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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Em busca da individuação: Fragmentos das primeiras sombras

 

(Caldeirão, Santa Teresa — 1966)

O retorno às origens

Ao revisitar as origens em Caldeirão, um vilarejo encravado nas montanhas de Santa Teresa, busco compreender a própria individuação e os ecos da infância que ainda o habitam.
Entre o aroma do café coado, o gesto do pai e o mistério do porão, reencontro o primeiro chamado da alma — o instante em que o olhar interior desperta e o menino começa a pressentir o caminho que o conduzirá de volta a si mesmo.

O território da infância

Ao buscar minha individuação e decifrar as camadas sombrias que me afastam do Self, percebo que a infância transcende a simples lembrança.
É um território fundacional — o mapa primordial do inconsciente.

Cada cheiro, cada som, a luz matinal no vilarejo de Caldeirão – incrustado nas montanhas do Espírito Santo – persistem em mim. É como se a alma retivesse o poder de retornar àquele tempo em que o mundo cabia nos limites de uma casa.

Uma casa humilde, cercada por florestas virgens, de onde se avistava, pela janela, o rio Santa Maria correndo silencioso.

O calor do fogão a lenha, a mistura inconfundível do café coado na hora com o leite recém-ordenhado e o aroma do pão caseiro: era o perfume das manhãs em que meu pai já estava de pé, muito antes do sol, acendendo o fogo e preparando o café com o mesmo zelo que dedicava à terra.

O rito da bênção

Eu acordava com o estalar da lenha e corria descalço para a cozinha.
Ele me recebia com um sorriso sereno:
— Bom dia, rapazinho!
Eu respondia, ainda meio sonolento:
— Bença, pai!

Ele pousava a mão calejada sobre minha cabeça e dizia:
— Deus te abençoe, meu filho.

O homem que hoje escreve ainda carrega o peso dessa bênção — não como um simples traço do passado, mas como uma presença que atravessa o tempo e o define.

Após o café, descíamos juntos as escadas de pedra, sempre úmidas do orvalho noturno, em direção ao tanque.
Ali, uma bica jorrava água incessantemente, alimentada por uma nascente oculta na mata.
Meu pai lavava meu rosto, retirando as manchas do café e o vestígio final do sono. Era um despertar bruto — quase um batismo.

A ausência da mãe

O inverno de 1966 trazia um rigor incomum.
Com o nascimento de meu irmão, o calor do colo de minha mãe se tornou, subitamente, inacessível.

O quarto, escuro e fechado para o resguardo, era agora um território proibido.
Eu me aproximava cautelosamente, abria a porta devagar e via apenas um vulto: o pano branco que envolvia o bebê e o rosto dela, sereno, banhado por um feixe de luz.

Ela me pedia que fosse forte, que assumisse a postura de “o rapaz da casa”.
Naquele instante, o menino que eu era começava a intuir — sem compreender — que o amor também pode residir na ausência.
E que crescer é, às vezes, aprender a esperar pelo retorno de um olhar.

Enquanto minha mãe repousava, meu pai multiplicava os cuidados para comigo.

O refúgio no porão

Eu voltava para a frente da casa e parava diante da entrada do porão.
Minha cabeça já alcançava quase o nível do piso, mas aquele subterrâneo seguia sendo meu refúgio particular.

O chão de terra batida, o cheiro forte das madeiras, as ferramentas empilhados, a penumbra...
Tudo ali parecia pulsar em sincronia com minha respiração.

Às vezes, eu captava um ruído sutil — algo que se movia com lentidão.
Talvez um rato.
Talvez o vento.

Mas o menino pressentia algo mais: uma presença, um olhar.
Não era medo. Era curiosidade.
Um olhar vindo do interior da sombra, que parecia me reconhecer.

Hoje, entendo que aquele prenúncio era o primeiro contato com a Sombra — o duplo que habita cada indivíduo, descrito por Jung: o lado esquecido, instintivo, o mistério da natureza humana.

O menino nada sabia disso. Ele apenas sentia que, no fundo do porão, havia “alguém” — invisível, mas real — que o observava e o protegia.

O primeiro chamado da alma

Do lado de fora, a vida prosseguia: o mugido das vacas, o canto dos galos, o eco distante da cachoeira.
Mas dentro do porão, o tempo era suspenso.

Foi ali, entre o cheiro da terra úmida e o murmúrio do vento, que nasceu o primeiro apelo da alma —
uma voz silenciosa que se inscreveu em mim:

“Olhe para dentro, menino.
É lá que tudo, de fato, começa.”

Fragmento de um projeto literário em construção “Título indefinido”
Autor: Dag Vulpi

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