Crânio descoberto na Europa muda a árvore genealógica do homem
Este pioneiro com 1,75 milhão de anos, exumado no ano passado nas ruínas da aldeia medieval de Dmanisi, na Geórgia, possuía um cérebro pequeno – bem menor do que se considerava necessário para que nossos antepassados realizassem uma migração intercontinental. E seus enormes caninos e sua testa estreita são simiescos demais para um hominídeo avançado, o grupo do qual somos descendentes. O crânio, assim como fósseis achados no local, levanta tantas questões que um cientista murmurou: “Seria melhor que voltassem a enterrá-lo”.
Essa frase anuncia uma mudança de paradigma e
foi pronunciada por Philip Rightmire, da Universidade Binghamton, um
especialista em fósseis do Homo erectus. Tal como a maioria dos
paleantropólogos, Rightmire há muito considerava o Homo erectus como
o migrante original – o primeiro hominídeo a sair da África. O novo crânio,
desenterrado em uma aldeia medieval na Geórgia, porém, está abalando essa
suposição, se não o próprio tronco da árvore genealógica humana. Agora é
possível que o primeiro ser humano a emigrar da África não tenha sido um H.
erectus, um ser de cérebro avantajado e capaz de fazer elaborados instrumentos
de pedra. Talvez uma criatura mais primitiva – uma espécie de elo perdido entre
o H. erectus e o primeiro membro do nosso gênero, o Homo habilis –
tenha deixado a África antes. Todas as concepções de Rightmire seriam viradas
de cabeça para baixo – e ele parece estar exultante com isso.
Nota-se o mesmo regozijo no líder da equipe
que achou o crânio, David Lordkipanidze, um cientista georgiano e bolsista da
National Geographic Society, enquanto prepara moldes do crânio e de uma
mandíbula compatível na sede da NGS, em Washington, D.C. Crânios humanos tão
antigos como esse são raros, ainda mais em condições tão boas. “Talvez este
seja o crânio de hominídeo mais completo com essa idade”, diz Lordkipanidze.
Quase todos os frágeis ossos da face foram preservados. E ainda restam muitos
dentes, incluindo assustadores caninos.
Conhecido como “Dato”, Lordkipanidze é um
paleantropólogo vinculado ao Museu Estatal da Geórgia, em Tbilisi. Na década de
1990, ele e seus colegas puseram o sítio arqueológico de Dmanisi, situado no
topo de uma colina de onde se avista a antiga Rota da Seda, na lista das mais
famosas jazidas de fósseis. Na época eles exumaram vários crânios sem rosto e
sem mandíbulas – que pareciam ser do Homo erectus –, assim como
milhares de instrumentos de pedra em meio a sedimentos com idade estimada entre
1,7 milhão e 1,8 milhão de anos, o mais antigo indício conclusivo de seres
humanos fora da África. Essa datação surpreendeu a comunidade científica. No
início da década de 90 a maioria dos cientistas achava que o Homo erectus só
havia saído da África por volta de 1 milhão de anos atrás.
Então, em 2001, Dato foi avisado de que sua
equipe em Dmanisi fizera mais uma descoberta. Ele correu para lá e quase caiu
de costas quando viu o crânio ainda semi-enterrado. Em geral os fósseis de
crânio estão esmagados e quase irreconhecíveis; aquele parecia ter sido
enterrado havia poucos anos. E não lembrava em nada o Homo erectus. O osso
de sua testa era muito fino; o nariz, pequeno demais; e havia os grandes
caninos. A cavidade cerebral era minúscula – menos de dois terços do tamanho da
encontrada no H. erectus. Se as dimensões do cérebro servem para medir a
inteligência, então esse hominídeo da Geórgia provavelmente tinha uma
capacidade intelectual inferior à de um H. erectus típico.
Para Dato, o novo crânio tinha o rosto
simiesco do Homo habilis, um pequeno hominídeo com braços longos e
balouçantes, que fazia grosseiros instrumentos de pedra há 2,4 milhões de anos.
As implicações disso são de tirar o fôlego. “Esses hominídeos são mais
primitivos do que imaginávamos”, diz ele. “Estamos diante de um novo enigma.” É
possível que o primeiro viajante humano intercontinental não tenha sido um Homo
erectus?
Na África, o Homo erectus era uma
criatura alta que dava passadas largas e possuía um cérebro grande. Já o Homo
habilis tinha pernas curtas e braços longos. Os sítios africanos com
ferramentas feitas pelo H. habilis indicam que a espécie só vivia
perto de fontes permanentes de água. Ela não parecia disposta nem capaz de
realizar longas migrações.
Isso torna mais intrigantes os instrumentos
grosseiros achados Dmanisi. Há muito os cientistas estão convencidos de que os
primeiros migrantes dispunham de elaborados instrumentos – machados de pedra e
coisas assim –, como os africanos que remontam à época do Homo erectus. Os
machados pequenos facilitariam aos primeiros seres humanos a matança de
animais, permitindo-lhes subsistir com uma dieta mais rica em gorduras,
desenvolver cérebro maior e corpo mais alto. Até agora, porém, os instrumentos
achados em Dmanisi não passam de cortadores e raspadores, como os usados pelo
H. habilis africano para arrancar pedaços de carcaça e extrair o tutano dos
ossos. Talvez os primeiros migrantes comessem apenas carniça.
Mas e o cérebro reduzido do crânio de
Dmanisi? É provável que ele leve a uma reavaliação do vínculo entre tamanho do
cérebro e nível de inteligência. “Não há como supor que os primeiros georgianos
tivessem um QI baixo”, diz Philip Rightmire. “Afinal completaram uma longa
travessia.” Talvez, continua Rightmire, o tamanho do cérebro não seja tão
importante quanto a proporção entre a matéria cinzenta e o resto do corpo. Ou
seja, embora pequeno, o cérebro desses seres poderia ser mais eficiente.
Dato espera encontrar ainda ossos do
esqueleto a que pertencia o crânio. Só então saberemos se essa criatura era
parecida com o H. erectus, com o H. habilis ou com uma espécie
intermediária (por enquanto, Dato considera os hominídeos de Dmanisi como H.
erectus). De uma coisa, porém, podemos ter certeza: o achado em Dmanisi
complica a maioria dos modelos nos quais o H. erectus usa seu cérebro
maior para realizar a longa marcha até a Eurásia. Em Java e na China, o H.
erectus era mais pesado e mais robusto do que na África. Além disso, o Erectus
asiático não possuía machados pequenos. Assim é possível que o H. erectus tenha
evoluído a partir dessa primitiva linhagem de Dmanisi em algum ponto da Ásia e
depois retornado à África. Talvez tenham ocorrido várias migrações em ambas as
direções.
Milford Wolpoff, da Universidade de Michigan,
propõe que abandonemos por completo o conceito de H. erectus e
consideremos tudo o que veio depois do H. habilis como Homo
sapiens. A enorme diversidade dos espécimes em Dmanisi pode contribuir para
essa revisão radical da genealogia do Homo.
Em Dmanisi foram exumadas partes de até seis
indivíduos na mesma camada de rocha, entre elas uma enorme mandíbula,
pertencente a um indivíduo bem maior que os outros. É possível, portanto, que
ali existam várias espécies de hominídeo, mas Dato acha isso improvável – os
fósseis estavam próximos uns dos outros, e não é comum encontrar espécies
distintas de hominídeos no mesmo local. Se eles pertencem à mesma espécie,
então a disparidade de tamanho tem outra explicação. Talvez a mandíbula grande
pertença a um macho velho – e, como ocorre com os atuais gorilas, os machos de
Dmanisi eram maiores que as fêmeas. Ou talvez nossos ancestrais apresentassem
tamanhos tão variados quanto os dos atuais seres humanos. Afinal, jogadores de
basquete e anões são membros da mesma espécie. Não é concebível que os nomes
atribuídos aos vários tipos primitivos de Homo tenham afinal complicado demais
nossa árvore genealógica?
É o tipo de questão que interessa a Dato. Ele
também está contente por essa reavaliação crítica dos primeiros passos da
humanidade ter começado ao mesmo tempo em que a Geórgia consolidava sua
independência. “Dmanisi foi nosso primeiro grande projeto científico
internacional. E tivemos sorte.”
Fonte: National Geographic Brasil
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