Por Dag Vulpi
Há momentos em
nossas vidas que é imprescindível manter a fleuma, mesmo quando tudo pareça estar conspirando para que as coisas caminhem para o lado inverso daquele que pretendíamos seguir, tornando nossa jornada ainda mais árdua, porém, ainda assim devemos manter o autocontrole, e conter a fúria do monstro que vive adormecido dentro de cada um de nós.
Manter o autocontrole diante de determinadas circunstancia é de tal forma
escabroso, que não seria proditório deduzir que mesmo o mais puritano dos monges tibetanos na plenitude de seu retiro espiritual sucumbiria, e não suportando
o peso do revés imposto pelo destino, vociferaria na imensidão silenciosa e gélida do Himalaia a translúcida e harmoniosa frase: “פאַקינג גענעם”, que traduzida para o português seria mais ou menos um “p.q.p”. E por certo ouviria como resposta um não menos sonoro eco vindo da montanha dizendo: “וועט נעמען עס אַרויף די טאָכעס!”, que
não poderei traduzir aqui, mas adianto que tem tudo haver com o famoso "vai para aquele lugar".
Pois bem, foi num desses momentos adversos e fora de controle que o extrovertido e sempre de bem com a vida “Beija-flor” foi pego pelo destino.
Pois bem, foi num desses momentos adversos e fora de controle que o extrovertido e sempre de bem com a vida “Beija-flor” foi pego pelo destino.
Beija-flor é o
apelido de um conhecido cidadão morador do bairro da Glória, sujeito de boa
índole e de muitas amizades. Trabalha na prefeitura da cidade de Vila Velha no Espírito
Santo a mais de 30 anos. Beija-flor conseguiu essa longevidade profissional
graças aos seus bons serviços prestados, raridade em cargos públicos desse
Brasil varonil, não a longevidade na função, mas sim a prestação de bons
serviços para a comunidade.
O fato de
trabalhar durante tantos anos na prefeitura rendeu-lhe alguns “privilégios”,
comuns a todos que tiveram a sorte de conseguir entrar para os quadros do setor
publico. E desses benefícios coerentemente o protagonista deste conto nunca
abriu mão.
Depois de 30
anos trabalhando no mesmo setor daquela prefeitura Beija-flor já havia
presenciado uma grande rotatividade nos cargos públicos, nesse tempo passaram
por ali no mínimo uns seis ou sete prefeitos, mais de quatorze secretários, e funcionários
do segundo escalão certamente foram mais de mil, e o velho Beija-flor foi
resistindo a todas as variáveis ideológicas que cada político trazia e levava
junto com seus mandatos.
Como benefício
por seu longo período prestando serviços naquele mesmo setor Beija-flor
tornara-se mesmo sem ser, um tipo de chefe daquele departamento. Portanto, era
ele quem determinava seus horários de entrada e saída e até mesmo suas férias
era ele que determinava quando seriam gozadas, resumindo ele era o chefe dele
mesmo, e talvez isso também justifique os seus 30 anos de serviço.
De acordo com
as regras, a maioria dos chefes que ocuparam funções naquela, e nas demais
secretarias das prefeituras espalhadas por esse Brasil de meu Deus, conquistaram
aquele espaço por terem sido apadrinhados pelos prefeitos, graças aos pagamentos
de compromissos políticos celebrados durante as campanhas eleitorais, ou seja,
o velho toma lá-da-cá, me ajuda agora que depois de eleito não esquecerei de
ti. Comprometimento com o conhecimento técnico que o secretário terá com a
pasta que ele irá assumir não é preocupação de nenhum prefeito, e vamos que
vamos, pois já dei minha pincelada, e a proposta deste artigo não é somente
esse.
Voltemos ao boa
bisca, boêmio e possuidor de alguns vícios que é nosso protagonista. Vícios,
aliás, quase todos nós temos. E um dos vícios do Beija-flor deriva do seu
próprio apelido, que é o de sentir prazer de possuir pássaros canoros em
cativeiro. Ele não abria mão de ter em seu seleto plantel pássaros de
qualidade, e em suas sempre belas e detalhadas gaiolas era certo observar a
presença de um bom curió paracambi repetidor, Uns dois a três coleirinhas
tui-tui e uns dois trinca-ferro bom-dia-seu-chico.
Para ele criar
estes pássaros em gaiola não era um vicio, mas uma grande paixão, por vezes
aqueles pequenos e emplumados seres traziam-lhe grandes alegrias, ganhando
troféus por serem bem sucedidos nos torneios de canto que eram organizados nos
clubes da cidade, normalmente esses eventos aconteciam aos sábados, onde se
reuniam, ainda hoje esta pratica existe (ela é regulamentada pelo IBAMA) um
grande número de apaixonados pelo mesmo prazer e colocavam suas gaiolas
penduradas em pedestais uma próximas às outras, sendo o vencedor o pássaro que
desse o maior número de canto num determinado período de tempo.
Porém, como
nem tudo na vida é somente sorriso, e até o mais famoso é falso, que o diga Gioconda,
a vida também lhe reservou momentos de desilusões.
Fato não permitido
por passarinheiro que se preze que é o caso do Beija-flor são os questionamentos
quanto à qualidade de seus pássaros e a legitimidade do troféu ganho em
torneios organizados e por decisão unanime dos juízes, ainda que a organização
do evento tenha sido custeada por nosso protagonista, assim como, o pagamento
dos honorários dos “juízes” do torneio tenha saído do seu bolso.
Pobre do
infeliz que ousasse tecer críticas depreciativas aos canoros do Beija-flor. Seus
pupilos eram perfeitos aos seus olhos, e quem não concordasse era de imediato
rechaçado, e por ele tachado como sendo uma pessoa de opinião inconsequente e
leiga no assunto. Seus pássaros sempre eram os melhores da região e ponto final.
Porém, como o inevitável de Almeida cedo ou tarde acaba aparecendo, so seria
uma questão de tempo.
Era um belo
sábado ensolarado de verão, e o torneio terminara há pouco, os pássaros já
haviam sido devidamente recolhidos e os passarinheiros degustavam uma deliciosa
cerveja gelada enquanto contavam cada um a seu jeito as proezas de seus pupilos
empenados. Todos naquela mesa sorriam, mas o mais feliz era nosso protagonista,
afinal seu coleira ficou em primeiro lugar geral na contagem de cantos e seu
trinca-ferro havia ficado em segundo na sua categoria, perdera por um canto de
diferença para o trinca ferro de um amigo.
Na roda de
amigos a harmonia reinava absoluta, até que um tal de mineiro aproximou-se da
mesa, e segurando numa das mãos uma lata de refrigerante e na outra um canudo
que sem sucesso tentava introduzir no interior da lata, aproximou-se ainda mais
e, olhando diretamente para os olhos do Beija-flor falou: “isso foi roubo, tem
gente aqui que paga para os pássaros ganharem” e deu uma pausa, nesse momento
Beija-flor ficou cego, levantou-se num golpe só e ficou frente a frente com o
tal mineiro e falou bem alto: “se você for homem repita o que você falou seu comedor
de queijos duma figa”, quase explodindo de raiva. E o tal mineiro deu um passo
a traz e repetiu: “isso foi um roubo, eu estava lá e vi, o seu trinca ferro
deveria ficar em primeiro lugar, o senhor foi roubado, o juiz deixou de contar
dois cantos que o seu pássaro deu”. Naquele exato momento Beija-flor ficou sem
chão, sentou-se, respirou fundo e falou: “Mineiro não faça mais isso, eu quase
tive um troço, você sabe que eu sou cardíaco”! E as gargalhadas tomaram conta
do ambiente.
Podemos dizer
sem medo de cometer erros que os momentos mais felizes vividos pelo Beija-flor
foram quase todos atribuídos aos triunfos de seus pássaros, em especial ao seu coleirinha
“Pepê”.
Se nos sábados
o ponto de encontro dos passarinheiros era no clube, no domingo era na praça do
bairro. Ali se reunia toda a galera do bairro e imediações, porém não havia
juízes, muito menos regras, aqueles que chegavam mais cedo escolhiam os
melhores locais para pendurar suas gaiolas. Evitava-se pendura-las muito
próximas à rua, pois alguns pássaros assustavam-se com o movimento dos
transeuntes, onde muitos daqueles levavam seus cachorros para passear e isso
provocava pânico em alguns pássaros, deixando-os praticamente mudos durante
quase todo o tempo.
Para este
encontro de pássaros na praça diferentemente do termo torneio que era dado no
clube, ali o evento era conhecido por “racha”, mas o objetivo era o mesmo, ou
seja, ver qual pássaro era o que mais cantava. Mas ali, por não haver regras
claras tudo era diferente e dificilmente o pássaro do nosso protagonista
saiam-se bem, fato que o obrigava a quase sempre se retirar antes do fim do
racha. Como a praça era próxima à sua casa ele atravessava a rua e parava no bar
do Nilton para tomar uma cerveja e reclamar da desorganização que se tornara o
tradicional racha de tanto anos.
O que
perturbava de fato o nosso protagonista era a presença de um velho desafeto nos
rachas dominicais. Depois que ele e o Carlinhos Preá discutiram motivados pela
paixão de seus pássaros, o racha nunca mais foi o mesmo para ele. Seu Carlos,
ou “Carlinhos Preá” como é conhecido é vizinho de longa data, mora na mesma rua
e sua paixão por pássaros também é grande. Porém, por mais que os dois tivessem
gostos parecidos, ainda assim seus pontos de vista sempre foram divergentes, em
qualquer situação ou assunto.
Aquela rixa
era antiga, atribuída a fatos ocorridos quando ainda muito jovens, e que o
passar dos anos não contribuiu para o consenso. Difícil era saber quem estava
com a razão, se é que alguém a tivesse.
Papo comum e
recorrente era a afirmativa de ambos em se dizerem proprietários dos melhores e
mais belos pássaros da região, nunca se entenderam quanto a isso, aliás, não se
entendiam em quase nada. Mas vamos à diante.
O bom e velho Beija-flor
acordou às quatro da manhã naquela segunda feira, aliás, acordar cedo era
costume antigo, acordava fazia o café e ia tratar das suas preciosidades, ao
todo eram dez pássaros (todos devidamente registrados no IBAMA conforme
determina a Lei). Essa tarefa diária
consumia-lhe uma hora, para higienizar as gaiolas e trocar a água e comida.
Como de
costume ele levantou, ligou o rádio que estava sempre sintonizado na AM, onde
tocava o seu programa matinal predileto, música ali só caipira e da boa, e o
locutor também era o seu preferido, pois caprichava no linguajar interiorano.
Ele encheu a chaleira
com água da torneira e quando a colocou sobre o fogão para aquecer a água do
café, ouviu um ruído que vinha do seu quintal, imediatamente ele abriu a janela
e espiou para fora, mesmo estando escuro deu para perceber que no seu ali havia
um desconhecido, e que o tal carregava às costas uma botija de gás.
E mesmo antes
que ele questionasse a presença do intruso em sua propriedade, o sujeito se
antecipou indagando-o se havia por parte do Beija-flor algum interesse em
comprar a botija de gás, dizendo que aquela estaria cheia, e que precisaria
vendê-la para comprar remédio para o filho pequeno. Beija-flor pensou por
alguns segundos e respondeu que não tinha interesse “vai que seja fruto de
algum roubo” pensou ele, e em seguida pediu para o cidadão se retirar de seu
quintal, e assim foi feito, o cidadão desculpou-se pelo incomodo e retirou-se
levando a botija. Beija-flor certificou-se de que o cidadão realmente havia se
retirado, e voltou aos seus afazeres.
Ao tentar
acender o fogo, teve a primeira decepção do dia, o fogo não acendeu, tentou
duas, três vezes e nada, era inevitável, o gás havia acabado. Chateado com a
situação lamentou-se pela oportunidade perdida “eu poderia ter comprado a
botija daquele infeliz, teria ajudado um filho de Deus, e agora não ficaria sem
café até o comércio abrir” pensou ele. Mas fazer o que, não havia outro jeito,
naquele momento o que poderia ser feito além de esperar o comércio abrir, seria
adiantar o processo da troca de botijas, soltando a válvula que fica presa à
botija, e foi isso que ele foi fazer.
Acendeu a
lâmpada da área externa, e se dirigiu para o local onde estava instalada a
botija, porém, ao chegar lá só avistou a mangueira, percebendo que a botija não
se encontrava mais lá, alguém já havia “adiantado” o seu serviço.
Beija-flor não
se conteve, sambou o boné no chão e praguejou tudo o que não devia contra o seu
indesejável visitante matutino. Lembram-se do monge tibetano que foi mencionado
no inicio deste texto? E aí será que mesmo ele não soltaria um belo de um: “פאַקינג גענעם” numa situação desta?
Mas dizem que
azar pouco é bobagem, e apesar do nosso protagonista ser um sujeito calejado
pelo tempo, ter muitos anos de praia e ter passado 30 dos seus anos no meio daquela
galera da prefeitura, onde o mais bobo dá nó em pingo d’água ele cometeu a
imprudência de comentar o fato ocorrido naquela infeliz madrugada logo para o Suíno.
Suíno era o apelido do dono da quitanda, e falar para o suíno era o mesmo que
pagar carro de som para divulgar falecimento de padre pelo bairro afora.
Antes das nove
da manhã o bairro todo já estava sabendo do ocorrido, e o pior, com exageros,
afinal a galera não perderia uma oportunidade daquelas.
Beija-flor
pela primeira vez sentiu o dissabor de se encontrar na situação de ser o “bola
da vez”, passou a ser o alvo do achincalhamento coletivo. Ninguém o poupava, primeiro
foi uma enorme fila de crianças seguindo seu rumo para o colégio, mesmo as
crianças das ruas vizinhas naquele dia resolveram passar por ali, algumas mães
fingiram intervir pedindo para a criançada tentar se conter, ainda que muitas daquelas
senhoras não conseguissem esconder o que realmente sentiam, seus olhares debochados
traduziam seus verdadeiros desejos. Depois vieram as beatas em procissão, nunca
foram tantas a seguir juntas para a igreja no mesmo horário, e ao perceberam a
presença do infeliz colocaram seus lenços em suas bocas escondendo suas
dentaduras amarelas e gastas, demonstrando o quanto até aquelas octogenárias
podem ser cruéis.
Desta vez foi
inevitável, Beija-flor que durante toda sua vida fora um gozador nato,
tornara-se o motivo da chacota de todo o bairro e das Redondezas. Foi quando ele
entendeu o significado daquele maldito quadro que um antigo prefeito havia
pendurado na sala onde trabalhou por todo aquele tempo, Muitas vezes ele
comentou com outros amigos: “O Vasquinho (vasquinho foi um antigo prefeito de
Vila Velha) deve estar ficando gaga, ele pendurou um quadro na minha sala com
os seguintes dizeres; SER PEDRA É FÁCIL, DIFICIL É SER VIDRAÇA”! Pois é
Beija-flor é isso aí, o Vasquinho estava certo! Ou não?
Não houve outra
saida, Beija-flor fez por merecer sua autonomia e se autoconcedeu umas férias
forçadas. Foi passar uns tempos bem longe, na casa de um irmão que morava no
interior. Não havia escolha, ou saia para um retiro e aguardar a poeira baixar ou
fazer uma bobagem.
Beija-flor
ficou chateado durante um bom tempo, mas felizmente tudo acabou bem, porém ele
perdeu o status de o esperto da área, e vez ou outra aparece um infeliz que lembra
esse ocorrido.
Desta vez a
lembrança foi desse que agora assina esta postagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua visita foi muito importante. Faça um comentário que terei prazaer em responde-lo!
Abração
Dag Vulpi