Mestre e Discípulo e a tentação de Belzebu: e Michelangelo já previra tudo sobre esse pecado nada original (Detalhe do quadro "Cadutta dalla Grazia", de Michelangelo Buonarotti) |
A FÁBULA DO MINUTO E MEIO
Iam Mestre e Discípulo por uma
bucólica estrada do Oriente quando ouviram uma voz a apregoar, por detrás da
árvore: “Tenho um minuto e meio para vender”. Ao Mestre, o mais sábio entre os
sábios, a voz não enganava. O tom artificial, o jeito de escandir as sílabas
forçando-as até o limite…
Era ele: Belial, Belzebu, Mastema,
Semihazah, Azazel, Satã, Satanás. Também conhecido como o Cão, o Tinhoso, o
Tisnado, o Coxo, o Rabudo.
O Discípulo olhou para o Mestre, em
busca de orientação. “Tenho um minuto e meio para vender”, repetiu a voz.
O Mestre considerou por um instante
a situação. Um minuto e meio era artigo precioso demais para ser rejeitado
assim sem mais nem menos. Além disso, se não o comprasse ele, outro o faria.
Na mochila em que preparava a ração
do Discípulo, ele já levava quase seis minutos. Com mais um e meio poderia
considerar-se um milionário de minutos. A medida de Deus, como se sabe, é a
eternidade. O Demônio, que é mais realista, aprendeu que em certas situações
mais vale seduzir com minutos.
O Mestre apaziguou o inquieto
Discípulo, “Não se preocupe. Venha comigo e faça sempre o que lhe disser.” O
Mestre tinha confiança desmedida em sua própria sabedoria e em suas intuições.
Esperto por esperto, pensou, não é um Rabudo qualquer que vai me passar a
perna.
"Não se preocupe, faça tudo o que
eu lhe disser", disse o Mestre ao Discípulo, antes do encontro com
Belzebu
Pegou o Discípulo pelo braço e
enfiou-se com ele para detrás da árvore. Negociaram no escondidinho. “Ufa,
assim é melhor”, pensou o Discípulo. Mais confiança ainda depositada no Mestre:
ele sempre sabe o que faz! A negociação fluiu muito bem, à sombra protetora da
árvore. Acertaram o preço. Tudo já praticamente liquidado, faltava a entrega da
mercadoria.
Satanás disse que a guardava em
casa. Um minuto e meio é produto precioso demais para ficar andando com ele no
bolso. Convidou-os a ir à sua casa, para apanhá-lo.
Como é sabido, se o ofício de Deus é
perdoar, o do Demônio é tentar. Azazel tinha um plano, ao atraí-los à sua casa.
Bem que o Mestre, a quem nada escapa, pensou duas vezes antes de concordar. Mas
o prêmio do minuto e meio falou mais alto. Belzebu, como é também amplamente
sabido, mora num lindo palacete. A mansão tem muros altos; impossível ser vista
de fora. O Mestre considerou que estariam tão protegidos quanto atrás da
árvore. “Nada a temer”, disse ao Discípulo, cuja inexperiência se revelava numa
expressão de desassossego. “É só vir comigo e fazer sempre o que lhe disser.”
A princípio tudo correu bem, na casa
do Príncipe das Trevas. Ele mostrou-lhes o minuto e meio. Ali estava, reluzente
como uma joia, num baú em que os visitantes puderam vislumbrar, porque
escapavam pelas bordas, também extratos de contas de bancos em várias partes do
mundo e até, estranhamente, alguns frangos. Depois, convidou-os a passar aos
lindos jardins do palacete. Era nesse cenário que, segundo seu plano, teria
lugar a melhor parte da peça.
Outro nome de Satã é Macaco de Deus.
Ele está sempre a macaquear Deus. Estes enviados de Deus que são os santos
promovem curas ao simples toque das mãos no corpo dos aflitos. O Macaco de Deus
imita-os. Como é de sua índole perversa, porém, não é para curar que o faz. A
intenção do Tisnado é tisnar o tocado com suas manhas.
Uma vez no jardim com os convidados,
Belial mostrou-se insuperável na arte da expressão corporal e do toque.
Dirigiu-se ao Mestre com os polegares em sinal de positivo. Abraçou-o como se
fossem velhos camaradas. E, num momento entre todos significativo, levou a mão
à cabeça do Discípulo, acariciando com paternal beatitude seus negros cabelos.
E Belzebu fez seu o Discípulo, acariciando com paternal beatitude seus negros cabelos (Foto: Divulgação / " O Labirinto do Fauno")
Com o gesto, fazia-o seu. Indicava
que, tal qual o Mestre, também tinha reservas de ternura e zelo protetor a
oferecer. Ao invés do que ocorrera por detrás da árvore, fotos e filmes
registraram a cena. Se há uma coisa que o Demo aprecia é fazer as coisas ao
contrário. Desta vez, posou para as câmeras como se fosse um ente normal, com
quem não se teme fazer negócio às claras. Era isso que tinha em mente:
conseguiu-o.
O Mestre parecia constrangido, mas,
bem pesadas as coisas, consolava-o o minuto e meio que já tinha guardado na
mochila. Quem vai lembrar, quando chegar a hora de a onça beber água, que para
consegui-lo pagou um sobrepreço?
O Discípulo tinha a pulga atrás da orelha,
mas quem era ele para duvidar das estratégias e dos estratagemas do Mestre?
Esta fábula não tem moral. No
Oriente, onde se passa, costumam dizer que o que tem é imoral, ou amoral. São
muito escrupulosos por lá.
(Artigo publicado na edição
impressa de VEJA)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi