em que “corrupção” é chamada de “caixa dois” e em que se tenta tomar um crime pelo outro como forma de política, ele prefere o discernimento. Para Mendes, as decisões da Justiça brasileira deveriam ser até mais debatidas do que são, inclusive as do STF, que, alerta ele, também não é absoluto. E tem a sua máxima sobre as democracias: “No Estado de Direito, não há soberano. Ninguém pode exercer suas atribuições de forma ilimitada, nem mesmo o STF. Temos de criar instrumentos de crítica, auto-regulamentação e controle externo”
Uma Land Rover dada como “presente” também é caixa dois de campanha? O leitor já deve ter ligado o mimo à pessoa. Silvio Pereira, então secretário-geral do PT, recebeu a “doação” da GDK, uma empresa que fazia negócios com a Petrobras, onde o beneficiado pelo agrado tinha uma rede de influências. Depois da revelação, o moço saiu da vida política e, com certeza, prefere não ser lembrado pela história. Era ainda o começo do desmonte de uma gigantesca farsa. A pergunta que abre este texto foi feita por Gilmar Ferreira Mendes, que completa 50 anos no mês que vem e é o mais jovem integrante do Supremo Tribunal Federal (STF). Tratava-se de uma indagação retórica. Não! Land Rover, nas circunstâncias dadas, é corrupção. A exemplo de caixa dois, é crime. Mas é outro crime.
Mestre e doutor pela Universidade de Münster (Alemanha), Mendes é fluente também em alemão, mas sua língua jurídica não enrola poliglotas ou monoglotas. Não pratica a novilíngua ou o duplipensar orwellianos dos Estados totalitários. Como bem lembrou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, “caixa dois é crime”. Bastos sabe bem, no entanto, que há criminalistas espertos no Brasil tentando fazer uma operação casada: 1) num primeiro movimento, o tal “caixa dois” seria caracterizado como parte integrante de uma certa ética permissiva da malandragem, supostamente entranhada em nossa formação tropical; mais um pouco, ainda haverá alguém que lhe dedique sonetos, versos de farisaico lirismo; 2) num segundo movimento, agressões mais graves à lei vestiriam essa vestimenta mais simpática, mais palatável, menos “cadeiável”.
É nessa hora que a formação jurídica, digamos, germânica de Mendes o ajuda a ser um bom brasileiro. A língua alemã costuma fundir palavras. E o faz justamente para não as confundir.
A despeito da pouca idade para a carreira, muitos juristas e advogados vêem neste sul-mato-grossense de Diamantinos uma das “reservas técnico-constitucionais” da corte. A experiência como consultor jurídico da Presidência da República (governo Collor) e como advogado-geral da União (governo FHC) fornece-lhe uma boa bagagem. Em novembro de 2007, aposenta-se Sepúlveda Pertence. Antes dele ainda, em janeiro do ano que vem, sai Carlos Velloso. Celso de Mello, reconhecidamente a voz mais reluzente do STF hoje, passará a ser também o decano da Casa. Mello e Mendes, dizem os analistas, podem formar a dupla com a maior capacidade de influenciar os colegas e moldar a atuação do Supremo. Marco Aurélio de Mello, que alia conhecimento técnico-jurídico e disposição política para não deixar o governante da vez moldar a Constituição, deve completar o trio que cuidará de zelar pelo que há de bom na Carta, ajudando, por que não?, a mudar o que tem de ser mudado. Como? De olho no Estado de Direito.
E Mendes faz uma observação pertinente sobre o ditocujo: “No Estado de Direito, não há soberano. Ninguém pode exercer suas atribuições de forma ilimitada, nem mesmo o STF. Temos de criar instrumentos de crítica, autoregulamentação e controle externo”. Nesta entrevista à Primeira Leitura, o ministro deixa claro que não vê como ameaça ou sintoma negativo o debate das decisões judiciais. Ao contrário: ele o considera normal e uma evidência de capilaridade da Justiça. Ou seja: a máxima de que decisão de juiz a gente não discute, mas cumpre, é, antes de tudo, sintoma de subserviência da sociedade ao Estado. Não resulta em boa coisa; quase sempre, em injustiça.
Também em bom português, o ministro aponta uma certa tendência no país de homenagear o vício com supostas virtudes: cria-se uma legislação extremamente dura e restritiva sobre certos assuntos, o que aplaca consciências, embora se tenha claro que ela jamais será posta em prática. Ele viu algo semelhante no referendo sobre a proibição da comercialização de armas. Ao mesmo tempo em que aponta o problema, observa que a virtude deu um troco no vício: “A motivação era toda voltada para validar uma decisão de caráter simbólico”. E emenda: “É evidente que o debate obrigou ao alargamento do tema, colocando a pergunta tópica em um contexto mais amplo de segurança pública e do direito do cidadão a uma segurança pública efetiva”. Em síntese: tentou-se endurecer a legislação, e a população disse ao Estado que o problema estava em outro lugar. Vitória da sociedade desta vez.
Mendes gosta de velejar, mas só no lago Paranoá, não nas águas turvas do choque entre Poderes ou numa visão permanentemente pessimista sobre o país. Nesta conversa com Primeira Leitura, ele aponta os muitos sinais de que a institucionalidade brasileira avança, de que o Estado de Direito vai saindo do papel para entrar na vida dos brasileiros, certo, no entanto, de que muito resta a ser feito. Para Mendes, mais debate – e não menos – só pode fazer bem à democracia, ao direito e ao STF: “Na prática, o que se verifica é que temos uma cultura em desenvolvimento, e, em linhas gerais, até surpreendem a aceitação da judicialização e a legitimidade que se empresta às decisões do Supremo”. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
PODER, PODERES
Primeira Leitura: O sr. foi uma das poucas vozes do Judiciário que repudiaram publicamente declarações que tratam qualquer esquema de corrupção como caixa dois de campanha. Por quê?
Gilmar Mendes:Tenho a impressão de que alguns grupamentos políticos estão usando a expressão “caixa dois” como se fosse uma palavra mágica que absolve todo tipo de prática ilícita e até criminosa. Sabemos dos problemas sérios envolvendo o financiamento das campanhas eleitorais, sabemos que não é um problema brasileiro e que esse é o grande teste das democracias modernas. Até em países com financiamento público de campanha, como no sistema político-eleitoral alemão, houve grandes escândalos nessa área. Mas as denúncias que vêm sendo apuradas e feitas no Congresso não guardam a mais remota relação com a prática do caixa dois, o financiamento irregular das campanhas. Estamos diante de notórias práticas de corrupção. Então, encobrir todas essas práticas sob o argumento de uso do caixa dois parece uma atitude com o objetivo de obter uma absolvição que não se justifica. Precisamos separar eventuais erros ligados ao financiamento da campanha das práticas criminosas.
Primeira Leitura: A relação Judiciário-Legislativo nem sempre é pacífica. O Congresso recorre muito ao caixa dois de campanha. Por quê?
Gilmar Mendes: Tenho a impressão de que alguns grupamentos políticos estão usando a expressão “caixa dois” como se fosse uma palavra mágica que absolve todo tipo de prática ilícita e até criminosa. Sabemos dos problemas sérios envolvendo o financiamento das campanhas eleitorais, sabemos que não é um problema brasileiro e que esse é o grande teste das democracias modernas. Até em países com financiamento público de campanha, como no sistema político-eleitoral alemão, houve grandes escândalos nessa área. Mas as denúncias que vêm sendo apuradas e feitas no Congresso não guardam a mais remota relação com a prática do caixa dois, o financiamento irregular das campanhas. Estamos diante de notórias práticas de corrupção. Então, encobrir todas essas práticas sob o argumento de uso do caixa dois parece uma atitude com o objetivo de obter uma absolvição que não se justifica. Precisamos separar eventuais erros ligados ao financiamento da campanha das práticas criminosas.
Primeira Leitura: A relação Judiciário-Legislativo nem sempre é pacífica. O Congresso recorre muito ao Supremo, o que não implica necessariamente a submissão dos políticos ao império da lei. Como o sr. descreve e avalia essa relação?
Gilmar Mendes: Nós temos sinais equívocos nesse contexto. Se o Supremo diz que há uma omissão inconstitucional, o Congresso não corre logo para realizar a manifesta decisão do tribunal. Não há esse legalismo todo. Mas, por outro lado, nós não temos no Brasil, tal qual em alguns países, nenhum comportamento recalcitrante quanto ao cumprimento das decisões do Supremo. Nossas decisões são até pouco criticadas se considerarmos a média dos debates de direito comparado em geral. Há uma taxa muito alta de aceitabilidade e de reconhecimento de legitimidade das nossas decisões. Qualquer liminar do STF é executada sem tergiversações, e a instituição tem grande credibilidade junto à opinião pública e no âmbito dos poderes políticos, embora haja algumas contradições. Alguns grupos políticos costumam dizer que, para o Legislativo, um dos Poderes da República, as decisões do Supremo não têm caráter “mandamental”, mas apenas “recomendatal”. Na prática, o que se verifica é que temos uma cultura em desenvolvimento, e, em linhas gerais, até surpreendem a aceitação dessa judicialização e a legitimidade que se empresta às decisões do Supremo.
Primeira Leitura: Por exemplo?
Gilmar Mendes: O caso mais recente é o da CPI dos Bingos. A Mesa do Senado decidiu não fazer a indicação dos nomes para compor a Comissão Parlamentar de Inquérito. O Senado instalou a CPI imediatamente depois da decisão do STF. Era um tema sensível do ponto de vista político, que podia gerar uma tensão dialética forte.
Primeira Leitura: Já no caso da cassação do senador João Capiberibe (PSB-AP), o Senado chegou a fazer uma sessão em que cerca de 60 dos 81 senadores pregaram um jeitinho de revisar a decisão do Judiciário. O sr., que é vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não achou aquilo perigoso?
Gilmar Mendes: Avalio aquela sessão mais como a expressão natural de um ato de solidariedade e apreço pelo colega senador. A decisão foi cumprida. A propósito, talvez devêssemos fazer uma análise crítica da legislação eleitoral. A minha visão é que o Congresso sempre aprova uma legislação de forte teor simbólico para punir todo tipo de abuso de todo tipo de candidato, de vereador a prefeito, passando por deputados, senadores, governadores e presidentes. E nós sabemos que, entre aquilo que está na legislação e a prática em geral, vai uma grande diferença. O resultado disso é um fenômeno curioso: transfere-se para o juiz eleitoral a definição da eleição. O juiz vira urna, e temos situações caricatas. O conjunto dos eleitores que deram a vitória ao candidato vencedor nas urnas olha para a decisão do juiz eleitoral como interventor em uma decisão de tapetão. Na Justiça Eleitoral, tenho propugnado pelo princípio da proporcionalidade. No caso Capiberibe, uma análise profunda e complexa mostra que havia fortes provas da existência de um sistema de compra de votos.
Primeira Leitura: O Congresso pode fazer o quê?
Gilmar Mendes: Talvez seja o momento de o Legislativo fazer uma análise crítica e sincera da legislação aprovada. Os juízes não estão inventando a lei, mas apenas aplicando aquilo que o Congresso aprovou. Diria, até, que aplicando de maneira mitigada, pois a legislação eleitoral, tanto quanto a legislação penal, está prenhe desse simbolismo todo: vedações radicais, impedimento de um candidato participar da inauguração de uma obra e coisas do gênero. Se é isso que está na lei, é a isso que os políticos têm de se submeter. Acho que a Justiça Eleitoral até tem feito um esforço para racionalizar essa legislação simbolicamente draconiana.
Primeira Leitura: O sr. está dizendo que é pernicioso esse faz-de-conta que torna a lei rigorosa para dar uma satisfação à sociedade, porém embute o desejo de que o rigor da lei não seja aplicado porque, muitas vezes, chega a ser irracional e desconectado da prática política? Mas compra de voto é abuso claro de poder econômico.
Gilmar Mendes: Vou contextualizar e exemplificar com a esfera penal, pois isso é um problema de cultura, algo que precisamos superar em nome da objetividade. Dada a incapacidade de o Estado oferecer medidas adequadas de combate à impunidade e ao abuso na área de segurança pública, apela-se para o simbólico e, em geral, com o agravamento das penas que, na média, não serão aplicadas. São essas fórmulas de alargamento da classificação dos crimes hediondos. Isso é uma tentativa de pacificar consciências.
Primeira Leitura: De qualquer forma, a Justiça Eleitoral tem combatido com mais empenho o abuso do poder econômico desde a presidência de Nelson Jobim no TSE, em 2001 e 2002.
Gilmar Mendes: Sim. No que diz respeito ao abuso do poder econômico, o tribunal tornou-se muito mais presente. A população percebe a nova visão, o trabalho de banimento do mapismo e compra de votos, todos aqueles abusos decorrentes das fraudes tradicionais, no que o processo eletrônico de eleição também ajudou muito. Mas há aspectos que estão por adequar ao instituto da reeleição, por exemplo.
ESTADO E ESTADO DE DIREITO
Primeira Leitura: O sr. foi uma das pessoas mais perseguidas por grupos do Ministério Público que funcionavam como braço do PT dentro da instituição. O MP melhorou? Esses grupos desapareceram?
Gilmar Mendes: O Ministério Público, com a autonomia que tem, é uma das grandes conquistas da Carta de 1988. O Brasil é hoje institucionalmente mais forte por conta, em parte, dessa autonomia de ação do MP, o que chamou a atenção de grupos partidários. Eles tentaram capturar segmentos do Ministério Público, dar-lhes uma funcionalização absolutamente antirepublicana. Usou-se a ação de improbidade para perseguir. Havia a suspeita, infelizmente confirmada, de que alguns procuradores aceitavam ações de improbidade confeccionadas em gabinetes do Congresso. O abuso foi de tal ordem que, hoje, conta como ponto positivo ter no currículo uma ação promovida por esses procuradores, uma minoria.
Primeira Leitura: Os procuradores Luiz Francisco e Guilherme Schelb, símbolos, na minha opinião, dessa partidarização petista, sumiram. Isso é um sinal de que o Ministério Público vive outra fase?
Gilmar Mendes: Tenho a impressão de que está mais maduro. A própria imprensa, que também validou esse tipo de procedimento, hoje é muito mais crítica a esse tipo de procedimento. Ganharam importância as correntes que, dentro do próprio Ministério Público, faziam a reflexão crítica desse comportamento. Estamos superando a fase em que qualquer oportunista que se dissesse oposicionista era blindado pela imprensa e setores do Ministério Público.
Primeira Leitura: As instituições do Estado de Direito se fortalecem no Brasil? Crises podem dar a impressão de que não.
Gilmar Mendes: Tivemos, sim, um grande ganho institucional com a Carta de 1988. Ela impôs desafios sérios, alguns cumpridos pela metade, mas fortaleceu instituições como o próprio Judiciário, o Ministério Público, a imprensa. Criouse um sistema que empresta garantias ao exercício dos direitos dos cidadãos. A Constituição foi feita e aprovada em um contexto difícil: inflação, problemas econômicos... Depois vieram o impeachment, várias CPIs importantes, investigações complexas da Polícia Federal. Mas tudo se deu dentro da mais absoluta normalidade institucional porque há instrumentos para manter essa normalidade. Alguns se queixam do excesso de emendas constitucionais, como se houvesse a ideologia do “emendismo”. Se me permite outro neologismo, eu diria que o “emendismo” é decorrente do “analitismo” da Carta, que exige essas emendas. Mas repare que as emendas não alteraram o perfil central da Constituição, os direitos e garantias individuais, a tripartição dos Poderes. Pelo contrário, aprofundaram esses princípios ao corrigir o uso das medidas provisórias, ao aprovar uma emenda que não permite a transformação da imunidade parlamentar em impunidade. Não é uma Carta emendada por propostas tópicas e casuísticas, como aconteceu na Argentina, onde a Corte Suprema se adaptou aos Executivos, a começar pelo de Carlos Menem.
Primeira Leitura: Em que medida o Supremo Tribunal Federal dá a sua contribuição prática a essa institucionalidade?
Gilmar Mendes: Nós experimentamos uma singularidade constitucional que merece ser destacada: somos o país que pratica o controle da constitucionalidade até de emendas constitucionais. O que isso quer dizer? O STF derrubou parte da emenda 41 [a da reforma da Previdência, proposta pelo governo Lula] ,e foi acusado até de “legislar”. Funcionamos como uma terceira “Câmara”, e isso é um ato de reforço da normalidade constitucional. O STF criou uma forte jurisprudência sobre quebra de sigilo, execução de mandados de busca e apreensão etc., o que não limita as CPIs, mas evita abusos. Tudo isso faz parte da forte institucionalidade alcançada pelo país. Tenho uma definição de Estado de Direito que resume o que quero dizer: “No Estado de Direito, não há soberano”. Ninguém pode exercer suas atribuições de forma ilimitada, nem mesmo o STF. No caso do Supremo, temos de criar instrumentos de crítica, auto-regulamentação e controle externo.
Primeira Leitura: O referendo sobre o comércio de armas foi um exemplo de aprofundamento da democracia e da institucionalidade?
Gilmar Mendes: A motivação do referendo era toda voltada para validar uma decisão de caráter simbólico. A experiência democrática, as eleições de dois em dois anos e outras práticas fizeram com que a população não só participasse do debate, mas também o ampliasse. É evidente que o debate obrigou ao alargamento do tema, colocando a pergunta tópica em um contexto mais amplo de segurança pública e do direito do cidadão a uma segurança pública efetiva.
INTERNA CORPORIS
Primeira Leitura: Ministro, nunca se viu uma corte que debata tão abertamente os assuntos, gerando até, não raro, uma crispação que beira o bate-boca. Isso é fruto apenas da renovação de nomes feita nos governos FHC e Lula?
Gilmar Mendes: Houve, sim, uma mudança muito significativa na composição da corte. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em dois mandatos, teve a oportunidade de indicar três ministros [além de Mendes, Nelson Jobim e Ellen Gracie]. O presidente Lula, logo nos primeiros meses de governo, indicou outros três nomes, o mesmo número de FHC em oito anos [Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Ayres Britto]. Depois, indicou um quarto nome [Eros Grau] no segundo ano de mandato. E ainda indicará um quinto [o ministro Carlos Velloso aposenta-se compulsoriamente em janeiro próximo]. O tribunal ganhou um perfil mais plural em razão dessas múltiplas indicações.
Primeira Leitura: Na análise das leis, no controle constitucional, enfim, no ato de julgar mudou o quê?
Gilmar Mendes: Mudou o perfil da corte por causa da coincidência de concentração de nomes a indicar em dois governos, mas também mudou porque a Constituição de 1988 renovou o papel do Supremo. A corte adquiriu competências mais amplas em matéria, por exemplo, de controle de constitucionalidade e de defesa de direitos e garantias individuais. Talvez esta seja a primeira composição que reflete o espírito da Carta de 1988, a primeira composição que apreendeu o pluralismo social do texto constitucional. Das composições anteriores para a atual, nós vivemos uma transição do espírito das Cartas de 1967 e 1969 para a Constituição de 1988. De certa forma, nós tínhamos uma Carta de 1988 sendo interpretada com recorrência constante às de 1967 e 1969. As normas que não se mostravam explicitamente inscritas na de 1988 e geravam questionamentos eram debatidas a partir dessas duas Constituições imediatamente anteriores.
Primeira Leitura: Essa competência mais ampla da Corte Suprema incomoda? É o perfil ideal? Não há um exagero de competências atribuídas ao STF?
Gilmar Mendes: O modelo constitucional tal como foi pensado em 1988 contém algumas ingenuidades. Como, por exemplo, a idéia de que o Supremo deveria dar respostas pessoais a cada angústia e anseio do cidadão que levasse lá o seu recurso. Mas a grande crise está no modelo do recurso extraordinário que foi pensado como um direito de índole fortemente subjetiva. Por isso é que assistimos à explosão de processos: saímos de 18 mil, em 1988, para 105 mil em 2000; em 2002, já batíamos nos 160 mil [em 2004 foram 84 mil]. Os processos subjetivos foram pensados, também, de maneira a permitir recursos muito amplos. A Adin [ação direta de inconstitucionalidade] consolida o controle abstrato, é uma ação de interesse geral e com eficácia geral. Em alguns países europeus, só têm legitimidade para tanto a federação, o governo, uma minoria parlamentar, eventualmente os Estados membros. No Brasil, não: a legitimação é ampla, e a Adin pode ser impetrada, por exemplo, por uma confederação sindical, pela OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], governadores, Mesas das Assembléias Legislativas etc.
Primeira Leitura: Ainda que o Supremo esteja atolado em processos, a combinação da renovação na composição da corte com essa facilidade de recurso aproximou-o da sociedade?
Gilmar Mendes: Sim, sem dúvida. Foi um fenômeno típico de uma sociedade de massa, com um tribunal a dar respostas individuais aos pleitos formulados com base em uma Constituição de perfil analítico. Isto está sendo revisto, até por necessidade. Acho que, com a reforma do Judiciário, aprovada em dezembro do ano passado, estamos indo para o ponto de equilíbrio, permitindo que o Supremo se concentre nos casos de repercussão geral e que se estabeleça um filtro de destaque nos juízos de relevância. A emenda não está regulamentada, mas a lei será nesse sentido. Mas é verdade, sim, que a ampliação de competências fez com que o Supremo participasse ativamente desse processo que nós chamamos de judicialização da política e da vida nacional em geral. O STF foi chamado a se manifestar sobre as mais diversas questões nacionais e, aqui e ali, ora foi acusado de omissão, ora de excesso de ativismo. Enfim, foi um participante privilegiado.
JUSTIÇA É SERVIÇO
Primeira Leitura: O sr., indiscutivelmente, transformou a AGU (Advocacia-Geral da União), “o maior escritório de advocacia do mundo”, como já foi chamada, em um órgão auxiliar de defesa do Estado, e não do governo. A União aprendeu a se defender ou voltou a ser refém daqueles interesses corporativos que tomavam de assalto os cofres públicos?
Gilmar Mendes: O modelo subsistiu, na sua essência, e hoje se tem uma concepção clara sobre o que é a advocacia do Estado. Não é mais vista como uma advocacia negativa, aquela em que os próprios advogados públicos se viam na antipática função que era entendida como defesa do governo, em vez de defesa do Estado. Hoje se entende como defesa do interesse e do patrimônio públicos. Isso está mantido e vem da visão institucional que o governo Fernando Henrique implementou sobre o assunto. Nós tínhamos quase 190 autarquias e fundações, cada uma delas com uma procuradoria, que atuava com relativa independência da AGU. Fizemos uma articulação institucional que concentrou na AGU a representação judicial dessas autarquias, criando-se a Procuradoria Federal. Foi uma grande reforma administrativa e, mais do que isso, institucional. A defesa do Estado tornou-se muito mais efetiva. Só para se ter uma idéia, grande parte do déficit que havia nas universidades públicas federais decorria de ações em que o Estado era mal defendido, e a sentença sempre acabava fornecendo um precatório. Nos últimos tempos, percebi que talvez seja preciso uma atenção especial para com autarquias grandes, como o INSS. Sozinho, ele concorre em número de processos com a União. Sinto que, por conta das trocas de ministros e dos presidentes da autarquia, há uma descontinuidade no Ministério da Previdência, e, por conta disso, os jovens procuradores do INSS, um grupo muito bem preparado, perdeu a intensidade na atuação que tinha em sustentações orais no Supremo. Essa presença tornou-se mais rara, sinalizando um colapso. Eles não desaprenderam, mas, certamente, perderam o estímulo.
Primeira Leitura: O sr. ficou surpreso com a tentativa do governo, na chamada MP do Bem, de querer limitar o pagamento de benefícios previdenciários decididos nos juizados federais especiais?
Gilmar Mendes: Também é um sintoma dessa descontinuidade administrativa. Foi a AGU, juntamente com o STJ [Superior Tribunal de Justiça], no governo FHC, que conduziu esse processo de criação dos juizados, e o entendimento era o de que podíamos oferecer meios para se fazer justiça com celeridade. Causas que levavam até oito anos para ser resolvidas poderiam ser sentenciadas em seis meses. O pagamento para causas até 60 salários mínimos era imediato. A tentativa de limitar o pagamento desses valores, instituindo um modelo de precatório no âmbito dos juizados federais especiais, seria um brutal retrocesso do ponto de vista social. Isso é decorrente, pelo menos em parte, da crise da atuação da advocacia pública no INSS. Admitir a existência do juizado especial, sem o pagamento imediato, é não pensar no cliente da Justiça. É mais honesto a gente dizer que não pode pagar os 60 mínimos e reduzir o valor. O Brasil saiu do governo FHC muito forte do ponto de vista institucional. Basta citar a Lei de Responsabilidade Fiscal [LRF]. Quando propusemos a LRF, não acreditávamos que fosse aprovada tão rapidamente e que tivesse uma implementação imediata tão exitosa. Na esfera judicial, impusemos um padrão civilizatório ao decidir que, verificada a perda objetiva da causa, o Estado não iria mais usar recursos protelatórios que só prejudicavam a população. Isso aconteceu claramente no acordo que fizemos com 32 milhões de pessoas para pagamento do FGTS devido em função dos erros de cálculo envolvendo planos econômicos. Ao se criar um parâmetro para não protelar, ao se criar o Juizado Federal Especial, que gera justiça rápida e cumprimento imediato da sentença, o Estado atende ao interesse social e não a grupos corporativos, específicos. É um padrão de comportamento que reforça a valorização institucional do indivíduo.
Primeira Leitura:O sr. falou em “padrão civilizatório” ao dar exemplos de avanços institucionais, mas, para muita gente, alguns partidos em especial, isso é “destruição do Estado”, é reforço do “Estado neoliberal”, e por aí vai. Os amantes do estatismo não gostam dessas medidas.
Gilmar Mendes: Num sistema democrático, não é possível fazer reformas totalizantes. E ainda bem que assim é, pois isso exige negociações com todos os grupos sociais e políticos envolvidos nos assuntos a reformar. Quanto mais amplas foram as emendas constitucionais propostas, mais amplamente elas foram retalhadas pelo Congresso. A emenda 20 da reforma previdenciária [proposta no início do primeiro mandato do governo FHC] era tão ampla que foi completamente picotada. O presidente Fernando Henrique tinha a exata noção dessa complexidade do processo democrático.
Primeira Leitura: Que importância o sr. dá à reforma do Judiciário e que destino e efeitos espera da que foi aprovada no fim do ano passado?
Gilmar Mendes: Não devemos pensar na reforma do Judiciário como um ato pronto e acabado, colocado na moldura da emenda constitucional. A reforma envolve paradigmas constitucionais, mas envolve, também, contínua modernização administrativa. Temos de ver o Judiciário como serviço ao público e exigir mudanças de mentalidades, de caráter cultural. O texto da Constituição de 1988 é extremamente positivo no que concerne à defesa da cidadania, o que diz respeito, também, ao Poder Judiciário. Há muito a fazer quanto à forma como os serviços do Judiciário estão estruturados. Nós solenizávamos muito o Judiciário, mas a Constituição de 1988 reforçou a idéia de prestação do serviço jurisdicional, que é a razão de ser do Poder Judiciário: distribuir justiça. Daí a importância de democratizar o Poder Judiciário.
(Entrevista publicada na revista Primeira Leitura de novembro de 2005)
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