Com certo atraso, e lá se vão quase 500 anos, o Brasil está descobrindo a cachaça. E agora quer que o mundo a conheça também. Poucos produtos carregaram a carga simbólica (para o bem e para o mal) de ser algo intrinsecamente brasileiro, nascido, fermentado e destilado quando o próprio País nascia, crescia e construía sua identidade.
As histórias do Brasil e da cachaça são indissociáveis. Estão tão entrelaçadas que só agora, quando o País redescobre seus produtos, sua cozinha, a cachaça vem se desvencilhando de estigmas e está entrando com tudo no radar.
No ano passado, Salinas, uma das regiões produtoras mais importantes do País, recebeu do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) o selo de Indicação Geográfica, uma garantia de que métodos tradicionais de produção continuam a ser utilizados. A cidade de Paraty foi a primeira região a receber o selo, em 2007.
A partir deste ano, a cachaça também entrará no mercado americano ostentando no rótulo seu nome original: cachaça. Até o ano passado, quando o acordo entre Brasil e Estados Unidos foi assinado, a bebida recebia a escalafobética denominação de "brazilian rhum".
Com o acordo, acredita-se que os impostos cobrados pela cachaça no mercado americano terão uma redução de 40%. Segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), os produtores brasileiros têm potencial para ganhar uma grande fatia do mercado americano (atualmente, o maior importador de cachaça é a Alemanha).
De olho nos Estados Unidos, uma grande marca contratou como garoto-propaganda o ator John Travolta, para sambar e tomar cachaça nas areias cariocas.
Antes de tudo, porém, é importante entender o que é cachaça. Toda cachaça é uma aguardente, mas nem toda aguardente é uma cachaça. Aguardente de cana é um destilado feito com mosto fermentado de cana-de-açúcar ou destilado simples de cana-de-açúcar com graduação alcoólica entre 38% e 54%. Cachaça é produzida unicamente no Brasil, feita com mosto fresco fermentado obtido do caldo de cana-de-açúcar e tem graduação alcoólica entre 38% e 48%. E o rum? Rum não tem nada a ver com essa história. Embora seja parente da cachaça, é feito com melaço da cana fermentado e destilado. Já pinga é só um dos mais de 700 sinônimos (muitos deles engraçadíssimos, alguns impublicáveis), pelos quais a cachaça é conhecida.
Em um cenário com estimados 40 mil produtores e 5 mil marcas registradas, pouquíssimos Estados da federação não produzem cachaça – e eles estão na Região Norte do Brasil. Cerca de 44% da produção nacional vem de São Paulo. Ceará e Pernambuco produzem 12%, enquanto Paraíba, Minas Gerais e Rio de Janeiro, 8%. O Paraná fica com 4%. Em Minas, quase 50% de toda a produção de cachaça é de alambique.
O mundo da cachaça é vasto e pouco explorado. Ainda existem mais perguntas que respostas. Essas, certamente, virão com estudos e pesquisas que dirão quais as melhores madeiras para envelhecê-la (mais de 30 já são usadas) e o que cada uma delas confere à bebida. É possível falar em terroir para cachaça? Muitos acreditam que sim, outros categoricamente afirmam que não, mas não há argumentos suficientemente sólidos. Por enquanto, essa é uma das muitas questões que pairam no ar e só começarão a ser respondidas depois de muita pesquisa e estudo.
TOME UMA
As primeiras mudas de cana-de-açúcar, planta natural do Sudeste Asiático, chegaram ao Brasil em 1531, com a expedição de Martim Afonso de Sousa pelo litoral paulista. O colonizador português fundou a Vila de São Vicente e foi ali que mandou construir os primeiros engenhos de açúcar.
Na bagagem dos portugueses também vieram alambiques de destilação, que logo passaram a ser usados para produzir o ancestral da cachaça, o "vinho da terra", também conhecido como "jeribita", feito com o caldo da cana-de-açúcar. Não há como saber com precisão, mas é muito provável que ali, no litoral paulista, tenham sido destiladas as primeiras cachaças.
Então conhecida como vinho da terra, logo a bebida ganhou nome próprio: cachaça. O batismo vem da palavra espanhola cachaza (vinho inferior) e, vejam só, já nasceu estigmatizada.
De São Vicente, o cultivo e a fabricação chegaram a Paraty e a cidade virou sinônimo de cachaça. "Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati", já cantava Carmen Miranda sobre o folião de Camisa Listrada, na canção de Assis Valente.
Não demorou nada para a cachaça cair no gosto popular. Antes bebida de índios e escravos, se tornou um importante negócio, prejudicando os lucros da metrópole (parte da cana que antes virava açúcar começou a virar cachaça) a ponto de Portugal resolver proibir, pela primeira vez em 1649, a produção do vinho da terra em todo o País.
A proibição não adiantou. A cachaça continuou sendo produzida e, em 1800, já era até moeda de troca no comércio de escravos. Mas talvez venha daí a expertise na fabricação clandestina que Câmara Cascudo descreveu em História da Alimentação no Brasil. "Alguns trabalhavam durante a noite, madrugada, com a destilação, os alambiques escondidos e disfarçados no mato como princesa encantada".
NA PRESSA, NEM COMECE
Em uma sexta-feira fria de julho, na semana com temperaturas das mais baixas já registradas no País, o dr. Leandro Marelli só tinha uma preocupação: manter alguns micro-organismos confortavelmente aquecidos no caldo de cana-de-açúcar. É que bem quentinhos, esses micro-organismos, da espécie Saccharomyces cerevisiae, poderiam, enfim, começar a transformar os açúcares do caldo de cana em álcool, durante a fermentação.
Poucas horas antes, a cana-de-açúcar havia sido colhida e moída no engenho da Fazenda Guadalupe, em Pirassununga, no interior paulista, e transportada até a vizinha Analândia, cidade com pouco mais de 4 mil habitantes, para ser fermentada e destilada no alambique de cobre do Chalé Macaúva.
O processo de produção de uma boa cachaça é simples, mas exige rigor e dedicação. Preferencialmente, a cana deve ser cortada e moída no mesmo dia, para evitar a deterioração do açúcar. Os alambiques de cobre neutralizam aromas desagradáveis, pois o cobre reage com compostos sulfurados e evita a contaminação.
Preparado o fermento, o ideal é transferir o caldo para a dorna, aos poucos, para melhorar o desempenho do fermento. Assim que começa a borbulhar, o mosto, ou caldo, muda de nome e de gosto: passa a se chamar vinho, e nele já dá para notar um leve frisante alcoólico. A fermentação leva, em média, 24 horas, e ao final dela, o vinho ganha um agradável aroma de fruta madura. Terminada a fermentação é hora de acender o fogo que vai alimentar o alambique de cobre. Um detalhe curioso do forno do Chalé Macaúva é que a argamassa foi dispensada e, para unir os blocos, foi usada garapa - esse antigo método caipira, não deixa de ter seu lirismo para os que vêm de fora.
Com o vinho na panela do alambique é preciso esperar algumas horas até que o líquido aquecido vire gás e depois líquido novamente. "O segredo da boa cachaça é a paciência", diz Marelli. A primeira fração destilada é a cabeça; em seguida, vem o coração e, por fim, a cauda. Uma boa cachaça se faz usando apenas o coração, a parte mais nobre (veja no box).
No comando do alambique, Leandro Marelli, pós-doutor pela Esalq/USP, especialista em tecnologia de bebidas e um dos autores da cartilha Produção de Cachaça de Qualidade, teve a ajuda de Gabriel Foltran Guimarães, produtor da cachaça Engenho Pequeno, em Pirassununga, e Milton Lima, criador do site cachaças.com e proprietário do Chalé Macaúva.
A cachaça ficou boa? Embora o doutor Marelli afirme, sem pestanejar, que sim, a resposta só será confirmada em seis meses. Terminada a destilação, é preciso esperar. A cachaça requer, no mínimo, seis meses para "amaciar", armazenada em vidro, inox ou madeira. É nesse breve período de descanso que serão eliminados os compostos químicos indesejáveis formados durante a fermentação e a destilação.
O ALQUIMISTA ESTÁ CHEGANDO
O sommelier de cachaça do Mocotó, Leandro Batista, anda empenhado em fazer combinações com a declarada intenção de aproximar o público de sua bebida preferida. Nos últimos seis meses, vem testando misturas, blends, sem se incomodar com os puristas. E criou alguns blends interessantes, entre eles o quebra-conceito, mistura de cachaça Weber Haus, envelhecida em amburana, com Santa Terezinha, que amadurece em sassafrás, e Dona Beja, maturada em carvalho. O resultado já é um clássico da casa na preferência do público: bebida extremamente adocicada, de coloração dourada, lembrando um vinho de sobremesa. É recomendada justamente para finalizar a refeição. Já o cerejeira é um blend sulista com cachaça Companheira, do Paraná, envelhecida em amburana, e cachaça Lundu, prata, produzida no Rio Grande do Sul. Vai bem no aperitivo.
Batista conta que ainda não fez o "seu" blend. "Imagino algo equilibrado, fácil de beber. Sou louco para acertar um blend com cachaças envelhecidas em madeiras diferentes como pau-brasil e pau-amarelo-cetim." Para outubro, ele planeja dar um curso de análise sensorial de cachaça com degustação e o básico para quem quiser fazer - e sair do Engenho Mocotó carregando - o próprio blend.
AQUI TEM PINGA ATÉ NO NOME
Paraty sedia um dos mais antigos festivais de cachaça do Brasil - o Festival da Cachaça, Cultura e Sabor de Paraty. Em 2013, será sua 31ª edição, que começa hoje e vai até o dia 18. O evento já se chamou Festival da Pinga, mas hoje engloba outros elementos da gastronomia paratiense. Este ano, o público poderá provar, por exemplo, espetinhos de cana-de-açúcar e queijos produzidos na região. Na época da colônia, a palavra "parati" já foi sinônimo de cachaça. Mais tarde, virou música interpretada por Carmen Miranda (ler nesta página). A cidade chegou a ter 160 engenhos de aguardente no século 18. Desses, cinco funcionam até hoje, fazendo a mesma bebida de 200 anos atrás. Atualmente, há sete produtores de cachaça na cidade. A compra da caneca do evento (R$ 10) dá direito a uma dose. Depois, as doses são pagas separadamente. Haverá uma tenda de hidratação, com sombra e água fresca, para aqueles que exagerarem na degustação.
Via Estadão
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